Numa altura em que as sondagens se multiplicam e os media sopesam os recursos, dinâmicas e apoiantes das campanhas de Hillary Clinton e Donald Trump, por vezes há elementos que escapam à contabilidade eleitoral mais ortodoxa.

Acontece que Donald Trump tem a sua visibilidade pública reforçada pela existência de três linhas de perfumes Trump (Success, Empire e Donald Trump: The Fragrance), da Trump Ice (água engarrafada, apenas disponível nos hotéis e clubes de golfe Trump), da Trump Winery (uma vinha e uma adega na Virginia), da Trump Super Premium Vodka (cujo slogan é “sucesso destilado”) e das Trump Steaks (costeletas).

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Num espírito bem diverso, não pode deixar-se de destacar o Trump Footlong, um cachorro-quente criado por The Wiener’s Circle, de Chicago, que, apesar da gabarolice implícita no nome (um pé são 30.5 centímetros), alberga uma salsicha com uns modestos 7.6 centímetros de comprimento – o Trump Footlong é uma sátira a uma inenarrável picardia entre Trump e Marc Rubio em que o debate de ideias e programas deu lugar à comparação do tamanho dos genitais dos (então) candidatos à nomeação republicana.

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Trump está bem representado na paisagem urbana, com várias Trump Towers – em Nova Iorque, Baku (Azerbaikão) e Istambul, havendo outras projectadas para Batumi (Geórgia), Manila (Filipinas) e Florida – Trump Plazas – em Nova Iorque, Atlantic City, Palm Beach, New Rochelle e Jersey City – e numerosos hotéis e campos de golfe (dois deles na Escócia e um no Dubai) e um casino (Trump Taj Mahal, em Atlantic City).

Hillary não tem torres nem perfumes, mas existem nos EUA 26 localidades com o nome “Clinton” (nomeadamente no Alabama, Carolina do Sul, Connecticut, Maine, Massachusetts, Oklahoma, Tennessee e Wisconsin) e mais sete com um nome composto que inclui “Clinton”, embora, claro, nenhum destes nomes tenha algo a ver com Hillary ou Bill Clinton. Se a toponímia reflectisse tendências de voto, a Pennsylvania daria indiscutível vitória a Hillary, já que conta com uma Clinton, uma Clintonville e um Port Clinton.

Embora não haja localidades com o nome do candidato republicano, em Agosto de 2015, Craig Cobb, um supremacista branco empreendeu esforços para rebaptizar o minúsculo povoado de Antler, no Dakota do Norte (27 habitantes) como Trump Creativity, vindo o “Trump” do apreço de Cobb pelo bilionário e “Creativity” do Creativity Movement, uma seita religiosa de inspiração supremacista fundada em 1973, cuja ideologia assenta na exaltação da raça branca e de que Cobb é figura cimeira. Porém, os habitantes de Antler ofereceram resistência à conversão da localidade numa utopia ariana e à mudança de nome.

A marca dos primeiros americanos

Os EUA são um país jovem (pelos padrões europeus) onde se amalgamaram culturas e línguas de todo o mundo – o que torna ainda mais absurdo o anseio por manter estrangeiros à distância que tomou conta dos sectores mais conservadores da sociedade americana – e sua toponímia poliglota, exuberantemente colorida e delirantemente caprichosa reflecte bem essa origem.

O colorido mais exótico vem das línguas faladas pelas inúmeras tribos nativas, que foram implacavelmente exterminadas mas deixaram atrás de si um caleidoscópio sonoro: Appomattox, Caloosahatchee, Chattanooga, Cuyahoga, Kaukauna, Kinnikinnick, Kiskiminetas, Koshkonong, Manitowoc, Mattamuskeet, Menomonee, Milwaukee, Narrangasett, Oconomowoc, Okeechobee, Ozaukee, Pensacola, Pokegama, Poughkeepsie, Punxsutawney, Shenandoah, Skookumchuck, Tallahassee, Thonotasassa, Totagatic, Tuscaloosa, Tuskegee, Wapakoneta, Wausaukee, Winneboujou…

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Distribuição das tribos índias no território dos EUA

Chicago (Illinois): O topónimo tem origem em “shikaakwa”, o nome dado pelas tribos Miami-Illinois a uma espécie de cebola selvagem (Allium tricorum) abundante no local, que foi adaptado pelo explorador francês Robert de LaSalle como “Checagou”.

Malibu (Califórnia): Quis o acaso que um topónimo que há décadas é sinónimo de surf tenha na sua origem um alusão a grandes ondas vinda de um tempo em que a ninguém ocorrera como poderia ser divertido cavalgar uma onda equilibrado sobre uma tábua: Malibu vem de “humaliwo”, que na língua dos índios Chumash significava “rebentação ruidosa”.

Manhattan (Nova Iorque): o território onde se ergueria Nova Iorque, que era habitado pelos índios Lenape, foi visitado pela primeira vez por um europeu em 1524 – o florentino Giovanni da Verrazzano estava ao serviço da coroa francesa, pelo que não é de estranhar que tenha baptizado a região como Nouvelle Angoulême. O território só foi cartografado em 1609, por Henry Hudson, um inglês ao serviço da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, e a designação da ilha entre os rios Hudson, East e Harlem como “manna-hata” foi registada pela primeira vez por um dos oficiais da expedição de Hudson. A presença duradoura dos holandeses na região rebaptizada como Nova Amesterdão começou em 1624, e em 1625 iniciou-se a construção de uma fortaleza em Manhattan. No ano seguinte, a ilha foi c

omprada aos índios por Peter Minuit (ou Minnewit), que presidia aos destinos da colónia da Nova Holanda, em troca de mercadorias e bugigangas no valor de 60 florins (cerca de 1000 dólares, em valor ajustado à inflação). Os holandeses devem ter ficado a rir-se da ingenuidade dos índios, mas Seyseys, chefe dos Canarsees (uma tribo do grupo Lenape), também não se saiu mal, já que vendeu um território que, na prática, não era controlado pela sua tribo, mas pelos Weckquaesgeeks. Na verdade, é duvidoso que os Seyseys ou qualquer outro índio tivessem sequer apreendido o conceito europeu de posse, aquisição e venda de terrenos.

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A compra de Manhattan aos índios pelos holandeses, por Alfred Fredericks, 1909

A etimologia de Manhattan é alvo de acesa polémica; há quem sugira que vem de “manna-hata” (“ilha com muitas colinas”), na língua dos índios Lenape, mas a hipótese que reúne argumentos mais sólidos é a que atribui a sua origem a “man-a-ha-tohn”, que significa “o lugar onde se obtém madeira para arcos e flechas”, por a ilha possuir um bosque de nogueiras que produziam uma madeira particularmente resistente.

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Hoje, em Manhattan vende-se e compra-se quase tudo o que se possa imaginar, mas tornou-se difícil encontrar boa madeira para arcos e flechas

Arizona: o nome do estado vem possivelmente de “ali sonak” (“pequena fonte”) na língua O’ogham. Há hipóteses concorrentes, mas menos credíveis, que radicam o nome no basco “haritz ona” (“bom carvalho”) e no espanhol “zona árida”.

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Monument Valley, Arizona

A água era vital na vida dos nativos americanos, quer onde era escassa, como no Arizona, quer onde era abundante e constituía fonte de peixe e via de comunicação, pelo que não é de admirar que muita da toponímia de origem indígena possua uma “componente aquosa”. Nos nomes de estados temos Connecticut (“terra junto ao rio comprido”), Michigan (“grande água”, uma alusão aos lagos Superior, Michigan e Huron), Minnesota (“água turva”), Mississipi (“grande rio” ou “pai das águas”), Missouri (“canoa escavada”), Nebraska (“rio pouco fundo”), Ohio (“belo rio”) e Wyoming (“na planície do grande rio”).

Num território fragmentado entre numerosas tribos, parte delas nómadas, e de relações pontuadas por disputas por terrenos de caça e escaramuças, é natural que muitos nomes reflictam o tipo de relacionamento com os vizinhos. Assim, temos Idaho, de “idaahé” (“inimigo”), o termo com que os Kiowa-Apache designavam os Comanches, Dakota, de“dakhota”, que significa “amistoso” ou “aliado” num dialecto Sioux, e Texas, de “taysha” (“amigos”, “aliados”) na língua dos Caddo.

Os nomes de chefes tribais estão presentes em cidades como Seattle, baptizada em 1852 a partir do nome do chefe Si’ahi (c.1786-1866), e Pontiac (Michigan), a partir do nome do chefe Bwandiag (c. 1720-1769), que combateu activamente os britânicos na região dos Grandes Lagos.

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O chefe Si’ahi, em 1864

Os nomes de tribos persistem em estados como Illinois, Iowa, Kansas, Massachusetts e Utah – sem contar com o Oklahoma, que vem de “okla humma”, que significa “povo vermelho” e pode ser visto como uma designação colectiva das tribos índias. O estado do Delaware tem o nome de uma tribo, mas não se trata de um nome indígena, já que Delaware foi o nome que os europeus deram aos índios Lenape que habitavam a costa nordeste dos EUA – Delaware vem de Thomas West, barão De La Warr, que era à data o governador da Virgínia.

Também há nomes de tribos em cidades como Cheyenne (capital do Wyoming), Mobile (Alabama), Mohawk (Indiana), Shawnee (Oklahoma), Sioux City (Iowa), Sioux Falls (Dakota do Sul), Waco (Texas), Wichita (a maior cidade do Kansas) e Wichita Falls (Texas). É oportuno esclarecer a pronúncia aparentemente incongruente da palavra “Sioux”, que em inglês soa como “siu”, resulta de ter sido recebida por via francesa, em cuja pronúncia o “x” é mudo. O “Sioux” dos franceses é uma forma abrevidada de “Nadouessioux”, que tem, por sua vez por origem na designação atribuída pelos Ojibwe aos Sioux: “Natowessiwak”, significando “pequenas serpentes” (depreende-se que a sua relação não seria cordial).

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Vala comum para as vítimas Sioux do massacre pela cavalaria americana em Wounded Knee, ocorrido a 29 de Dezembro de 1890

A influência francesa

Estamos tão habituados a ver os EUA como produto da colonização britânica que esquecemos que a França foi, durante algum tempo, um rival a ter em conta no desbravamento da América do Norte e que o rumo da história poderia ter sido outro. René-Robert Cavelier, Sieur de La Salle (1643-1687) explorou o vasto território entre o Canadá e o Golfo do México e entre as Montanhas Rochosas e os Apalaches, correspondendo aproximadamente à vasta bacia do Mississipi. Na década de 1680, La Salle tomou posse deste território em nome da França, baptizou-o como Louisiana, em homenagem a Luís XIV, e estabeleceu uma rede de fortes e de entrepostos que seriam o esboço para um império francês na América.

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La Salle toma posse da embocadura do Mississipi em nome da França; gravura de Jean-Adolphe Bocquin, c. 1870

Porém, a derrota na Guerra dos Sete Anos obrigou a França, em 1763, a ceder a parte oriental da Louisiana à Grã-Bretanha e a oriental a Espanha. Em 1800, sob a pressão do bully Napoleão, Espanha devolveria a sua parte à França, mas até o desmedidamente ambicioso Napoleão se viu obrigado a reconhecer que a França não possuía recursos humanos, materiais e financeiros para desenvolver aquele imenso território. Duas razões adicionais pesaram na decisão: a França mostrara-se incapaz de sufocar a revolta em Saint-Domingue (hoje Haiti), a sua maior possessão nas Caraíbas, e, por outro lado, perspectivava-se nova guerra com a Grã-Bretanha, que seria um forte sorvedouro de recursos. Assim, em 1803, Napoleão propôs aos EUA a venda, por 15 milhões de dólares, de toda a Louisiana Francesa, que era bem maior do que o presente estado da Louisiana: abarcava (na íntegra ou parcialmente) 15 estados dos EUA e duas províncias canadianas (que os EUA cederiam mais tarde à Grã-Bretanha). Inicialmente, os EUA estavam apenas interessados no porto de Nouvelle Orléans, mas acabaram por comprar o pacote completo.

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O negócio marcou o fim dos sonhos imperiais franceses no Novo Mundo, mas a língua francesa persisitiu na toponímia norte-americana – embora pagando o preço do estropiamento da pronúncia ou da sua conversão em algo foneticamente semelhante mas sentido completamente diverso – como atestam nomes como Bon Secour (Alabama), Malheur (Oregon), Grosse Tête (Louisiana), Terre Haute (Indiana), Eau Claire (Wisconsin), Fond du Lac (Wisconsin) e o muito poético Lac Qui Parle (Minnesota).

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Water Street em Eau Claire (65.000 habitantes)

Eis mais alguns exemplos:

Baton Rouge (Louisiana): A capital do estado da Louisiana não foi um polo pioneiro da indústria de cosméticos – o seu nome vem do “poste vermelho” que a expedição do Sieur d’Iberville encontrou no local em 1699, marcando a fronteira entre os territórios das tribos Houma e Bayagoula.

Boise (Idaho): O nome da capital do Idaho vem do francês “boisé” (“arborizado”), embora os americanos o pronunciem como “bôisi”, em vez de “buasé”.

Des Moines (Iowa): A etimologia mais popular é a que associa o nome a um grupo de monges (“moines”) trapistas franceses que aí se terá estabelecido no século XVII, mas na verdade os monges assentaram arraiais a mais de 300 Km de distância. Uma origem mais plausível é a palavra “moyen”, uma vez que a cidade está a meio caminho entre os rios Mississipi e Missouri.

Detroit (Michigan): A cidade foi fundada em 1701 pelo explorador Antoine de la Mothe, Sieur de Cadillac, cujo nome viria a baptizar vários lugares nos EUA, bem como a famosa marca de automóveis de luxo do grupo General Motors. Detroit, que viria a ser conhecida como Motor City, por ter sido, em meados do ´seculo XX, o maior centro da indústria automóvel mundial, começou por chamar-se Fort Pontchartrain du Détroit, com “Pontchartrain” a homenagear o Conde de Pontchartrain, Ministro da Marinha de Luís XIV (que também baptizaria um lago na Louisiana), e “détroi” aludindo ao estreito que une os lagos St. Clair e Erie. Como usual nestas apropriações, a pronúncia francesa de “détroi” (“détrua”) foi convertida num irreconhecível “ditroit”.

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A fábrica da Ford em River Rouge: Detroit nos tempos áureos

Little Rock (Arkansas): A capital do Arkansas começou por ser baptizada pelo explorador francês Jean-Baptiste Bénard de la Harpe, em 1722, como La Petite Roche, aludindo a uma pedra usada como referência pelos viajantes.

Pierre (Dakota do Sul): A capital do estado deve o nome a Fort Pierre, na margem oposta do Missouri, baptizado a partir de Pierre Cadet Chouteau, um comerciante de peles de origem francesa.

St Louis (Missouri): Fundada em 1764 por franceses e baptizada em homenagem a Luís IX de França (1214-70).

St Paul (Minnesota): Foi fundada por Pierre Parrant, um comerciante de peles franco-canadiano; começou por instalar-se junto a Fort Snelling, mas, uma vez que se reconverteu à destilação clandestina, em 1838 achou mais prudente afastar-se uns quilómetros das autoridades. O lugarejo nas margens do Mississipi ficou conhecido como “L’Oeil du Cochon” (Parrant tinha a alcunha de “Olho de Porco”), mas em 1841 o padre francês Lucien Galtier deu-lhe o nome mais cristão de St. Paul.

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“Comerciantes de peles descendo o Missouri”, por George Caleb Bingham, 1845. O título original do quadro era “Comerciante de peles francês e filho mestiço”, reflectindo uma situação frequente no relacionamento entre europeus e índios, mas foi julgado pouco próprio. O quadro também espelha a realidade dos primeiros tempos de implantação europeia na bacia do Mississipi: foi realizada por via fluvial e conduzida por comerciantes de peles de origem francesa

Prairie du Chien (Wisconsin): O “cão” que os exploradores franceses incluiram no topónimo não é o “cão da pradaria” nem sequer um bicho de quatro patas mas um chefe índio cujo nome, Alim, significa “cão”.

Illinois: O estado obteve o nome da tribo dos Illiniwek, a que os franceses que se estabeleceram na região em 1670 chamaram Illinois (“ilinuá”) e que os americanos pronunciam como “ilinoi”.

Vermont: O estado, situado na costa nordeste dos EUA, não fazia parte da Louisiana, tendo captado as influências francesas pela proximidade do Québec; o seu nome vem de “Les Verts Monts”. A capital do estado, Montpelier, foi baptizada em homenagem à Montpellier francesa, como reconhecimento pelo auxílio prestado aos EUA pela França na Guerra da Independência.

Ozark: As montanhas com este nome eram chamadas pelos franceses de “Aux Arcs”, uma alusão às muitas pontes esculpidas pela erosão que ocorrem na região.

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Clifty Creek Natural Bridge (Missouri), um dos muitos arcos naturais na região das Ozarks

O facto de muitos destes topónimos serem transmitidos por via oral levou a curiosas mutações entre o francês e o inglês, preservando apenas a semelhança fonética: Terre Noire transformou-se em Turnwall (curso de água no Arkansas), L’Eau Froide em Low Freight (curso de água no Arkansas), Saint Joachim em Swashing Creek (curso de água no Missouri), Les Monts Verts em Lemon Fair (curso de água no Vermont), Purgatoire em Picketwire (curso de água no Colorado), Lac du Chemin em Dishmaugh Lake (Indiana), Mauvaise Terre em Movestar (curso de água no Illinois), Glaise à Paul (alusão ao afloramento salino ou “glaise” existente nesta montanha no Arkansas) em Glazypeau, L’Ours em Loose (curso de água no Missouri), Narbonne (homenagem à cidade natal dos exploradores, na Provença) em Gnaw Bone, Bois Brûlé em Bob Ruly (Michigan), Marais d’Osier (“paúl dos salgueiros”) em Meredosia (Illinois), Bonne et Fidèle em Boneyfiddle (hoje um bairro de Portsmouth, Ohio) ou Sumac Couvert (uma alusão à abundância de arbustos de sumagre – “sumac” em francês) em Smackover (Arkansas).

Embarras, o prosaico nome dado pelos exploradores franceses a quedas de água e rápidos que embraçavam a sua progressão (que se fazia usualmente por via fluvial), converteu-se num requintado e neo-clássico Ambrosia.

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O padre jesuíta Jacques Marquette (1637-1675) teve papel determinante na exploração do interior da América do Norte e terá sido o descobridor da nascente do Mississipi. Quadro de Henry Farny, 1910

A batalha do Arkansas

Os nomes dos estados do Arkansas e do Kansas vieram de “akakaze” (“povo do vento sul”), a designação que outras tribos índias davam ao povo que ali vivia – e que chamava a si mesmo Quapaw. Os franceses converteram “akakaze” em “Arcansas” e quando, após a aquisição da Louisiana, em 1819, o território passou a fazer parte dos EUA, foi mantida a pronúncia francesa – “árcansâ” – e a grafia foi modificada para se ajustar à pronúncia: Arkansaw.

Mas William Woodruff, um tipógrafo e jornalista, que acabara de instalar-se no novo território fez uma campanha furiosa e obstinada para manter a grafia inalterada e a forma Arkansas acabou por prevalecer – só que uns seguiam a pronúncia francesa, “árcansâ” e outros pronunciavam “arkénsas” (por analogia com a pronúncia de “Kansas”). Havia opiniões fortes a defender uma e outra opção e na década de 1840, aconteceu mesmo que os dois senadores do estado tomaram posições opostas na polémica das pronúncias, de forma que o presidente do Senado se dirigia a um senador como “representante do Árcansâ” e ao outro como “representante do Arkénsas”. No resto dos EUA a pronúncia “arkénsas” começou a impor-se, mas isso só deu renovado fervor aos habitantes do estado para pugnar por “árcansâ”. Em 1880, o governo estadual nomeou uma comissão de sábios para estudar tão grave assunto e esta pronunciou-se a favor da pronúncia “árcansâ”, que foi aprovada oficialmente em 1881 e acabou por estender-se ao resto dos EUA, apesar de Kansas se manter como “kénsas” e de os habitantes de Arkansas City, uma cidade do Kansas, fazerem questão de pronunciar “arkénsas city”.

A influência espanhola

O território cedido pela Grã-Bretanha aos EUA em 1783, na sequência da Guerra da Independência, representa apenas 1/3 da área actual dos EUA. O resto foi obtido pela compra da Louisiana em 1803, pelas trocas territoriais com a Grã-Bretanha que acertaram o limite norte dos EUA pelo paralelo 49, em 1818, pela cedência do Território do Oregon (estados de Oregon, Washington e Idaho) pela Grã-Bretanha, em 1846, e pela compra do Alaska à Rússia em 1867.

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[Waterton Lake: A faixa sem vegetação corresponde ao paralelo 49, marcando a fronteira entre Canadá e EUA. No século XIX, os índios chamavam-lhe a “Linha da Medecina” (“medicina” no sentido de “magia”), pois tinha o inexplicável poder de deter os soldados americanos]

Ainda mais substancial foi a incorporação de territórios que tinham pertencido a Espanha – a Florida, em 1819 – e ao México – Texas, em 1845, e Califórnia, Nevada, Utah, Arizona e Novo México, em 1848. Ao contrário da Louisiana, em que a presença francesa era recente e esparsa, os territórios que tinham pertencido ao México tinham uma presença forte da língua espanhola, que deixou marcas profundas na toponímia do Sul dos EUA.

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A expansão dos EUA ao longo do tempo

Califórnia: não é inesperado que o nome do estado provenha do espanhol, o que é curioso é que tenha inspiração num popular romance de cavalaria cuja primeira edição conhecida data de 1510. Las sergas de Esplandián (As aventuras de Esplandián) é o quinto e derradeiro volume de uma série que teve início com Amadis de Gaula (o cavaleiro Esplandián é filho de Amadis), tendo os primeiros volumes sido adaptados de obras de autor anónimo por Garci Rodríguez de Montalvo (c.1450-c.1505). Las sergas de Esplandián menciona a Ilha de Califórnia, governada pela rainha Calafia e localizada a oriente do continente asiático “e muito próximo do Paraíso Terrestre; era habitada por mulheres negras, sem que houvesse ali um só homem, pois viviam à maneira das amazonas. Possuíam belos e robustos corpos, muita coragem e grande força […] As suas armas eram todas de ouro e do mesmo metal eram os arreios das bestas selvagens que domavam, pois em toda a ilha não havia outro metal senão ouro”. É possível que, para cunhar o nome da ilha, Montalvo se tenha inspirado na terra fantástica de Califerne, mencionada na Canção de Rolando.

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Capa de uma edição de 1587 de Las sergas de Esplandián

O primeiro europeu a chegar ao que é hoje a península da Baja California terá sido Fortún Ximénez, um amotinado da hoste de Hernán Cortés, em 1533. Ximénez foi morto pelos nativos mas os seus homens regressaram à base e relataram a descoberta a Cortés, que chegaria ao local em 1535 e a baptizou como “Ilha de Santa Cruz”. Apesar de, em 1539, outro homem de Cortés, Francisco de Ulloa, ter navegado até ao fundo do Golfo da Califórnia e ter concluído que a “ilha” era afinal uma península, o equívoco persistiu, talvez alimentado pela associação que entretanto se fez com a Ilha de Califórnia de Las sergas de Esplandián. O nome Califórnia surge pela primeira vez num mapa de 1562, designando o extremo sul da Baja California, mas num mapa holandês de 1622 surge como ilha, um erro que perduraria pelos séculos XVII e XVIII.

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Um mapa de 1650 representa a Baja California como uma ilha

Quem primeiro aportou às costas mais a norte, que fazem hoje parte do estado americano da Califórnia (a Alta California, para os espanhóis, por contraste com a Baja California mexicana), foi João Rodrigues Cabrilho, um português ao serviço da coroa espanhola, que andou por onde hoje são São Diego e São Francisco e acabou por perecer em consequência de uma escaramuça com os índios da ilha de Santa Catalina, em 1543.

Em 1579, Francis Drake tomou posse da Califórnia em nome da coroa inglesa, baptizando-a como New Albion, mas nem a posse nem o baptismo produziriam efeito. A Califórnia foi espanhola até 1821, mexicana até 1846 e americana a partir de 1848.

Há autores que defendem etimologias alternativas para “Califórnia”, como sejam a expressão latina “calida fornax” (“fornalha quente”), o que é uma descrição justa do clima do sul da Califórnia.

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Monumento a João Rodrigues Cabrilho (ou Juan Rodríguez Cabrillo, alegam os espanhóis) em Point Loma, perto de San Diego, o primeiro lugar de desembarque de europeus no estado da Califórnia

Florida: O primeiro europeu a aportar na Florida foi o espanhol Juan Ponce de León, a 2 de Abril de 1513, diz a lenda (infundada) que em busca da Fonte da Juventude. Não é claro se o nome que deu ao território resultou da abundância de flores ou de a descoberta ter sido feita no dia de Páscoa, que em Espanha também é conhecido como “Pascua Florida” (portugueses e espanhóis tinham o hábito de atribuir às terras descobertas o nome do feriado religioso ou do santo celebrado nesse dia do calendário).

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Mapa da Florida, possivelmente elaborado a partir dos relatos da expedição de Hernando de Soto (1539-43) e publicado no Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius, em 1584

Colorado: As águas ruivas (“coloradas”) do rio Colorado deram nome ao rio e ao estado. O baptismo foi feito pelo padre jesuíta Francisco Garcez em 1776.

Amarillo (Texas): A cidade e o rio obtiveram o nome a partir da cor amarela das argilas da região.

El Paso (Texas): O nome vem de um vau (“paso”) no Rio Grande, primeiramente identificado pelo explorador espanhol Juan de Oñate, em 1598. Pouco depois estabeleceu-se, na margem sul do rio, então chamado Rio Bravo del Norte, um povoado chamado El Paso del Norte, onde fica hoje Ciudad Juárez. Quando a Guerra Mexicano-Americana de 1846-48 fixou a fronteira entre os dois países no Rio Grande, os americanos ergueram na margem norte do rio um posto militar com o nome de The Post Opposite to El Paso – foi em torno dele que se desenvolveu a cidade que hoje é conhecida por El Paso. Entretanto, em 1888, El Paso del Norte (na margem sul, apesar do nome) foi rebaptizada como Ciudad Juárez, em homenagem a Benito Juárez, que cumpriu cinco mandatos como presidente do México.

Albuquerque (Novo México): A cidade mais populosa do Novo México foi fundada em 1706 e recebeu o nome de Francisco Fernández de la Cueva, 8.º duque de Alburquerque (uma terra perto de Badajoz, onde terão tido origem os Albuquerques portugueses, embora com um “r” a menos) e vice-rei da Nova Espanha em 1653-60. Alburquerque deriva provavelmente do latim “albus quercus” (“carvalho branco”), o que poderá ser uma alusão aos sobreiros comuns na região de Alburquerque e cuja cortiça adorna o brasão da família. Os americanos tomaram conta do Novo México em 1848, pelo tratado que pôs termo à Guerra Mexicano-Americana (e compraram mais uma fatia do estado em 1853), e pronunciam Albuquerque como “albacâqui”.

Los Angeles (Califórnia): Começou em 1781 como um pequeno aglomerado (pouco mais do que um rancho) chamado Pueblo de Nuestra Señora la Reina de los Ángeles del Rio de Porciúncula. Os índios Tongva, mais lacónicos do que os espanhóis, conheciam o local por Yaa.

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Pueblo de los Angeles, em 1869. Por esta altura, os mexicanos já tinham deixado cair a Nossa Senhora e a Porciúncula, pois o lugar era modesto demais para tão imponente nome

A influência da Antiguidade Clássica

Muitos dos fundadores de cidades do Novo Mundo quiseram dar um ar de respeitabilidade e antiguidade conferindo nomes ligados à Antiguidade Clássica. Assim, existem uma Olympia (capital do estado de Washington) e várias Arcadia, Corinth, Delphi, Ithaca, Sparta e Troy. Há até uma cidade de Greece (no estado de Nova Iorque), que começou por chamar-se Northampton e foi rebaptizada em 1822, em homenagem à luta heróica do povo grego para se libertar do jugo otomano, que começara em 1821 e apaixonou o mundo ocidental.

Athens (Georgia): Em 1801, uma comissão nomeada pelo governo estadual escolheu um monte sobranceiro ao Rio Oconee para construir uma universidade – o local foi baptizado em honra à cidade-símbolo da cultura clássica. A zona urbana foi crescendo lentamente em torno do campus universitário – em 1806 tinha 17 famílias e quatro lojas, hoje tem 115.000 habitantes.

Cincinnati (Ohio): A tentação mais imediata seria presumir que a cidade foi fundada por emigrantes italianos, mas a história é bem diversa. O nome originalmente atribuído ao lugarejo fundado em 1788, por Robert Patterson e Israel Ludlow, na margem fronteira ao local onde o Licking Creek desemboca no Rio Ohio foi Losantiville, um nome arrebicado que faz questão de exibir conhecimentos de cultura clássica, significando “povoado [ville] em frente [anti] à boca [os] do Licking [L]”, ou seja “L-os-anti-ville”. Mas no ano seguinte o governador do Território do Noroeste rebaptizou o povoado como Cincinnati, em homenagem à Society of the Cincinatti, uma associação patriótica fundada em 1783 por oficiais que tinham lutado na Guerra da Independência mas cuja pertença se tornara, entretanto, hereditária.

A sociedade visava a defesa dos ideais da Revolução Americana e a ética republicana, personificada por Lúcio Quíncio Cincinato (519-430 a.C.), um patrício romano que foi um exemplo de virtude, simplicidade e serviço desinteressado da causa pública: depois de ter sido cônsul, viu-se relegado, pelas vicissitudes da vida, a viver humildemente na sua pequena quinta, mas em 458 a.C., quando o Senado lhe pediu que assumisse o cargo de ditador a fim de defender Roma do ataque das tribos vizinhas, Cincinato largou o arado e desempenhou exemplarmente as suas funções. Mal a ameaça foi debelada, 15 dias depois, Cincinato dissolveu o seu exército e resignou ao cargo, embora a nomeação lhe conferisse o direito de ser ditador durante muito mais tempo.

Compreende-se o apreço da elite da jovem democracia americana por este modelo de virtudes republicanas, mas é preciso não esquecer que Cincinato foi também um empedernido defensor dos privilégios dos patrícios face aos da plebe romana. Mas há que admitir que há cidades que homenageiam gente com máculas bem mais reprováveis.

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“Cincinato recebe os enviados do Senado romano”, por Léon Bénouville, 1844

Philadelphia (Pennsylvania): A “cidade do amor fraternal”, do grego “philéo” (“amor”) + “adelphos” (“irmão”), foi fundada por William Penn (que deu o seu nome à Pennsylvania), um quaker que, por ter sido vítima de perseguição religiosa na sua Inglaterra natal, aspirava a que o seu domínio americano fosse um lugar em que imperasse a tolerância e a liberdade de culto.

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William Penn assina um tratado de amizade com os índios Lenape, junto ao Rio Delaware, onde se ergue hoje a cidade de Philadelphia. Quadro de Benjamin West, c.1771-72

Memphis (Tennessee): A primeira construção no local foi um forte espanhol chamado San Fernando de las Barrancas, mas a cidade nas margens do Mississipi só foi fundada em 1819, com um nome que alude à antiga capital egípcia, nas margens do Nilo. “Memphis” é a forma latina e grega do copta “Menfe”, que por sua vez vem do egípcio “Men-nefer”, que significa “bela e duradoura”.

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Memphis, Tennessee, c.1854-57

Já a Alexandria situada na Virgínia não tem, ao contrário do que é corrente afirmar-se, nada a ver com a cidade fundada por Alexandre o Grande na foz do Nilo: homenageia o capitão Philip Alexander II, que em 1746 ergueu as primeiras construções no local. Também é frequente que se associe Atlanta (capital e maior cidade da Georgia) a Atalanta, a caçadora da mitologia grega que consagrou a sua virgindade a Artémis, mas a origem do nome é bem mais prosaica: a cidade, nascida em 1837, começou por chamar-se Terminus, por ser aí que terminava a linha ferroviária da Western & Atlantic Railroad, e passou, em 1842, a Marthasville para homenagear a filha do governador do estado. Nos anos seguintes, a cidade tornou-se num importante nó ferroviário, o que levou o engenheiro-chefe da Western & Atlantic Railroad a propor que fosse rebaptizada como Atlantica-Pacifica, uma forma de reconhecer a importância da Western & Atlantic Railroad no seu desenvolvimento; em 1847, a assembleia municipal optou por uma versão mais breve: Atlanta.

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Atlanta, c. 1865. Em fundo, a estação de caminho de ferro

A loucura de Seward

O Alaska foi a última grande aquisição territorial dos EUA – foi comprado à Rússia, em 1867, por 7.2 milhões de dólares (120 milhões, ajustando à inflação), o que equivale a 4.7 cêntimos por hectare. Hoje, parece ter sido a maior pechincha de todos os tempos, mas na altura houve quem rotulasse o negócio, levado a cabo pelo Secretário de Estado William H. Seaward, como “a loucura de Seward” ou “a geleira de Seaward”.

O primeiro europeu a chegar ao Alaska terá sido o russo Semyon Dezhnev, em 1648, mas foi Vitus Bering quem explorou a região com mais detalhe, em 1741, mas empregando o pouco imaginativo procedimento de baptizar os acidentes topográficos sempre com o nome do santo correspondente no calendário religioso ao dia da descoberta (o baptismo do Estreito de Bering não é de sua lavra, mas do britânico James Cook). Mas a Rússia começou, pouco depois, a enfrentar a concorrência de Espanha, que enviou várias expedições para o norte do Pacífico entre 1774 e 1800, o que explica a presença na toponímia do Alaska de nomes como Valdez, Chacón ou Cordoba (há muitos ensaios em história alternativa, mas nenhum que explore a possibilidade de um Alaska espanhol – quem sabe se os deputados da Comunidad Autónoma de Alaska não teriam evitado o longo impasse na constituição de um novo governo espanhol).

Por outro lado, as ambições russas na costa pacífica da América não se confinavam ao Alaska: a Russkaya Amerika (América Russa) pretendia estender-se até ao norte da Califórnia (Alta California) e a Companhia Russo-Americana, constituída em 1799 e colocada sob o controlo directo do Ministro do Comércio russo, estabeleceu fortes e povoados como primeira fase de um amplo projecto de colonização.

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A América Russa: a verde-escuro o território efectivamente detido pelo Império Russo, a verde-claro o território reclamado

O ponto mais meridional da presença russa no América foi a colónia de Fort Ross (Califórnia), perto de Bodega Bay (a que os russos chamaram Baía de Ruminyantsev). A colónia de Fort Ross, cujo presente nome deriva não do antropónimo Ross mas de “rus” (“russo”, em russo), deveria fornecer produtos agrícolas às colónias no Alaska e ser um entreposto no comércio de peles, mas quando a sobre-caça fez as capturas diminuir vertiginosamente, a Companhia Russo-Americana pôs a colónia à venda (1841). Assim se esfumavam os sonhos de Dmitri Zavashalishin, jovem oficial que, em 1824, tentara convencer a corte russa a aprovar o seu plano de incitar os habitantes da Califórnia a separarem-se do México e a unirem-se à Rússia, sendo a Companhia Russo-Americana recompensada com uma ampla concessão abarcando boa parte do Oregon e Califórnia.

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O forte que defendia a residência do governador russo em Novo-Arkhangelsk, 1827

Entretanto, no Alaska, a colónia de Novo-Arkhangelsk (hoje Sitka, a partir de Shee At’ika, o nome do local na língua dos nativos Tlingit) foi estabelecida em 1799, mas foi destruída pelos Tlingit em 1802. Depois de refundada, em 1804, cresceu a ponto de se tornar no mais importante povoado da América Russa e de em 1848 ter ganho uma catedral ortodoxa. A segunda colónia russa mais importante era Pavlovskaya Gavan (Porto de S. Paulo), hoje Kodiak (de “kadiak”, “ilha”, na língua dos Alutliq).

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O navio de guerra russo Neva ancorado no Porto de S. Paulo, 1814, numa gravura a partir de uma pintura do capitão Lisiansky

Na verdade, as marcas russas na toponímia esbateram-se rapidamente após o negócio de 1867, pois os cartógrafos americanos, ao contrário do que tinha acontecido com os nomes franceses e espanhóis em ocasiões anteriores, procederam à tradução ou substituição dos nomes russos. Persistiram apenas em cidadezinhas como Nikisky, Russian Mission (onde em tempos existiu um entreposto de comércio de peles da Companhia Russo-Americana), Morzhovoi (“vila da morsa”) e Kalifornsky (7850 habitantes), assim baptizada por ter sido fundada por um índio de uma tribo local que trabalhara para os russos em Fort Ross, na Califórnia, e que por isso passou a ser conhecido como “Kalifornsky” (Garci Rodríguez de Montalvo nunca poderia ter adivinhado quão longe a sua invenção chegaria).

Por outro lado, o nome do rio Matanuska, que soa a índio, vem afinal do nome que os russos lhe deram, Mednorechka (“cobre”, uma alusão ao minério que encontraram no seu leito), que foi sendo alterado para Mednoviska, Midnooski e Matanuska.

Nome, que foi em tempos a cidade mais populosa do Alaska, obteve o seu nome de forma insólita: ao copiar uma carta náutica do Estreito de Bering, um cartógrafo terá interpretado a anotação “name?” junto a um cabo ainda não baptizado como “Nome”. O cabo passou a chamar-se Nome e a cidade mais próxima também. Uma tentativa, em 1899, para mudar o nome para Anvil City acabou por não surtir efeito. Anchorage, que com 300.000 habitantes, representa 40% da população do Alaska, nasceu em 1914 como um aglomerado de tendas na embocadura de Ship Creek, uma enseada com boas condições de “ancoragem”.

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Assinatura do tratado em que a Rússia cedeu o Alaska aos EUA, 1867; William H. Seaward é o segundo a contar da esquerda

Que nome dar aos habitantes de Idiotville?

Compreende-se a estratégia de Eureka (Califórnia), que foi assim baptizada para atrair pesquisadores de ouro, mas parece pouco provável que seja o nome a atrair gente para Accident (Maryland) – resta saber se os seus 325 habitantes escolheram lá viver ou se acabaram lá por acidente. Se a alguém for dado escolher viver em Idiotville (Oregon) ou Normal (Illinois), é duvidoso que opte pela primeira. O Oregon tem também a cidade de Boring, que, num gesto de auto-ironia (ou simplesmente para tentar afastar o tédio), se geminou com Dull, na Escócia.

Tarzan (Texas), fundada em 1927, tem hoje 2000 habitantes e, provavelmente, uma população de chimpanzés e elefantes bem acima da média do estado. Depois de ter sido Lou, Dresden e Berwyn, em 1941 Gene Autry (Oklahoma) passou a homenagear o cantor e estrela de cinema e TV Gene Autry (1907-1998).

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Gene Autry (com a guitarra), 1934

A sonoridade pseudo-arménia da cidade mineira de Uravan (Colorado) é afinal uma combinação de “urânio” e “vanádio” – entretanto, as minas esgotaram-se, pelo que Uravan é hoje uma cidade fantasma. Quanto às ressonâncias exóticas de Acipco (Alabama), Alcoa (Tennessee), Gamerco (Novo México), Latexo (Texas) e Weslaco (Texas), resultam simplesmente de serem acrónimos das empresas que as fundaram – respectivamente a American Cast Iron Pipe Company, a Aluminum Company of America, a Gallup American Coal Company, a Louisiana Texas Orchard Company e a W.E. Stewart Land Company.

As “company towns”, em que quase todas as habitações e edifícios comerciais da povoação são propriedade de uma empresa, que é também o maior (ou o único) empregador da cidade, conheceram o apogeu na viragem dos séculos XIX-XX – chegaram a ser 2.500 e a albergar 3% da população dos EUA, mas hoje ou perderam a sua pujança ou estão transformadas em cidades-fantasmas, como é o caso de Climax (Colorado), fundada pela Climax Molybdenum Company, empresa devotada à mineração de molibdénio, ou de Betteravia (Califórnia), fundada pela Union Sugar Company, cujo negócio era a produção de açúcar a partir da beterraba sacarina.

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Betteravia, Califórnia, c.1887

Mudar de nome (e de vida?)

Se há povoados com nomes de empresas por serem “company towns”, também há executivos camarários que acedem em vender, definitiva ou temporariamente, o nome da cidade a uma empresa, ou porque crêem que um golpe publicitário espectacular os vai colocar nas bocas do mundo, atrair investidores e dinamizar uma economia local entorpecida, ou porque as finanças da autarquia exibem deficits preocupantes.

Topeka (Kansas): talvez por o seu nome ser o mais rústico e terra-a-terra que possa imaginar-se – na língua dos Kansa-Osage significa “um lugar bom para cavar batatas” – em 2010 o presidente da câmara de Topeka anunciou que durante o mês de março seguinte a cidade se chamaria “Google, Kansas, a capital da fibra óptica”. A manobra visava, aparentemente, convencer a Google a dotar a cidade de um dos mais avançados sistemas de fibra óptica do mundo, mas no ano seguinte, a Google escolheu a cidade vizinha de Kansas City para fazer esse investimento.

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Dish (Texas): Clark (201 habitantes) mudou o nome para Dish em 2005, por acordo com a companhia de televisão por satélite Dish Network, em troca de 10 anos de assinatura gratuita de TV e um gravador de vídeo digital para cada habitante.

Half.com (Oregon): Halfway (288 habitantes), assim chamada por o posto de correios que esteve na sua origem se situar a meio caminho entre duas outras cidades, recebeu da firma de comércio electrónico Half.com (entretanto adquirida pela eBay) 110.000 dólares e 20 computadores para uso escolar, em troca da mudança de nome por um ano no ano 2000.

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Mas nem todas as mudanças de nome são motivadas pelo vil metal: no caso de Wineville (Califórnia) foi o bom nome. Era uma cidadezinha pacata mas o rapto, abuso sexual, assassinato e desmembramento de várias crianças pelo jovem proprietário de um aviário, em 1926-28 atraiu tão “má imprensa” (o caso ficou conhecido como Wineville Chicken Coop Murders), que em 1930 a localidade mudou o nome para Mira Loma.

Os 7.258 habitantes de Mahomet (Illinois) têm razão para estarem apreensivos com uma vitória de Donald Trump: se ele prometeu interditar a entrada nos EUA a todos os muçulmanos, será de esperar que construa um muro em torno de tão suspeitoso povoado. Mahomet foi fundada em 1832 com o corriqueiro nome de Middletown, mas o facto de haver outra cidade com o mesmo nome no mesmo estado gerava confusão com a correspondência, pelo que em 1871 recebeu o nome que hoje tem, por via do nome de uma loja maçónica local. Para aumentar a bizarria do caso, “Mahomet” é a grafia francesa de Maomé, não a inglesa (“Mohammed”).

Midway (Idaho) é nome tão corriqueiro como Middletown, pelo que em 1950, o lugarejo mudou de nome para Atomic City – a mudança é insensata face à sensibilidade actual do cidadão médio perante a energia nuclear, mas é preciso lembrar que nos anos 50 ela era cool e moderna. Atomic City possui uma loja, um bar e 29 habitantes, o que minimiza os estragos em caso de acidente nuclear.

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A buliçosa baixa de Atomic City, em hora de ponta

Havendo centenas de Hot Springs pelos EUA, a Hot Springs de Sierra County, Novo México mudou de nome, em 1950, e rebaptizou-se como Truth or Consequences, em homenagem ao famoso concurso radiofónico (vamos a ver se nenhuma terriola esquecida de Portugal reivindica o nome de Malucos do Riso). Bee Pee, após anos a ser alvo de piadas (o nome pode ser interpretado como “mijo de abelha”) mudou de nome para Chevrolet. A entrada dos EUA na I Guerra Mundial já tinha produzido alguma limpeza de nomes germânicos e a II Guerra Mundial trouxe mais duas: Swastika (Arizona) mudou para Brilliant e Germania (Washington) para Wellpinit.

Toponímia presidencial

Como é habitual nos (relativamente) jovens países do continente americano, em que havia território virgem a ser desbravado e em que novas áreas urbanas estavam a brotar permanentemente, há muitas figuras políticas presentes na toponímia. Os presidentes dos EUA estão generosamente representados nos nomes das cidades americanas – embora sem nada tão sonoro como Presidente Prudente, no Brasil, que homenageia Prudente de Morais (1894-98) – e o pai-fundador Washington, além de dar nome à capital, foi mesmo imortalizado no nome de um estado.

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George Washington, 1.º presidente dos EUA (1789-97), por Gilbert Stuart, 1797

Thomas Jefferson deu nome a Jefferson City, capital do Missouri, bem como a muitas outras cidades e um rio, James Madison baptizou Madison, capital do Wisconsin e Andrew Jackson está representado em Jackson, capital do Mississipi, que se chamava originalmente LeFleur’s Bluff, a partir do nome do comerciante franco-canadiano que a fundou, bem como em Jacksonville (Florida), para mencionar apenas as duas maiores cidades com o seu nome.

Houve uma proposta para mudar o nome do Wyoming para Lincoln, mas foi rejeitada, alegando que o nome do estado deveria provir de algo que lhe fosse intrínseco, pelo que Abraham Lincoln teve de contentar-se em dar nome a uma capital estadual, Lincoln (Nebraska), fundada em 1856 como Lancaster e rebaptizada em 1869, bem como a uma miríade de outras cidades (obviamente, poucas se situam nos antigos estados confederados).

Os EUA são tão vastos e populosos que mesmo James Buchanan, que fica sempre nos últimos lugares nos rankings de presidentes dos EUA, sejam quais forem os votantes e os critérios considerados, viu o seu pouco prestigiante nome ser atribuído a uma cidade no Michigan (4456 habitantes) e a dois povoados, no Missouri e no Tennessee, bem como a três condados, no Iowa, Missouri e Virginia.

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Porém, a partir da segunda metade do século XX os nomes dos presidentes deixaram de ser apostos a cidades e acidentes topográficos. A excepção foi John Fitzgerald Kennedy, cujo nome foi dado em 1963 ao Cabo Canaveral (Florida), por Lyndon Johnson, por sugestão da viúva do presidente assassinado pouco antes. Porém, a população local não gostou da ideia e, por pressão desta, em 1973 o Cabo Kennedy voltou a chamar-se Canaveral, designação que provém do espanhol “cañaveral” (“canavial”) e surgia já em mapas do início do século XVI.

Aos presidentes americanos do século XXI resta-lhes, pois, como aos chefes de Estado e de Governo europeus, dar nome a escolas, rotundas e jardins. Porém, o ego de Donald Trump e a profusão de Trump Towers e Trump Plazas faz recear que, na eventualidade de ser eleito, estará a pensar acrescentar um quinto rosto ao Monte Rushmore (ainda que a sua franja vá colocar problemas de engenharia difíceis de resolver) e o nome a um glaciar no Alaska, para frisar a sua convicção de que as alterações climáticas são uma “aldrabice inventada pelos chineses”.

A dar crédito à carta aberta subscrita, em Agosto passado, por meia centena de antigos responsáveis republicanos na área da segurança nacional, a maioria deles assessores e membros de gabinete de George W. Bush, Donald Trump seria “o presidente mais imprudente da história americana”, pois “tem demonstrado repetidamente uma reduzida compreensão dos interesses vitais da nação, dos seus complexos desafios diplomáticos, das suas indispensáveis alianças e dos valores democráticos”, pelo que a eventual passagem de Trump pela Casa Branca poderia ser assinalada com o baptismo de uma cidade como Presidente Imprudente.