A primeira escolha foi fácil, muito fácil até. À primeira troca de mensagens, Filipe Raposo responde: “Girl From the North Country”. É a seleção imediata do músico quando lhe pedimos um tema de Bob Dylan para tocar ao piano — só ao piano, sem mais nada nem ninguém. Ou seja, nem voz nem letra. A ideia era simples: vejamos então como é que as canções de Dylan se saem sem aquela que é provavelmente a sua protagonista maior, a palavra, a mesma que este ano lhe deu o Nobel da Literatura, aplaudido por muitos, criticado por outros.

Duas conclusões rápidas: a música (sobre)vive na medida de quem a interpreta — no caso, mantém-se de pé com a classe e o bom gosto do homem do piano; contudo, e por melhor que sirva as medidas de um espaço como o do Teatro São Luiz, em Lisboa, não há maneira de ouvirmos a música sem escutarmos a poesia do americano. Mesmo que não haja uma voz que seja neste palco. Não é coisa espiritual nem matéria transcendente. É o que é. Fizeste-a bonita, Bob — bonita e sem remédio.

Filipe Raposo vem do jazz e da contemporânea. Mas a matemática das coisas da música, já se sabe, vai de menos infinito a mais infinito, incluindo os apeadeiros todos que encontrar pelo caminho. Filipe diz-nos o costume, que está “entre trabalhos”, de “concertos com o Sérgio Godinho, aqui mesmo neste teatro” até às menos prováveis “sessões na Cinemateca, com todos os tipos de público”, enquanto dá música a filmes de Buster Keaton, por exemplo.

E Dylan, que lugar ocupa o Nobel no meio desta vasta equação criativa? “Descobri o Dylan já em idade adulta, com o álbum The Freewheelin’ Bob Dylan [1963]”, diz-nos. “Aliás, seria mais correto dizer que o que me levou a esse álbum foi precisamente o tema ‘Girl from the North Country’, e que coincidiu precisamente com algumas viagens que fiz pelos países nórdicos. A relação emocional com o poema foi imediata, não havia escapatória.”

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[“Girl From the North Country” de Bob Dylan, por Filipe Raposo:]

Girl From the North Country

If you’re travelin’ in the north country fair
Where the winds hit heavy on the borderline
Remember me to one who lives there
She once was a true love of mine

If you go when the snowflakes storm
When the rivers freeze and summer ends
Please see if she’s wearing a coat so warm
To keep her from the howlin’ winds

Please see for me if her hair hangs long
If it rolls and flows all down her breast
Please see for me if her hair hangs long
That’s the way I remember her best

I’m a-wonderin’ if she remembers me at all
Many times I’ve often prayed
In the darkness of my night
In the brightness of my day

So if you’re travelin’ in the north country fair
Where the winds hit heavy on the borderline
Remember me to one who lives there
She once was a true love of mine

Filipe Raposo não é Dylanófilo. Em resposta a perguntas como “e que tal as canções?” ou “o Bob não é o maior?”, o músico e compositor é capaz de nos dar um “sim, mas…” como resposta. Ao mesmo tempo, é rápido a apontar uma das características mais importantes na obra do americano — “a sua universalidade”. E atenção que esta não é só uma palavra bonita. É a palavra escolhida porque é perfeita para a questão em cima do palco. Filipe continua e remata com o que neste caso mais nos interessa: “Contrariamente àquilo que costuma acontecer, enquanto pianista e compositor, o despertar para a obra de Dylan não começou com a música, mas muito mais com o conteúdo, com a mensagem poética que por ela passava. A música servia como veículo primordial para a sua mensagem.”

Mudamos nós o tempo verbal e arriscamos dizer que a função continua a ser a mesma. Dylan fez-se músico bem no meio da tradição americana da folk, dos blues e da country. E é por aí que há mais de 50 anos canta o que mais ninguém escreve, pelo menos não da mesma maneira: amor, morte, transcendência, fé ou a ausência dela, medo, mudança, futuro e passado. E sempre com a mania de que é pai, irmão e amigo de quem ouve, tudo ao mesmo tempo (ou então só uma espécie de velho sacerdote, sábio mas ainda com receio de meter a pata na poça).

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Filipe Raposo, o Steinway e o Teatro São Luiz. Na imagem não se vê Dylan mas ele passou por lá (Foto: Hugo Amaral)

Agora, vejamos aqui uma questão importante: como é que se leva isto tudo para um piano solo, entre a partitura e o improviso? Se a mensagem não está lá, como que é que se resolve a questão, ainda mais quando é o próprio intérprete a assumir que em Dylan tudo começa nos poemas? Caros amigos, lá porque a palavra não se ouve não quer dizer que esteja ausente. A explicação de Filipe Raposo para esta frase bonita: “A minha abordagem pianística parte precisamente da premissa poética, a palavra enquanto referência primordial.” Confusos? Isso é que não. Continuemos. Filipe fala-nos em “musicalidade poética”. Diz-nos que “a poesia contém, à priori, ritmo, melodia, harmonia, textura, estrutura e dinâmica, elementos de natureza musical”. Ou seja, se a música vai de empurrão, são as palavras que lhe dão balanço.

“Como transmitir conteúdo poético numa canção sem palavras? É a pergunta que sempre faço enquanto pianista.” Curioso, estávamos a pensar exactamente no mesmo. A resposta é bem mais prática que a pergunta: “Sensibilidade”. Outra palavra no alvo. “É essa a porta que permite o espanto e a admiração”. E quem é que ouve “Girl From the North Country” e consegue fugir ao tal espanto e à tal admiração? Vá lá, a sério? Nada, zero, ninguém. E quando Filipe a interpreta apenas ao piano, está tudo intocável, continuamos a ver Bob Dylan no meio de um inverno inacabável, a pedir a um conhecido viajante que mande saudades àquela que ficou para trás no tempo. Vai de quem a toca, já o tínhamos dito, mas Dylan armadilhou a canção e ouvi-la sem lhe ler a mensagem é um truque impossível de conseguir.

[“Knockin’ on Heaven’s Door” de Bob Dylan, por Filipe Raposo:]

Knockin’ On Heaven’s Door

Mama, take this badge off of me
I can’t use it anymore.
It’s gettin’ dark, too dark to see
I feel I’m knockin’ on heaven’s door.

Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door

Mama, put my guns in the ground
I can’t shoot them anymore.
That long black cloud is comin’ down
I feel I’m knockin’ on heaven’s door.

Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door
Knock, knock, knockin’ on heaven’s door

O mesmo acontece com “Knockin’ on Heaven’s Door”. Sim, a dos Guns N’ Roses, de Eric Clapton, de Antony & The Johnsons ou de Avril Lavigne. Mas, claro está, a tal canção que, na verdade, não é de nenhum destes e só a Dylan pertence. Filipe faz parte do mundo que a ouviu na voz de outros antes de ter chegado ao original. Mas também está no grupo dos que a encontraram no cinema: “A canção foi escrita inicialmente para o filme ‘Pat Garrett and Billy the Kid’, realizado por Sam Peckinpah em 1973 e lançada como single”, aponta. E lembra ainda que “não é a mesma coisa quando damos de caras com as palavras ditas por quem as escreveu”.

O exercício de levar a melodia ao piano é o mesmo que terá passado pela mente de Bob Dylan quando escreveu “Knockin’ on Heaven’s Door”: “É uma questão de simplicidade melódica”, confessa o pianista, “simplicidade que para mim tem uma relação direta com o cinema”. Dos filmes para o teatro, seja onde for, o raio da canção não pede cenário nenhum porque é rápida e eficaz a criá-lo por conta própria. Mais ainda naquele teatro vazio e, ao mesmo tempo, sem espaço para mais nada — que um Steinway afinado ocupa tudo e ainda bem.

Dois takes para a primeira canção — porque o intérprete tem exigência mas também tem gosto em ouvir “Girl From the North Country” em repeat: “A progressão harmónica é difícil de superar”, confessa; e outros dois para “Knockin’ on Heaven’s Door”, só pela dúvida. O rebate de um sino vizinho meteu-se no meio do tema mas a verdade é que ao primeiro ensaio já estava dado o toque de cowboy que a letra exige. “Não, ficamos com a primeira, ficou ótima”.

Claro que ficou, Filipe. Não ficou nada por dizer, mesmo com a ausência dos versos do Nobel. Ali em cima do palco fazemos uma aposta fácil: se continuássemos neste desafio, com mais canções e mais poemas, haveríamos de chegar sempre à mesma conclusão. A música de Dylan sem as palavras? Já dizia o outro, não é a mesma coisa. Mas descobrimos cedo que não é possível deixá-las à porta. O velho Bob sempre soube o que estava a fazer. Ainda sabe.

O Observador agradece ao Teatro Municipal São Luiz e a Filipe Raposo.