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HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Entrámos no mundo subterrâneo do Santuário de Fátima

Debaixo do santuário há uma reserva de milhares de ofertas de peregrinos, de terços de plástico, a bonecas e ouro. Poucos sabem que existe e muito menos por onde se entra. O Observador visitou-a.

Por volta da meia-noite, José Manuel Coentrão decidiu dar descanso aos seus homens. Estavam em alto-mar a bordo do ‘Virgem do Sameiro’, uma pequena embarcação de pesca registada nas Caxinas, concelho de Vila do Conde, depois de um dia de faina, e esperavam regressar a casa no dia seguinte. Iam aproveitar a noite para descansar. O mestre Coentrão era o único que não dormia ainda quando, perto das duas da manhã daquela terça feira de 29 de novembro de 2011, começou a sentir o barco inclinar-se para estibordo. Olhou em volta e viu água a entrar na embarcação por todo o lado — ainda hoje não sabe o que causou o súbito naufrágio.

Só teve tempo de se dirigir à pequena cabina que servia de dormitório aos pescadores, de os acordar a todos e de lançar a balsa salva-vidas ao mar com a tripulação lá dentro. José Manuel Coentrão, Prudenciano Pereira, Manuel Oliveira, António Fernando Marvalhas, João Coentrão e Vladyslav Tereskhov, os seis homens que andavam naquela noite à pesca de linguado com o ‘Virgem do Sameiro’, passaram 57 horas à deriva antes de serem encontrados, na sexta-feira seguinte, por um helicóptero da Força Aérea. Sobreviveram com água e medicamentos, depois de terem disparado, sem efeito, os dois very-light que traziam.

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Durante o tempo que estiveram perdidos, os homens começaram a entrar em pânico — especialmente António Fernando Marvalhas, que se pôs aos gritos e aos pontapés à balsa e teve de ser amarrado pelos companheiros — e só conseguiram acalmar-se quando, pegando num terço de plástico branco que um deles trazia ao peito por baixo da camisa, os pescadores começaram a rezar a Nossa Senhora, pedindo-lhe que os salvasse. Num ato de desespero final, o mestre da embarcação gritou uma promessa: se sobrevivessem, a tripulação iria pessoalmente à Capelinha das Aparições, em Fátima, entregar aquele simples terço ao santuário, para que ficasse junto da imagem de Nossa Senhora de Fátima, de quem eram devotos.

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O “milagre” aconteceu no dia 2 de dezembro, quando um helicóptero da Força Aérea, que participava num exercício militar junto à Figueira da Foz, se juntou às buscas e avistou a pequena barca à deriva.

A 7 de janeiro de 2012, mais de um mês depois do salvamento, José Manuel Coentrão e a sua tripulação deslocaram-se ao Santuário de Fátima para “entregar” o terço a Nossa Senhora. Dentro de uma caixa de madeira ornamentada, acompanhado de um ramo de flores e de uma réplica em miniatura do barco ‘Virgem do Sameiro’, o terço de plástico foi entregue pessoalmente pelo mestre da embarcação ao padre que celebrava a missa na Capelinha das Aparições naquele dia.

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A história dos pescadores das Caxinas é apenas uma das milhares que enchem os longos e incontáveis corredores das reservas subterrâneas do Santuário de Fátima, onde são armazenadas todas as ofertas que chegam pelas mãos dos peregrinos àquele lugar, além das inúmeras obras de arte e peças valiosas que o santuário possui. A maioria das ofertas são anónimas — o terço dos pescadores das Caxinas é uma das mais conhecidas, apesar de ser uma das menos valiosas em termos materiais — e são entregues em mão aos vigilantes que estão em permanência junto às traseiras da Capelinha das Aparições e que nunca chegam a saber a história da oferta.

Naquele lugar convivem os mais diversos objetos — desde terços de plástico e peças de ouro de valor inestimável — e todos são tratados de igual forma pela restrita equipa de conservadores do Santuário. Ali, aplicam-se às bugigangas e às joias valiosas as mesmas regras de segurança, os mesmos cuidados e as mesmas normas de conservação — tudo é manuseado com luvas e armazenado em imaculadas prateleiras brancas.

O terço dos pescadores de Caxinas está guardado nas reservas do Santuário de Fátima e é um dos objetos mais valiosos do espólio (Imagem: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

“Por motivos de segurança não podemos revelar a localização da entrada”

O aviso é-nos dado ainda antes de entrarmos neste mundo subterrâneo que se esconde debaixo do Santuário: por motivos de segurança, tendo em conta o valor dos milhares de objetos guardados na reserva, não podemos revelar a localização da entrada. Além disso, podemos filmar e fotografar alguns dos objetos e corredores, mas com restrições. Aceites as condições, entramos, acompanhados do diretor do Museu do Santuário, Marco Daniel Duarte, e da conservadora e restauradora Ana Rita Santos.

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Chegamos a um longo corredor com inúmeras portas de ambos os lados. O corredor é escuro, cinzento, com algumas — poucas — lâmpadas de néon para ajudar a ver o caminho. A imagem sombria daquele corredor contrasta, contudo, com a brancura das salas, muito iluminadas, brancas e limpas, cheias de prateleiras direitas e organizadas que fazem lembrar uma loja de produtos religiosos como tantas que existem na cidade.

A sala em que entramos está equipada com armários eletrónicos onde estão guardadas dezenas de pinturas. Nas paredes estão pendurados alguns crucifixos em fase de restauro, embrulhados em plástico. Este é um dos locais onde estão guardadas várias das obras de arte valiosas de que o Santuário de Fátima é proprietário. No espólio do santuário há obras de “arte erudita, como pintura e escultura”, mas também “ourivesaria e alfaias litúrgicas” que remontam até ao século XVII, explica Marco Daniel Duarte.

Na sala há uma escada. Descemos mais um piso e chegamos a uma nova divisão, esta muito mais ampla e com diversos corredores. Aqui, em vez de obras de arte erudita, encontramos todo o tipo de objetos. Uma bicicleta, um capacete de mota, brinquedos de criança, fotografias, crucifixos, candelabros, terços, peças em ouro, bonecos. Tudo catalogado da mesma forma, cada um com uma história muito particular. “Muitas das vezes sabemos quem oferece, outras vezes [a oferta] aparece completamente anónima”, destaca Marco Daniel Duarte, sublinhando que a maioria das ofertas vem de peregrinos “dos quais só se sabe o nome, e esse nome para nós continuará a ser anónimo, porque não conseguimos ter forma de chegar à pessoa concreta que ofereceu aquela peça”.

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“Nesse aspeto, um brinquedo de uma criança pode ser muito mais importante do que uma cruz peitoral de um bispo. Quem é que pode fazer essa valoração?”, questiona o responsável pela reserva do santuário. Para Marco Daniel Duarte, que gere no dia-a-dia o património artístico e material do Santuário de Fátima, “todas as peças, sejam de prata, de ouro, de plástico, de corda, de vidro ou de baquelite têm o mesmo valor, independentemente da sua materialidade”, uma vez que “dizem sobretudo sobre a experiência que cada pessoa tem com a Virgem Maria”.

Nos corredores muliplicam-se peças, das mais às menos valiosas (Imagem: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

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Prova disto é a forma como nos é trazido o terço oferecido pelos pescadores das Caxinas. Guardado na caixa de madeira original, a peça, apesar de ser de plástico, só é manuseada pela conservadora Ana Rita Santos, com luvas e com a maior das cautelas. “É um terço que do ponto de vista da matéria não tem valor, é um terço que não é de ouro, não é de prata, é um terço de plástico, industrializado, feito de corda e contas de matéria sintética, um terço muito gasto e que neste santuário tem um valor que está intimamente ligado com o valor da vida. Este objeto é de facto um objeto dos mais importantes deste santuário”, garante Marco Daniel Duarte, recordando que a história dos pescadores é uma das mais conhecidas dos objetos que ali estão guardados, a par das ofertas dos papas. “Todos conhecemos a história dos pescadores de Caxinas”, que entendem “que é por causa desse momento de oração que podem sobreviver a essa hora dura das suas vidas”.

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Pelas prateleiras daquelas salas subterrâneas, mais do que objetos, multiplicam-se histórias. “Cada objeto que aqui se encontra tem uma história”, afirma Marco Daniel Duarte. Se a maioria é desconhecida, a verdade é que com alguns objetos é possível “fazer uma conjetura, porque têm uma mensagem associada”, explica o responsável, admitindo no entanto que grande parte das históricas ficaram “nos corações de quem oferece”. Há, por exemplo, “uma muleta ou uma canadiana que deixou de ser usada e depois é oferecida à Virgem de Fátima, ou uma caneta que se calhar escreveu num exame e que é depois oferecida à Virgem de Fátima, enfim, várias histórias”.

Saber o número de objetos que estão guardados neste mundo subterrâneo é tarefa difícil, até para o historiador que está à frente da reserva. “Não temos o número exato, precisamente por este trabalho científico que estamos neste momento a fazer ter uma responsabilidade de tratar as ofertas que nos chegam neste momento, mas também aquelas que ao longo das várias décadas foram acumuladas no santuário”, admite Marco Daniel Duarte. “O nosso inventário não está atualizado a esse ponto”, acrescenta. É que o trabalho que a equipa de conservadores do santuário anda a fazer ainda hoje remonta a 1955, ano da fundação do museu. “Essas primeiras ofertas estão arroladas, mas não estão ainda inventariadas. Mas seguramente milhares e milhares de objetos estão aqui guardados”, conta.

Vestidos de noiva: de Fátima para África

Descendo mais uns degraus, mais um tesouro insólito: dezenas de vestidos de noiva, de todas as formas e feitios, catalogados e pendurados em cabides como numa loja de roupa. A história destes vestidos não é nova — já tinha sido notícia em 2011, quando o santuário divulgou a iniciativa de os ceder ou vender a noivas necessitadas. Na altura, o reitor do Santuário de Fátima dizia à Agência Lusa que “da maioria dos vestidos deixados ao Santuário, a quase totalidade é oferecida”, sendo enviada sobretudo para missões católicas em África. É uma “forma de ajudar as noivas desses países a concretizar o sonho de usar no dia do seu casamento um verdadeiro vestido de noiva”, explicava o responsável do santuário. Mas não só: muitas noivas também se dirigiam diretamente ao santuário para pedir um vestido de noiva, que é emprestado ou vendido por um preço simbólico às noivas carenciadas.

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A roupa é, na verdade, um dos bens mais oferecidos pelos peregrinos ao santuário: vestidos de noiva (e fatos de noivo também), trajes académicos ou roupas de batismo, por exemplo. O responsável pelo museu, Marco Daniel Duarte, explica que “é muito natural que o ser humano, quando tem determinados momentos específicos na sua biografia, queira relacionar esses momentos com o sagrado”. Por isso, detalha, “é muito comum que as noivas — e noivos, também — venham ao Santuário de Fátima, não apenas em Portugal, mas até de outros lugares do mundo, e ofereçam o seu vestido de noiva”. Para o historiador, esta oferta “representa a entrega daquela vida nova”, a partir do casamento, a Nossa Senhora de Fátima.

Alguns dos vestidos de noiva que o Santuário de Fátima guarda nas reservas.

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Quando chegam ao centro de ofertas do santuário, “os vestidos de noiva têm o mesmo tipo de tratamento que as outras peças”, explica Marco Daniel Duarte. “Obviamente, uns são mais valiosos, outros menos, essa valia vem sobretudo na questão da matéria de que são feitos, mas para o Santuário de Fátima todos os objetos são valiosos”, insiste. Contudo, estes vestidos são a única parte do espólio que o santuário vende ou oferece. “Esta questão dos vestidos de noiva está relacionada com o que a Igreja entende ser a forma de se relacionar com o resto do mundo”, explica o responsável pela reserva. Uma vez que os vestidos de noiva chegam em grande quantidade a Fátima, “o santuário entende que os deve colocar ao serviço de outras noivas que não tenham capacidade económica de comprar vestidos de noiva, que são muito caros, como sabemos”. Por isso, a instituição vende a preços simbólicos ou oferece alguns dos vestidos.

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Os restantes objetos ficam nas reservas, depois de devidamente tratados pela equipa de conservadores do santuário. Os técnicos tratam “cada peça com aquilo que a sua materialidade exige”, sendo por isso especialistas nas “mais diferentes áreas, que vão desde o papel à pintura e à escultura, precisamente para que se possa prolongar a vida desses objetos”, explica Marco Daniel Duarte. O objetivo do trabalho destes técnicos, acrescenta o responsável, é “prolongar a vida daqueles objetos, para que eles possam, neste lugar, ser memória dessa relação íntima que os peregrinos têm com a Virgem Maria”. Muito deste trabalho é coordenado pela conservadora Ana Rita Santos, que o Observador acompanhou durante o restauro de uma estátua de Nossa Senhora com os três pastorinhos, acabada de chegar ao espólio do santuário.

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Dos objetos recebidos pelo Santuário de Fátima, apenas uma pequena seleção foi colocada no museu, que pode ser visitado diariamente no edifício da reitoria. Depois da escolha inicial dos objetos a exibir, a exposição foi fixada, e atualmente só são adicionadas novas peças “em casos raríssimos, como aconteceu com a última vinda” de Bento XVI, que ofereceu a Rosa de Ouro (uma honra papal que já foi concedida duas vezes ao Santuário de Fátima). De resto, a exposição está fixada há vários anos e todos os outros objetos são armazenados nas reservas. O critério para compor o museu foi “a diversidade de materiais”, explica Marco Daniel Duarte. “A exposição tem um bom núcleo de objetos ligados ao metal precioso, ao ouro, precisamente os objetos de adorno pessoal que, na cultura portuguesa, como sabemos, são muito importantes do ponto de vista antropológico, estão relacionados com momentos de passagem”, destaca.

Tornando a subir as escadas, voltamos à sala de cima, onde se guardam dezenas de obras de arte em fase de restauro, e regressamos ao corredor escuro por onde tínhamos entrado. À porta, antes de sairmos, os responsáveis por aquele lugar relembram a necessidade de não divulgar a localização da reserva que acabávamos de visitar. Explicam que é fundamental, dada a facilidade em aceder ao Santuário de Fátima, garantir que o valioso espólio oferecido pelos milhares de peregrinos que visitam anualmente o templo se mantenham guardados em segurança. Os peregrinos continuarão a percorrer de uma ponta à outra o santuário, passando constantemente por cima do local que guarda alguns dos maiores tesouros de Fátima.

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