A voz do outro lado do telefone era convincente. A cada questão do polícia, um novo pormenor. O Pavilhão Paulo Pinto, em São João da Madeira, estava a ser assaltado. Era urgente a intervenção policial. Os meios foram para o local e o comandante de esquadra nem hesitou: subiu ao telhado para espreitar e perceber o que se passava. Um deslize e o comissário da PSP acabou por cair de uma altura de sete metros. Só quando o socorreram lhe deram conta do que se passava: era uma chamada falsa. Não havia assaltantes. Aquele telefonema transformou-lhe a vida. Carlos Duarte esteve dois anos em recuperação e sofre, hoje, de uma incapacidade permanente de 72,8%.
O caso remonta a 2008, mas ainda se arrasta pelos tribunais. Ficou conhecido pela gravidade das suas consequências, mas há muitos outros que obrigam à mobilização de meios policiais e de emergência médica para nada. Segundo a Direção Nacional da PSP, todos os dias existe uma média de 25 mil chamadas para a linha de emergência, através do número 112, 75% destas chamadas “não respeitam a emergências”. Não quer dizer que sejam todas elas falsas. Recentemente, a PSP de Coimbra divulgou dados sobre o distrito. E concretizou mais os números: em 2015, das 113 975 chamadas feitas para o 112, 75 180 (pouco mais de 65%) não foram situações de emergência. Grande parte eram falsas.
Nem sempre estas chamadas são denunciadas ou investigadas. Dados da Procuradoria Geral da República fornecidos ao Observador, dão conta de que em 2015 foram abertos apenas 74 inquéritos pelo crime de abuso e simulação de sinais de perigo. Houve 12 acusações, 50 arquivamentos e em três inquéritos, por acordo entre o arguido e o Ministério Público, foi aplicada a suspensão provisória do processo.
Naquela noite de julho de 2008, em São João da Madeira, foram quatro os miúdos que se lembraram de telefonar (neste caso diretamente para a central da PSP) a dar conta de um suposto assalto. Queriam testar a polícia. Dois deles nunca chegaram a ser julgados por simulação de crime, porque não tinham ainda 16 anos. Os outros dois responderam em tribunal e acabaram condenados a uma multa de 550 euros.
Ainda assim, os quatro responderam no âmbito de um processo cível interposto pelo polícia lesado. Em primeira instância foram condenados a pagar, todos juntos, uma indemnização de 80 mil euros ao polícia e 230 mil euros à Caixa Geral de Aposentações – que paga uma pensão vitalícia ao polícia. Na altura, a juíza reduziu em 20% o valor que o comissário Carlos Duarte pedia, por considerar que a sua atuação, apesar de “diligente”, foi “temerária e revelou-se concausa do acidente”. A sentença foi proferida em setembro, mas os réus recorreram para o Tribunal da Relação e não há, ainda, decisão final.
O comissário Carlos Duarte, contactado pelo Observador, acabou por “desenterrar” das suas memórias os acontecimentos e as suas consequências. “O que acontece é que a polícia tem uma missão a cumprir. E quando são relatadas informações do foro da sua intervenção, credibiliza a situação”, diz. Credibilizou. Melhor, acreditou e não hesitou em ir para o terreno naquela noite. Montou um perímetro de segurança em torno do pavilhão e ainda esperou que os alegados suspeitos desistissem do assalto. Na altura, foram feitas duas chamadas. A primeira dava conta do assalto, enquanto a segunda foi feita já com a polícia no local. Dizia que os assaltantes tinham uma bomba e se a polícia não desmobilizasse esta seria ativada. O comissário Carlos Duarte não hesitou em subir ao telhado, coberto por painéis solares, para verificar se a situação era, de facto, a descrita na chamada telefónica. Mas uma telha solta ditou-lhe o destino. E caiu.
O oficial de polícia, que garante nunca ter recebido qualquer pedido de desculpas por parte dos rapazes, não tem dúvidas de que os autores deste género de chamadas devem ser responsabilizados. “Na altura tinham 15 ou 16 anos e considero que já tinham consciência do que estavam a fazer”, diz.
“Duradouras”. É assim que Carlos Duarte define as consequências que uma chamada falsa pode ter. Mas, por trás dessa palavra, há tantas outras que podem explicar a transformação na vida do comissário. Como o dia em que acordou, após o acidente, e percebeu que as suas pernas não mexiam. O polícia ainda viveu alguns meses preso a uma cadeira de rodas e pensou em tudo. “Na fase de recuperação passamos por várias etapas. Andei de cadeira de rodas e pensava que nunca mais iria voltar ao trabalho policial”, recorda.
Em casa, com o apoio da família, passou às adaptações. Um corrimão nas escadas para poder subi-las. Uma casa-de-banho adaptada. Uma cama especial. “Há um processo evolutivo físico e psicológico”, diz. Um processo que demorou dois anos. No dia em que umas próteses nos pés e umas canadianas o arrancaram da cadeira de rodas, Carlos Duarte percebeu que seria possível voltar a ter uma vida na PSP. “O apoio da família, dos amigos e da própria instituição foram fundamentais”. Não voltou ao trabalho operacional, mas apoia as operações e o trabalho administrativo, agora na PSP de Espinho. E cada dia é uma conquista. Não pode correr, como antes fazia, mas faz caminhadas. E a jardinagem, um dos seus passatempos, faz aos poucos, sentado numa cadeira. “Aceitando tudo se consegue.”
Quanto ao processo, é peremptório: “Os atos têm de ser responsabilizados”. E elogia o último caso tornado público, registado terça-feira da semana passada no aeroporto de Faro. Quando uma chamada de uma ameaça de bomba levou à imobilização de um avião e exigiu no local cerca de trinta polícias, quatro ambulâncias e duas viaturas do INEM. Horas depois, o suspeito da falsa ameaça era identificado.
Segundo a lei, quem “utilizar abusivamente sinal ou chamada de alarme ou de socorro”, ou simular uma situação de perigo, é punido com uma pena de prisão até um ano ou com uma multa até 120 dias. Mas a Justiça só tornou pública uma sentença que aplicava uma pena efetiva de prisão. A voz de prisão foi dada em setembro de 2014.
Queria chamar a atenção da mulher
O arguido, um homem de 52 anos, estava em processo de divórcio e queria chamar a atenção da mulher. Como? Telefonou para o 112 e disse que tinha sido vítima de um acidente. A carrinha de trabalho em que seguia despistara-se e caíra de um precipício, na A24. Estava encarcerado e precisava de ajuda. A operação de resgate obrigou à mobilização de 18 militares da GNR, bombeiros de cinco corporações, médicos e enfermeiros do INEM e até um helicóptero. Os operadores da linha de emergência só se aperceberam que era afinal uma chamada falsa, quando telefonaram à família do homem e estes informaram que ele não podia ter sofrido um acidente com a viatura de serviço. Porque estava desempregado.
O homem foi condenado a uma pena efetiva de três meses de prisão e ao pagamento de 398,11 euros à GNR — valor gasto na deslocação. O INEM nada recebeu, porque não tinha os comprovativos dos gastos. Não contente, o arguido ainda recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Mas este manteve a decisão. Contactado pelo Observador, João Marques, do departamento de Marketing e Comunicação do INEM, refere que “as estatísticas de queixas apresentadas pelo INEM por chamadas falsas circunscrevem-se a casos pontuais, cujo volume é bastante inferior ao das chamadas falsas recebidas nas centrais de emergência da PSP. Esta entidade acaba por identificar a maior parte das chamadas falsas, reduzindo de forma significativa o impacto deste problema a nível do CODU”. Ainda assim, acrescenta João Marques, há registo de processos interpostos por outras entidades.
Sentia-se sozinho e ligava para o 112
Em 2013, coube a António Quintão, um serralheiro de 60 anos, ser julgado pelo crime de “abuso e simulação de sinais de perigo”. Entre junho e dezembro de 2012 ligou 6970 vezes para o 112. E chegou a insultar quem lhe atendia o telefone. No tribunal de Braga ainda tentou justificar, num discurso confuso, que pensava estar a ligar para o serviço de apoio ao cliente de uma operadora de telefone móvel. Quando percebeu que não convencia os juízes, admitiu fazê-lo para fintar a “solidão”. A ideia custou-lhe 150 dias de multa, num total de 1050 euros.
Uma parte das chamadas falsas que chegam ao 112 reportam-se a ameaças de bomba. Escolas, tribunais, finanças. Há um infindável número de casos que acabam em nada. Mas é crime. Em 2007, uma escrivã do Tribunal de Faro foi identificada como a autora de uma chamada para o 112. A mulher dizia que uma bomba iria explodir. O tribunal foi evacuado e passado a pente fino pelas autoridades. Mas, meia hora depois, a polícia descobria a autora da chamada. O tribunal de Sintra, o tribunal de São João Novo, no Porto, e até o Supremo Tribunal de Justiça foram, em 2015, alvos de ameaças de bomba que levaram os meios de inativação de engenhos explosivos para o local e que, afinal, eram falsos alertas.
Em agosto de 2011 foi a vez do PSD entrar numa polémica ligada às chamadas falsas para o 112. A deputada Joana Barata Lemos queria testar os tempos de espera daquele serviço e assumiu no plenário ter telefonado para o 112. Esperou 14 segundos para ser atendida. Estava longe da polémica que o telefonema iria gerar. O próprio Grupo Parlamentar do PSD acabou por emitir um esclarecimento justificando que, durante a experiência, não ocupou o tempo de qualquer operador. “Não houve comunicação falsa de ocorrência”, dizia em comunicado.
O Número Europeu de Emergência 112, cujo dia é assinalado esta quinta-feira, foi criado em 1991 e desde 2008 passou a ser o único número de emergência para o qual pode ligar gratuitamente de qualquer telefone fixo, móvel ou público para aceder aos serviços de emergência de qualquer país da União Europeia.