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Eles têm dois lavores. E a isto chama-se "slash career"

De um físico nuclear que também é pintor a uma designer/petsitter, há cada vez mais pessoas que não conseguem definir a profissão com uma só palavra. Aos motivos financeiros junta-se a realização.

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Há sempre um formulário, em algum processo burocrático do mundo, onde aparece aquela linha que se deve preencher com o emprego. E, hoje em dia, há cada vez mais pessoas com dificuldade em preenchê-la, não apenas pela realidade da falta de emprego ou do emprego precário, mas também porque já não há empregos para a vida e, cada vez mais, há pessoas que têm de usar o sinal de barra para justapor duas respostas — sinal esse que ajudou a batizar o fenómeno como “slash career” (slash quer dizer barra em inglês), ou seja, pessoas que lá arranjam maneira de manter duas (ou mais) carreiras em simultâneo.

Há várias razões para isto acontecer. A falta de emprego estável é uma delas, assim como a necessidade de conseguir mais fontes de rendimento para garantir um valor mensal que responda às despesas, mas também há quem goste de manter duas possibilidades em aberto, seja por amor a duas profissões diferentes, seja por não ter ainda decidido de qual dos dois lavores é que gosta mais. Seja como for, cada uma destas pessoas tem pelo menos duas histórias para contar, como se vê nos casos abaixo, e (atenção a quem prepara documentos oficiais) precisa de uma linha maior para a profissão – e, pelo menos, de uma barra.

Valério Romão, 43 anos: Escritor / Informático

A segunda edição de “Autismo”, livro publicado pela Abysmo, chegou agora às livrarias: estava esgotado e foi um dos livros que garantiu a Valério Romão o reconhecimento da crítica portuguesa e também algumas traduções. Agora, o escritor está empenhado em terminar o próximo romance, “Alzheimer”, que vai concluir a trilogia iniciada com “O da Joana” – “Está a três terços e quero muito acabar para partir para outra, sem hospitais, famílias desfeitas e doenças.”

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Normalmente escreve depressa, mas este livro está a ser mais lento do que os outros, à conta dos capítulos mais curtos, que cortam o ritmo. Podia ser culpa do trabalho a tempo inteiro, o outro que faz além da escrita: administração de sistemas informáticos. Não é, porque a isso Valério já está habituado. “Trabalho nesta empresa há dez anos e já trabalho a tempo inteiro há 20. O único período em que não escrevi foi enquanto o meu filho era pequeno. De resto, escrevo sempre aos fins de semana, ou marco férias só para escrever.”

© Henrique Casinhas/Observador

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

É comum dizer-se que em Portugal não se pode viver só da escrita, mas talvez não se imagine de forma tão concreta o que isso significa. Para Valério, significa passar o dia a “planear áreas de suporte e outdesk, fazer orçamentos, negociar com fornecedores e serviços, e ter um olho de supervisão desde as impressoras da empresa até aos acessos e e-mails”. Só depois é que vai para casa e pensa em escrever, sendo que o ponto de partida foi formar-se em Filosofia.

“Sabia que não ia trabalhar em Filosofia, não fui ao engano. É o curso da minha vida. Falei há pouco tempo com um colega sobre isso: nunca saiu de nós. E foi uma escolha consciente para ter ferramentas para escrever. Pensar é uma subestrutura da escrita que não deve ficar à mostra mas que deve estar presente.” A informática é que surgiu mais por acaso, “por carolice”, e depois foi acontecendo naturalmente, primeiro numa junta de freguesia e depois na empresa já referida.

“Tenho uma estrutura muito lógica, é um trabalho onde me sinto muito à vontade. Tem também um lado detectivesco que se relaciona com a literatura. Os escritores mantêm-se permanentemente curiosos acerca de tudo, e a informática tem essa atenção às subtilezas e aos detalhes. Ao mesmo tempo tem tudo também a ver com a estrutura de pensamento da filosofia. Não são áreas herméticas para as quais reservo áreas diferentes do cérebro.”

"A ideia do emprego para a vida toda já não é exequível e, ao mesmo tempo, as pessoas não se querem comprometer inteiramente com uma coisa apenas, porque isso anula uma série de outras possibilidades que também se poderiam explorar. Há um certo conforto psicológico nesta ideia de ter vários malabares no ar ao mesmo tempo.”
Valério Romão

Há uma vertente económica, de subsistência, nesta opção dupla, mas ao mesmo tempo há em Valério Romão a convicção de que a escrita nunca poderia ter um papel funcional. “Faz-me confusão pensar na escrita como profissão. Vejo-a como uma coisa que o resto da vida não deve contaminar com o seu aspecto pragmático. Como se houvesse ali um reduto de pureza, que é uma imagem um pouco romântica e tonta, mas que permite que não tenha de haver concessões.”

O equilíbrio, não fosse o facto de a informática ocupar tantas horas, estará então no meio. “Há uma rotina no meu trabalho que me estrutura. Além disso, a ideia do emprego para a vida toda já não é exequível e, ao mesmo tempo, as pessoas não se querem comprometer inteiramente com uma coisa apenas, porque isso anula uma série de outras possibilidades que também se poderiam explorar. Há um certo conforto psicológico nesta ideia de ter vários malabares no ar ao mesmo tempo.”

Hélio Luís, 36 anos: Físico nuclear / Pintor

Se alguém disser que há um reator nuclear mesmo à entrada de Lisboa, que está ali desde os anos 50 a cumprir funções de investigação, pode ser difícil de acreditar, mas é verdade. E é mesmo ao lado dele que trabalha todos os dias Hélio Luís, ainda que a sua ocupação no departamento de Física do CTN (Campus Tecnológico e Nuclear) não passe por aí, sendo ainda assim da ordem daquilo que a maioria das pessoas só associa a filmes de ficção científica: a aceleração de partículas.

“Trabalho aqui em investigação desde que saí da faculdade. Já tive cerca de 12 ou 13 bolsas ao longo destes anos, e estou neste momento com uma bolsa de Pós-Doc para mais três anos”, explica Hélio Luís. Quer isto dizer que não nos encontramos perante aquilo a que se pode chamar uma carreira no seu sentido mais tradicional, com contrato, descontos, situação estável: “Mas quase ninguém tem isso na área da produção científica em Portugal. Sinto que estamos numa fase de transição, porque as estatísticas indicam que a produção disparou, mas as carreiras estão congeladas desde a geração anterior à minha. É um problema urgente, que deve ser resolvido.”

© André Marques/Observador

ANDRÉ MARQUES / OBSERVADOR

Ainda assim, só não é uma profissão convencional nesse sentido. De resto, todos os dias há trabalho no laboratório, um trabalho exigente, que requer alguma dedicação. “Não é das 9h às 17h, tem um lado muito criativo, e dentro das ocupações que vejo à minha volta acaba por ser uma das mais estimulantes. Estou a trabalhar numa técnica que se chama AMS, mas se calhar não vale a pena aprofundar muito os pormenores, ou vale?”

Essa parte seria difícil de entender, mas também acaba por ser surpreendente a outra ocupação de Hélio Luís – a pintura. “Comecei a pintar apenas no quarto ano da faculdade, porque tinha uma namorada que estava a estudar conservação e restauro, que era o mais próximo de arte que se podia chegar numa faculdade de ciências, e ela tinha os materiais todos.” A partir daí, entre um grupo de viajantes que gostava de ir a museus e o tio de um amigo que era pintor e com o qual acabou por passar muito tempo, o trabalho foi-se desenvolvendo. Sempre à noite, aos fins de semana, e com férias marcadas para o propósito.

“Lembro-me às vezes daquele filme sobre o Basquiat, em que há um eletricista que diz que gosta de ter aquela profissão porque assim tem tempo para se desenvolver na pintura, mas entretanto já tem 50 anos… Espero não estar a fazer isso.” 
Hélio Luís

Houve até o período de um ano entre bolsas de doutoramento, lá para 2013, em que se sustentou através da venda de quadros. “Já devia ter feito mais exposições, mas todas as que fiz acabaram por surgir a partir de coincidências. Nem sequer tenho participado em concursos.” Não é apenas por falta de tempo que isso acontece, mas também por Hélio sentir que gostava de avançar um bocado mais: “Lembro-me às vezes daquele filme sobre o Basquiat, em que há um eletricista que diz que gosta de ter aquela profissão porque assim tem tempo para se desenvolver na pintura, mas entretanto já tem 50 anos… Espero não estar a fazer isso.” No caso de Hélio, a ciência nem sequer interfere nos temas dos seus quadros: “A vez em que teve mais interferência foi numa altura em que precisava mesmo de um pigmento e o andei a produzir.”

Por enquanto, ter os dois empregos é a situação ideal. Por um lado, “dá alguma calma, elimina a pressão.” Por outro, quando há um dia mais frustrante no laboratório é bom “ter um sítio para onde direcionar energias”. E, por fim, “numa época de especialistas, é bom lembrarmo-nos de pessoas que mantinham a cabeça aberta a várias áreas. Talvez seja um exemplo arriscado, mas o Oppenheimer desenvolveu a bomba atómica e ao mesmo tempo sabia citar de cabeça poesia oriental.”

Edite Queiroz, 39 anos: Psicóloga / Crítica de cinema

Quando era investigadora na área de psicologia clínica na Universidade de Coimbra, há oito anos, Edite Queiroz era também estudante de pós-graduação, dava consultas, fazia um programa de rádio, cantava num coro e dava formação. Depois mudou-se para Lisboa, para trabalhar na Ordem dos Psicólogos, e só durante um tempo é que ficou a fazer apenas uma coisa: “Tive de me habituar ao ritmo. Sentia que entre o trabalho e os transportes não tinha tempo para mais nada. Além disso, ainda não tinha estabelecido uma rede social. Mas aos poucos lá fui conhecendo pessoas e voltei a aproximar-me das coisas que fazia.”

O trabalho é exigente, com horário completo, e ainda por cima tem dado a Edite uma grande noção do mercado de trabalho: “Estou mais na área da psicologia do trabalho, a coordenar o gabinete de estágios profissionais, e a fazer trabalho de coaching, de análise de competências e empregabilidade. E é mesmo verdade que é muito relevante quando as pessoas demonstram ter outras competências fora da sua área profissional, estes soft skills. Às vezes é mais importante para o perfil profissional de alguém do que a experiência ou as competências técnicas.”

© André Carrilho/Observador

ANDRÉ CARRILHO / OBSERVADOR

Neste momento, as competências de Edite estão também aplicadas a uma das suas paixões – o cinema. “Em Coimbra, o meu programa de rádio era sobre isso. Não tinha conhecimentos em Lisboa para chegar à rádio, embora tenha vários projetos que ainda quero realizar, e então comecei a escrever crítica num blogue.” Depois disso, foi convidada para escrever numa webzine, a Lust Magazine, e mais tarde na Arte Factos. Agora coordena a equipa de cinema, edita artigos, prepara a agenda e garante conteúdos noticiosos.

“Escrever uma única crítica implica pelo menos quatro horas de trabalho, entre ver o filme, escrever, editar. Faço tudo isso ao fim do dia, à noite, ao fim de semana. É cansativo, claro, mas mesmo assim não quero deixar de o fazer.” No caso de Edite, nem sequer é uma questão financeira. Tem mais a ver com uma necessidade de “sistemização”desta atividade extra, para garantir que, mais do que um hobbie, é um compromisso.

“Tenho uma dimensão artística que nunca explorei profissionalmente. Fiz conservatório, estudei piano, danço. Ou seja, é uma habilitação que tenho mas que não aplico no meu trabalho enquanto psicóloga. Assim, mantendo as duas coisas, tenho uma forma de alimentar esta parte de mim, e sinto que não quero mesmo deixar isso cair. Ia sentir-me muito incompleta.”

“Tenho uma dimensão artística que nunca explorei profissionalmente. Fiz conservatório, estudei piano, danço. Ou seja, é uma habilitação que tenho mas que não aplico no meu trabalho enquanto psicóloga. Assim, mantendo as duas coisas, tenho uma forma de alimentar esta parte de mim, e sinto que não quero mesmo deixar isso cair. Ia sentir-me muito incompleta.”

Além disso, Edite acredita que as duas coisas não existem em planos completamente separados. “O lado artístico pode e deve ser incorporado na área da psicologia, de diversas maneiras.” E depois, para quem ler as críticas escritas por ela, irá perceber que a sua identidade profissional está sempre presente: “Mais do que escrever críticas especializadas, até porque não tenho qualquer formação em cinema para o fazer, o que me interessa sempre é olhar para o cinema sob o prisma da psicologia.”

Diana Martins, 32 anos: Designer de Interiores / Petsitter

Há quem se queixe de estar a tentar trabalhar e ter o gato sempre a sentar-se em cima do teclado do computador, mas não é o caso de Diana Martins. Quando o Caju ou a Inox, os dois gatos da casa, interrompem algum processo de planificação do design de interiores de um futuro hotel é apenas natural. E só seria complicado se fosse a Castanha, a cadela, a decidir fazer isso. De resto, animais e design convivem em perfeita harmonia.

“Trabalhar em casa, por conta própria, foi uma decisão minha, com todos os riscos inerentes, sem ter direito a folgas ou regalias, correndo riscos”, explica Diana, formada em Design de Interior e Equipamentos. Seja por opção ou não, o conceito de trabalhador independente está, logo à partida, muito em linha com a atual natureza do mercado de trabalho em Portugal. “Antes estava a trabalhar num atelier, mas cheguei àquele ponto em que percebi que não estava a fazer aquilo que queria fazer.”

DR

Era design de interiores, um trabalho que adora, mas não eram projetos pessoais. “Dava assistência ao projeto de outras pessoas, a ideias de outras pessoas, e acabava por fazer mais trabalho técnico do que criativo. Agora sou eu que faço tudo. O objetivo sempre foi esse: ter toda a liberdade para desenvolver os meus projetos.”

Foi também a partir dessa liberdade que acabou por nascer o outro projeto de Diana. Chama-se A Vizinha, e é um serviço de petsitting e dogwalking. “Há muitos anos que faço voluntariado em associações de animais, e continuo a fazer. Dentro desse trabalho, em que acabei por participar em vários processos de adoção de animais, fui-me sempre deparando com as questões das famílias adotantes sobre o que fazer com os animais nas férias, nos fins de semana, ou com famílias de acolhimento temporário que também precisavam que a associação arranjasse soluções de petsitting.”

“Trabalhar por conta própria foi uma decisão minha, com todos os riscos inerentes. Antes estava a trabalhar num atelier, mas dava assistência a ideias de outras pessoas, e acabava por fazer mais trabalho técnico do que criativo. Agora sou eu que faço tudo. O objetivo sempre foi esse: ter toda a liberdade para desenvolver os meus projetos.”
Diana Martins

A partir do momento em que começou a trabalhar em casa, a coordenar os próprios horários, e já habituada a dedicar um tempo diário aos animais dos outros, Diana começou a jogar com essa flexibilidade. “Percebi que podia ser um segundo trabalho, que podia preencher o meu dia com as duas atividades. E é verdade que o design de interiores, neste momento, não me permite que viva só disso. Mas acontece que neste momento faço exatamente as duas coisas que mais gosto de fazer. Sempre tive este contacto com os animais, mas agora, além dos meus e do trabalho na associação, tenho mais uns quantos animais dos quais posso cuidar.”

Hoje, mesmo que alguma empresa lhe fizesse uma proposta irrecusável para um trabalho a tempo inteiro na área do design, A Vizinha continuaria a existir. “Já tenho duas pessoas a colaborar comigo, porque há cães com passeios sobrepostos, há casas que são longe umas das outras. E se, tal como espero, o meu volume de trabalho no design aumentar, e tiver de arranjar mais colaboradores para os animais, tanto melhor. É bom sinal, e são sempre pessoas da minha confiança.” Isto porque, se fosse só para fazer dinheiro, podia arranjar outros part-times. Mas este projeto de petsitting é mais do que isso: “É também uma forma de partilhar com os outros os conhecimentos sobre animais de estimação que fui adquirindo ao longo de todos estes anos. Se puder melhorar a vida destes animais e dos seus donos por esta via, sem ser intrusiva, com algumas sugestões ou a esclarecer dúvidas, já valeu a pena.”

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