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Deus abençoe Clint

Aos 86 anos, está de volta com um novo filme, “O Milagre do Rio Hudson”. Clint Eastwood é um dos grandes cronistas da América. Com todas as contradições possíveis: as dela e as dele.

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Clint apareceu a 31 de Maio de 1930 em São Francisco, Califórnia. Tinha este nome inconfundível e que profeticamente se oferecia como anagrama de “old west action”. Só com um erro: baptizaram-no “Clint Eastwood Jr.”, a partir do pai, o senhor Clint senior, honesto vendedor e agente de seguros. Mas “Junior”… Era do futuro Dirty Harry que ali estávamos a falar, por amor de Deus. Um metro e 93 de ícone absoluto, lenda da cultura ocidental, rosto capaz de encher uma tela grande das antigas, do tempo em que as telas eram realmente grandes ou nós pequenos, quase ao tamanho do horizonte, frente a frente, o olhar dele contra o da plateia inteira, amedrontada, nas fitas de Sergio Leone. Junior? Um dos actores mais rentáveis de sempre. Uma das maiores estrelas do cinema de todos os tempos. Um gigante da cepa de John Wayne e John Ford juntos, de Humphrey Bogart, Gary Cooper ou Robert Mitchum, alguns dos seus preferidos, aqui no mundo desde o tempo deles, como uma candeia acesa guardando este rebanho de mortais.

[o trailer de “Milagre no Hudson”, o novo filme de Clint Eastwood]

Clint, meninos, é um duro. O paradigma dos duros. Não chora, não sente frio, não fica ansioso. Politicamente, é suposto ser um republicano. Ao longo dos anos, apoiou, com efeito, muita gente dessa família política: Nixon, Reagan, McCain – só para lembrar alguns. Mas também é assumidamente um libertário, alguém que logo em 2003 se insurgiu contra a guerra do Iraque, odeia caçar e diz que o que mais detesta no ser humano é o racismo – e tem filmes a prová-lo. Sim, Clint é um conservador, mas é sobretudo um clássico. Não é alguém que gosta das coisas como elas costumavam ser; é uma dessas coisas que são o que costumavam ser. Clint não é um conservador, é um sintoma de quem é um conservador. Clint, enfim, é o que é – e nós, que gostamos do cheiro a café, do som dos sinos, do Sol de Setembro, do bife feito da mesma maneira no mesmo sítio há 50 anos, gostamos dele.

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O passo errado

Trabalhou em bombas de gasolina, talhos, andou a limpar piscinas, enquanto lutava por um lugar como actor. Teve uma modesta primeira aparição no cinema em “Revenge of the Creature”, fita a que o termo “terror” se pode aplicar de pelo menos duas maneiras. Deu-se isto corria o ano de 1955, que é como quem diz: faltavam dois para que houvesse televisão em Portugal. Sim, ele já cá anda há muito tempo. Só em 64 deu finalmente o salto para o estrelato: foi com o primeiro volume da trilogia que faria com o já lembrado Leone: “Por um Punhado de Dólares”. Na altura, o agente tentou demovê-lo; disse-lhe que seria um passo em falso, “a wrong move”, um “mal paso”, em espanhol. Clint pegou na ideia e, para nunca mais a esquecer, deu-a de nome de baptismo à sua produtora, aquela que fundou logo em 68 e que continua de porta aberta, outro “passo” invulgar para alguém que era, então, apenas um herói de acção, um cowboy.

Na relação entre sucesso e longevidade, ninguém se compara a Clint. Ele foi uma estrela nos anos 60, tornou-se uma estrela ainda maior nos anos 70, e continuou a ser uma estrela nos anos 80, nos anos 90 e nos anos 00. Sem entrar em decadência. Sem se tornar algo apenas exótico. Sem que o fôssemos ver ao cinema apenas porque era “o senhor Clint Eastwood”. Pelo contrário. Foi sempre a conquistar novos públicos, maior admiração, mais respeito. O senhor Clint Eastwood, aquele que poderia ter sido só o inexpressivo cowboy de Leone, o Dirty Harry adorado nos clubes de vídeo, o velho e duro conservador guardião do “american way of life” e que, afinal, se tornou num dos mais espantosos artistas do nosso tempo. Sim, Clint foi de canastrão a coqueluche dos intelectuais. E sabem o que é mais engraçado? É que não foi propriamente ele que mudou.

Do clube de vídeo a Cannes

“Por Mais Alguns Dólares” e “O Bom, o Mau e o Vilão” completaram a trilogia do homem sem nome. Mas 1971 é que foi o ano: “A Fúria da Razão” põe Clint pela primeira vez na pele do polícia Harry Callahan, Don Siegel adoece e o actor oferece-se para o substituir na realização de uma cena. Toma-lhe o gosto. Ainda naquele ano sairá “Play Misty for Me”, a primeira película assinada por Clint como realizador. Tinham começado duas grandes aventuras: “Dirty” Harry viveria em mais quatro filmes que fariam dele o herói de duas décadas, com as tiradas emblemáticas: “Do you feel lucky, punk?” e “Make my day” e o crachá da polícia atirado ao rio, gesto máximo do polícia solitário que quer a justiça, mas já não crê no sistema.

Como realizador, a saga seria mais longa – dura até hoje, mais de 30 filmes depois. Com “Bronco Billy”, em 1980, começaria a ter mais atenção sobre ele. Fitas como “Firefox”, “Um Agente na Corda Bamba” e “Rookie – Um Profissional do Perigo” e respectivas aventuras com vilões russos e alemães deram durante muito tempo a ideia de que Clint realizador estava ali apenas para servir o Clint actor. Que um e outro eram as duas faces da mesma moeda de um certo cinema de acção que, em muitos casos, não aspirava a ser mais do que uma entretida tarde de domingo no sofá. Até que veio “Bird” e ficámos todos a saber que Clint, o duro senhor Clint, o homem a quem um dia chamaram “Junior”, tinha sentimentos.

Dirty Mr. Clint…

Não vale a pena termos ilusões sobre os nossos heróis: Clint Eastwood tem uma vida pessoal lamentável. É toda uma outra longa carreira que o artista tem, neste caso, sabido manter longe das câmaras; todavia, o pouco que se deixa ver, à laia de trailer, não augura nada de bom. Há pelo menos oito filhos a usar o nome do senhor Eastwood, reconhecidos em diferentes fases da vida, e que são fruto dos relacionamentos com seis mulheres diferentes.

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Clint curiosamente, só foi casado duas vezes, a primeira das quais durou 30 anos, e o primeiro filho só surgiu ao fim de 15, na sequência de uma reconciliação após crise conjugal ditada pela descoberta de Maggie das traições e filhos extraconjugais já então tidos pelo marido. O segundo casamento foi com Dina, jovem que apareceu fugazmente em dois filmes de Clint, “Um Crime Real” e “Dívida de Sangue” e cujos pais eram mais novos do que o próprio Clint. Terminou em Dezembro de 2014, com um bom acordo de divórcio. Mas a mais célebre relação do nosso homem não foi nenhuma destas, antes a que manteve com Sondra Lock. Juntos partilharam seis filmes e 14 anos de vida, até que tudo acabou em tribunal e com uma biografia em que Sondra apelida Clint de “monstro” e “sociopata”, que não hesitava em destruir tudo quanto lhe pudesse ser inconveniente.

Clint, há que dizê-lo, chegou a dizer um dia, referindo-se aos sentimentos que tinha por Sondra, que não se podia amar tanto. E é uma pena, Clint, que nem tu saibas levar essas coisas até ao fim.

…E o respeitável senhor Eastwood

Quem diria que o herói americano do clube de vídeo, nosso senhor salvador das nossas inseguras vidas pequeno-burguesas, presidiria um dia ao júri do finíssimo Festival de Cannes?

Aconteceu em 94 nesse oeste que nunca se cansa de se contradizer. Serviu para consagrar o génio do “Pulp Fiction” de Tarantino, mas era também o reconhecimento oficial de que Clint se tornara, definitivamente, o senhor Eastwood, referência canónica para qualquer cinéfilo que se prezasse.

Eastwood tornou-se canónico. Forma com Scorsese a dupla de torres onde se ergue o estandarte do cinema norte-americano. É uma lenda, uma estátua, a essência da América.

Nesta fase, aconteceu tudo depressa. “Bird” tinha saído em 88, com Forest Whitaker a dar extraordinário corpo ao talento e à dor de Charlie Parker; em 92, foi a vez da cortante inexorabilidade de “Imperdoável”, que valeu a Clint os Óscares de melhor filme e melhor realização. Em 93, veio o singular “Um Mundo Perfeito”, tão modesto e tão completo, com Kevin Costner em estado de graça a fazer de mau e de bom, enfim, de uma especialidade de Eastwood: a fazer de ser humano, ao lado do pequeno TJ Lowther. Em 95, chegou a vez de “As Pontes de Madison County”, onde Clint não só se aguentava à bomboca ao lado de Meryl Streep e provava, de uma vez para sempre, que era um grande actor, como revelava definitivamente a sua enorme sensibilidade. Sim, Dirty Harry também sabia filmar para as mulheres. Dirty Harry tinha um coração.

O político

Dizem que os actores gostam muito de trabalhar com Clint Eastwood. Quase tudo fica feito ao primeiro ou ao segundo take. Chegam ao plateau às nove e, muitas vezes, terminam pouco depois de almoço. Clint filma depressa e com tranquilidade. Não gosta de actores muito maquilhados nem do cansaço das repetições. Acredita que a coisa acontece e que acontece sobretudo quando todos nos sentimos a avançar, a produzir. Filma como gostava que o filmassem, no muito tempo em que se deixou filmar. Às vezes, termina as produções antes do prazo e sempre dentro do orçamento. Não gosta que façam leituras políticas dos seus filmes; filma o que quer. Foi sempre assim.

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Clint dá bom nome aos republicanos – sobretudo, olhando para aquilo em que os republicanos se tornaram. Mas, quando foi presidente da câmara de Carmel-by-the-Sea, na Califórnia (sim. Imaginem viver numa cidade dirigida por Clint Eastwood… Quão espectacular seria isso? De 0 a 10? 11, né? 15. 22. Por aí) concorreu como independente, não como candidato republicano. Já em 2012, entendeu que devia dar a cara pelo partido e apareceu em palco na convenção nacional a falar com uma cadeira vazia que representava o Presidente Obama. Foi um momento forte. O vídeo correu, tornou-se (digam comigo) “viral”. Mas rapidamente lhe caíram em cima – talvez como nunca antes alguém se atrevera perante o senhor Eastwood. Quem era ele, com a sua atribulada vida pessoal, para representar os valores familiares defendidos e apregoados pelos republicanos e em concreto pelo candidato Mitt Romney, naquele mesmo palco, naquela mesma noite? Doeu. Deve ter doído. Não sabemos se no coração, isso não. Mas no ego… sim, aí doeu de certeza. Clint, o senhor Eastwood, não entra em nada para perder. É um trunfo; nunca uma fraqueza. Mas, naquela noite, naquela eleição, naquele duelo, a bala entrou pelo lado dele.

O mestre

Clint tem 86 anos; começou a dirigir aos 41. Desde os 65, isto é, desde que entrou na terceira idade, desde que é, oficialmente, “velho”, “idoso”, “sénior”, já rodou 17 filmes. 17. Primeiro, obras sóbrias e sólidas, no total domínio da função, como “Um Crime Real, “Space Cowboys” ou “Dívida de Sangue”; depois, indo muito para além da tarefa e revelando o génio em alguns dos seus melhores filmes de sempre e que são também, simultaneamente, alguns dos melhores que nos deu, até agora, o século XXI: “Mystic River”, “Million Dollar Baby”, “A Troca”, “Gran Torino”. Pelo meio, o duplo “Bandeiras dos Nossos Pais” / “Cartas de Iwo Jima”, discutível na qualidade, indiscutível na coragem, no arrojo da ideia e no humanismo da intenção.

Clint, que, em tempos, recusou o papel de Super-Homem, depois entregue a Christopher Reeve, o de James Bond, depois entregue a Roger Moore, o de Willard em “Apocalipse Now”, depois entregue a Martin Sheen, e que até chegou a ser pensado para o de Rambo, depois inconfundivelmente assumido por Stallone, podia ter ficado na História como o actor mais estúpido que alguma vez passara por Hollywood. Mas teria ele sido melhor se tivesse aceitado algum destes convites? OK, rejeitar “Apocalipse Now” foi idiota, mas, à parte isso: pensando duas vezes, não demonstram todas as outras recusas que Clint era, e é, na verdade, um tipo mais inteligente do que aqueles que o rodeavam?

O senhor Eastwood parece ter sabido sempre para onde ia, desde o tempo em que o seu olhar sozinho, ao tamanho da tela inteira de Leone, era suficiente para encostar uma plateia às cadeiras. Gene Hackman, Sean Penn, Tim Robbins, Morgan Freeman, Matt Damon, Bradley Cooper, e ele próprio, Meryl Streep, Marcia Gay Harden, Hilary Swank e Angelina Jolie, são os onze actores que já foram nomeados ao Óscar por trabalhos em que foram dirigidos por ele. Hackman, Penn, Robbins, Freeman e Swank ganharam. “Imperdoável” e “Million Dollar Baby” foram ainda distinguidos como melhor filme e melhor realização. Ambos. Eastwood tornou-se canónico. Forma com Scorsese a dupla de torres onde se ergue o estandarte do cinema norte-americano. É uma lenda, uma estátua, a essência da América.

Nos últimos anos, entrou numa fase francamente menos interessante: “Invictus”, “Hereafter”, “J. Edgar”, “Jersey Boys”, “Sniper Americano”. Sempre histórias inspiradas em casos reais que pareceram, de algum modo, subaproveitadas, despachadas à pressa, deixadas numa forma ainda inicial, simplista, pouco cuidada. Clint, como outro dos maiores, Terrence Malick, sente provavelmente o tempo fugir. E portanto, filma. Filma tudo. Filma por vezes, como no caso de “Hereafter”, a partir de uma impensável primeira versão do guião. Não tem tempo a perder.

Perante isso, que temos nós a dizer? Que o senhor Clint faz o que quiser e bem entender. Conquistou esse direito há muitos, muitos anos.

E chega de sentimentalismos – ele não no-lo permitiria. Como dizia em 94, na rodagem de “As Pontes de Madison County”: “Isto do romantismo é muito duro. Mal posso esperar por voltar a filmar tiros e mortes.”

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).

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