Fundada no final dos anos 70 enquanto The Graphics Group, um departamento da LucasFilm, só em meados de 90 a Pixar se sentiria no ponto para experimentar as longas-metragens. O resultado foi o revolucionário Toy Story, de 1995. De então para cá, passaram mais 21 anos e 16 filmes e não há, provavelmente, números que melhor expliquem o que a Pixar é. Na milionária trituradora da indústria do cinema norte-americano, dar-se ao luxo de não estrear sequer um filme por ano só pode querer dizer uma de duas coisas: muito critério ou muito estatuto. No caso da Pixar, quer dizer as duas.
A Pixar mudou o cinema de animação. Primeiro, do ponto de vista da forma, com “Toy Story” a ser a primeira longa integralmente animada em computador e a pôr as grandes produtoras a correrem atrás de meia dúzia de criativos de Emeryville. Segundo, do ponto de vista do conteúdo, com argumentos capazes de agradar ao cinéfilo mais batido, personagens complexas, a busca por respostas emocionais muito para lá das que se pediriam a um público estritamente infantil.
Capaz de proezas tecnológicas como animar individualmente o pelo dos animais e criativas como fazer dum candeeiro de secretária uma personagem com motivações e estados de alma, não admira que, em 2006, tenha sido comprada pelo gigante que mais ameaçava: a Disney. Felizmente para todos nós, crianças grandes, conservou a autonomia, a identidade e até o ritmo de produção. Continua a ser uma família onde tudo passa pela mesma equipa restrita – John Lasseter, Brad Bird, Pete Docter, Andrew Stanton e Lee Unkrich, essencialmente, muitas vezes como co-realizadores, editores ou argumentistas uns dos outros. A marca de luxo dos filmes de bonecos.
Com a Pixar, enfim, a animação deixou de ser um assunto estritamente para crianças. A indústria em volta teve de mudar para a acompanhar. Os pais deixaram de fazer frete nas tardes de cinema de domingo com os miúdos. E até a Academia de Artes e Ciências criou, em 2001, um óscar próprio para distinguir o género. A Pixar, cm a sua curta produção, levou-o metade das vezes: oito. Ganhou mais outros tantos por canções e afins. E ainda teve dois títulos – “Up – Altamente” e “Toy Story 3” – nomeados para melhor filme. “Melhor filme” não é melhor filme de animação; é melhor filme. Ponto.
Mas qual o melhor Pixar de sempre? Subtraídas as sequelas, ficamos com uma dúzia de títulos. Há indefectíveis de “Toy Story”, fanáticos de “Ratatouille”, incondicionais de “À Procura de Nemo”, “Wall-E”, “Os Incríveis”. Depende do que procuramos num filme. Sendo que, no cinema de animação, não vamos propriamente à procura de nos identificarmos com o mundo em que vivem as personagens; vamos à procura de algo muito mais íntimo: os medos e os sonhos que cá temos desde pequenos. Diz-me qual o teu Pixar preferido e dir-te-ei quem és.
OS COMPANHEIROS DE ESTRADA
“Toy Story” I, II e III, “Monstros, S.A.”, “Monstros: Universidade”
Em 1995, o primeiro “Toy Story” definiu o tom para o que seria sempre uma certa corrente da Pixar: os buddy movies. Poderia ser só uma variação da velha ideia dos brinquedos que ganham vida quando as pessoas não estão por perto, mas, na verdade, são tratados sobre o companheirismo, histórias de amigos que vão ao fim do mundo uns pelos outros. Sempre com um twist que adensa o jogo e o torna mais interessante para um adulto. No volume I, é a diferença dos níveis de consciência do cowboy Woody (voz de Tom Hanks) e do astronauta Buzz Lightyear (voz de Tim Allen): Woody sabe que é um brinquedo, Buzz não, o que lança todo um conflito filosófico. No volume II, Woody é raptado por um coleccionador para o colocar no seu museu. Buzz e os amigos vão em busca do cowboy para o salvar, mas Woody não sabe se quer ser salvo, fascinado com a ideia de ser tratado como uma obra de arte. No volume III, Woody, Buzz e restantes brinquedos vão parar a um infantário quando Andy, o seu dono de sempre, sai de casa para ir estudar para a universidade. Mas a verdadeira luta que enfrentam não é para se salvarem das desajeitadas mãos de dezenas de bebés pouco cautelosos, é cá dentro, para compreenderem se ali foram parar por acidente ou abandonados por Andy.
https://www.youtube.com/watch?v=KYz2wyBy3kc
Também criado por John Lasseter, o franchise “Monstros” insere-se nesta genealogia – mesmo que sem a mesma profundidade emocional e, não por acaso, o mesmo culto. Mais do que a excelente ideia da cidade que se alimenta da energia libertada pelo medo das crianças, mais até do que a relação entre monstros e humanos que serve de fio condutor ao primeiro filme na figura da menina Boo, o que importa em “Monstros” é a relação entre os bichos Sulley (voz de John Goodman) e Mike (voz de Billy Cristal). Como fica explícito no segundo volume, “Universidade”, que vai ao passado apenas para contar como Sulley e Mike se conheceram, ultrapassaram as diferenças e tornaram os melhores amigos.
AS PESSOAS DE FAMÍLIA
“À Procura de Nemo”, “À Procura de Dory”, “Os Incríveis”
Numa linha similar, estão os “Nemos”: “À Procura de Nemo” e esta sua novíssima sequela “À Procura de Dory”. Agora no fundo do mar, os filmes continuam a ser as histórias de grandes viagens de amigos, mas, agora, o objectivo já não é resgatar um deles; é que, lado a lado, ajudem um deles a resgatar outra coisa: a família. Em 2003, ensinaram-nos o que é um peixe-palhaço e emocionaram com a história de um pai – Marlin (Albert Brooks) – em busca de um filho – Nemo (Alexander Gould), mas foi Dory (Ellen DeGeneres e, vale a pena dizer, Rita Blanco, na versão portuguesa) quem roubou quase todas as cenas. Sem surpresa promovida a protagonista, no novo filme é a peixinha sem memória de curto prazo quem precisa de partir em busca dos pais – e Marlin e Nemo quem a ajudará a alcançar o objectivo.
https://www.youtube.com/watch?v=eZbzbC9285I
Com outro ritmo, outro estilo e passado em terra firme, mas indiscutivelmente também um dos predilectos dos homens e mulheres de família por esse mundo afora, temos “Os Incríveis”. Estreado em 2004, um ano depois de “Nemo”, e também a preparar uma sequela, conta-nos a história de um casal de super-heróis que tentou levar uma vida normal, mas que a saudade vai levar de novo à acção, agora em conjunto com os filhos – todos geneticamente bafejados com super-poderes. Foi o filme que nos revelou o dom de cineasta de acção de Brad (não por acaso depois levado pelo cinema de carne e osso para dirigir um “Missão Impossível”) e o sonho de qualquer Peter Pan que, por acaso, é pai: brincar com os filhos como se tivesse a idade deles.
OS INTELECTUAIS MADUROS
“Up – Altamente”, “Divertida Mente”
Os títulos portugueses são o que são e, já se sabe, o cérebro de quem os inventa deveria ser doado à ciência (curiosamente, no original, também se optou por advérbios, mas de lugar, em vez de modo: “Up” e “Inside Out”). Mas não são certamente questões gramaticais o que liga estes filmes ao público ou sequer um ao outro; é o criador: Pete Docter, autor das histórias e argumentos de outros filmes do estúdio, mas que nestes assume a realização. Os apreciadores desta linha da Pixar são, provavelmente, adultos quase completamente adultos. Intelectuais, maduros, tranquilos, mais apreciadores do seu livro do que da sua montanha russa. Note-se a idade dos actores que dão voz aos protagonistas de “Up”, por exemplo: Ed Asner e Christopher Plummer, ambos de 80 anos à época da estreia.
Em “Up”, a Pixar embala-nos na história de um viúvo que, sem nada mais por que viver, decide cumprir o sonho que nunca realizou: partir para a longínqua Paradise Falls, onde desapareceu o seu herói de infância. Em “Divertida Mente”, jogo de palavras tão subtil que se diria saído da cabeça de Gustavo Santos, a protagonista já não é uma octogenária, mas uma menina a tentar adaptar-se à mudança do Midwest para São Francisco. O ângulo e as personagens escolhidas para falar disso é que voltam a não ser os mais infantis: em vez de familiares, amigos e coleguinhas de escola, Pete Docter escolhe contar a história através das emoções de Riley (Kaityn Dias), bem no interior da sua cabeça: a Alegria, o Medo, a Aversão, a Tristeza e a Raiva. Não exactamente o tipo de boneco que vai encontrar num parque de diversões.
OS ROMÂNTICOS SOLITÁRIOS
“Ratatouille”, “Wall-E”
Normalmente, pensamos em filmes de animação como filmes “para toda a família”. Pensamos nas tais tardes com a criançada no cinema ou no sofá cujo prazer a Pixar contribuiu para distribuir de forma mais equitativa. Mas, quando entramos na dimensão de “Ratatouille” e de “Wall-E”, já não estamos naquele tipo de filme da Pixar que oferece personagens para uns e outros se reverem; entramos na dimensão em que os românticos solitários se revêem. “Ratatouille” e “Wall-E” são filmes com um protagonista óbvio em vez de um ensemble; têm uma personagem que paira visivelmente sobre todas as outras e que, significativamente, dá nome ao próprio filme. Aquelas personagens que não vão em busca da família nem dos amigos, que não pedem a ajuda deles para irem juntos em busca de outra coisa qualquer; aquelas personagens que até podem ter de deixar isso tudo para irem em busca dessa outra coisa qualquer: do sucesso, do amor, do sonho.
https://www.youtube.com/watch?v=niD-jahFURU
“Wall-E” chegou-nos em 2008 pela mão de Andrew Stanton, o mesmo dos “Nemos”. Trouxe-nos a história de um robô solitário que recolhe lixo numa Terra que, precisamente por estar coberta dele, foi abandonada por toda a gente. Um robô que se vai apaixonar por uma robô, enviada para perceber se a vida voltou ou não a ser possível no planeta. Um ano antes, “Ratatouille” deu-nos um rato que deixa tudo – terra, família, amigos – para cumprir o sonho de ser cozinheiro em Paris. Nesse fabuloso filme a que Brad Bird empresta o dinamismo de “Os Incríveis” num universo à partida tão diferente e tão menos propício, um pormenor ilustra bem o que distingue a Pixar de todos os outros estúdios de animação, os seus filmes daqueles que se destinam meramente a crianças: não se pede ao espectador que suspenda a descrença e acredite que os animais falam. Animais e seres humanos não falam entre eles; têm de encontrar uma forma de comunicar. Um das zonas de “Ratatouille” é esse obstáculo e a sua superação, a linguagem; o modo como Remy, o rato, desenvolve uma forma de dirigir Linguini, o aprendiz de cozinheiro, puxando-lhe o cabelo. (E como esquecer a personagem do crítico, o formidável Anton Ego, com voz de Peter O’Toole?)
AS PESSOAS ESTRANHAS
“Uma Vida de Insecto”, “Carros” I e II, “Indomável”, “A Viagem de Arlo”
Bom, e depois há as pessoas estranhas, que são as pessoas que têm por filme preferido da Pixar um destes cinco. Ou mesmo todos os cinco – nesse caso, dizer que são estranhas, vejamos, é pouco. Nenhum envergonha a casa, longe disso, mas são como aquelas músicas perdidas a meio dos álbuns que nunca ninguém ouve em repeat. “A Viagem de Arlo” desqualifica porque da Pixar se espera sempre mais do que um filme de dinossauros. “Carros” I e II porque entretêm, mas só isso.
https://www.youtube.com/watch?v=cXWRAb84TTE
Não chegam a cumprir a missão porventura impossível de nos fazer sentir empatia por – ou pior, de nos fazer identificar com – personagens que são, na verdade, automóveis. “Indomável” porque a sua premissa não empolga. Ou então somos só nós que não nos sentimos imediatamente atraídos por filmes sobre arqueiras filhas de reis que desafiam os costumes numa Escócia medieval (?), caso em que pedimos desde já desculpa. E “Uma Vida de Insecto” porque, sendo um filme giro, continua a ser um filme sobre uma formiga que reúne um conjunto de insectos para enfrentar um grupo de gafanhotos gananciosos – e isso, quer queiramos, quer não – é estranho.
Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).