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"Estás despedido!" O que eu aprendi sobre o Presidente Trump ao ver todos os episódios de "O Aprendiz"

Como perceber melhor o primeiro mês do novo Presidente? Simples: vendo as mais de 22 horas do reality show "O Aprendiz", apresentado por Trump em 2004. O Miguel Pinheiro ofereceu-se para o sacrifício.

Uma gravata enorme, que tanto pode ser um lenço como um guardanapo? Confere. Um aperto de mão que mais parece um golpe de karate? Confere. O uso de “factos” alternativos para descrever uma realidade que só existe na sua cabeça? Confere. Não é Trump na Casa Branca em 2016, é Trump na primeira temporada do reality show “O Aprendiz” em 2004. O primeiro é igual ao segundo; o segundo é igual ao primeiro. Estava tudo lá, bastava ligar a televisão.

Parecia só mais um programa de TV. Um grupo de 16 concorrentes iam lutar entre si, durante 13 semanas, para serem escolhidos por Trump para liderar um dos seus projetos imobiliários — salário anual para o vencedor: 250 mil dólares. Viviam todos na mesma casa e tinham que cumprir uma tarefa por programa (a primeira de todas foi vender limonadas na rua). No final de cada semana, um deles era demitido. E no papel de Teresa Guilherme estava Donald Trump.

Olhando para trás, alguns críticos do 45.º Presidente americano acham que tudo começou ali. O The New York Times lembrou que “milhões de telespectadores” assistiram a uma versão “altamente elogiosa, altamente ficcionada” de Trump, sem referências aos seus fracassos nos negócios. E Conor Friedersdorf, que escreve na Atlantic, apelou, de forma lancinante, à estação de televisão NBC que divulgasse na Internet todas as gravações alguma vez feitas no programa, para que os eleitores soubessem como Trump realmente se comportava nos bastidores, insinuando que se teriam passado coisas terríveis.

Mas não é preciso tanto. Aquilo que está disponível sobre a primeira temporada do programa já é suficiente. Quem vir de seguida os episódios que foram emitidos passará um dia e uma madrugada inteiros em frente da televisão. No final, terá poucas dúvidas: na linguagem, nas manias, no ego, no aperto de mão, na relação com Melania e nas demonstrações de autoridade, Trump já era Trump — e continuou a ser Trump até hoje. Incluindo o mês que já leva na Casa Branca.

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A linguagem

Donald Trump gosta de dizer, sem ironia, que “conhece palavras, tenho as melhores palavras”, mas, se um dia fosse obrigado a reduzir o seu vocabulário a apenas uma palavra (em vez das 12 ou 13 que usa habitualmente), seria razoável apostar que a sobrevivente seria “tremendous“, que pode traduzir-se por fantástico, fabuloso ou sensacional. Na última conferência de imprensa que deu, há poucos dias, usou essa tremenda palavra seis vezes. A sua afeição por ela é tão grande que foi possível fazer um vídeo com um best of de 2 minutos e 43 segundos em que Trump a usa repetidamente, sem mostrar sinais de fastio ou fadiga

https://www.youtube.com/watch?v=pFz3Y3Zyt8o

Na primeira temporada de “O Aprendiz”, a palavra aparece pela primeira vez no episódio 6, aos 6 minutos e 24 segundos. Aí, Trump descreve o “tremendous success” que teve ao construir um ringue de patinagem em Central Park.

A história tem graça. O milionário conta aos concorrentes: “A cidade gastou sete anos e 21 milhões de dólares a tentar construir este ringue e mesmo assim não conseguiu. Eu cansei-me de assistir a isso, fui ter com o presidente da Câmara e disse-lhe: ‘Quero construir o ringue. Vou fazê-lo em quatro meses e vai custar uma pechincha’. Construí-o em três meses, custou menos de 2 milhões de dólares e tem sido um fantástico [no original: “tremendous”] sucesso”.

Na realidade, como se lê na biografia Trump Revelado, de Michael Kranish e Marc Fisher, Nova Iorque gastou apenas seis anos (e não sete) e 12 milhões (e não 21), mas não nos deixemos prender por detalhes. O objetivo de Trump em “O Aprendiz” era mostrar que conseguia construir coisas (fossem elas um edifício ou um ringue de gelo) em menos tempo do que os outros e com menos dinheiro do que os outros.

O que valia para o reality show, valeu para a campanha eleitoral. No primeiro debate presidencial contra Hillary Clinton, Trump lembrou que estava prestes a abrir o seu novo hotel, no antigo edifício dos Correios de Washington, a uma curtíssima distância da Casa Branca. “Os gastos vão estar abaixo do orçamentado, a inauguração vai ser antes do prazo previsto, poupei uma quantidade “tremendous[cá está…] de dinheiro. Terminei a obra um ano antes do previsto. E é disso que este país precisa.” O país, segundo ele, precisava do apresentador de “O Aprendiz”.

As manias

No episódio 12 de “O Aprendiz”, Trump perdeu a cabeça com um concorrente que estava a defender-se enquanto olhava para uma folha de papel: “Não leias notas. Não precisas de notas. Eu não gosto de notas”. De facto, Trump odeia notas — seja na televisão ou na Presidência. Como escreveu o The New York Times, a 16 de fevereiro, na sua última conferência de imprensa, Trump começou a ler algumas frases que trazia numa folha, mas rapidamente desistiu e começou a improvisar.

Ele adora improvisar. Até porque tem uma confiança messiânica na sua capacidade de pensar enquanto fala. E tem razões para isso. Um exemplo: a frase mais conhecida do reality show “O Aprendiz” — “Estás despedido!” — não estava no guião original. Como contam Michael Kranish e Marc Fisher em Trump Revelado, o plano inicial era o milionário dizer algo mais suave, como “Infelizmente, o teu tempo aqui acabou”, mas na altura da gravação Trump saiu-se com um “Estás despedido!” e toda a gente adorou. Nunca mais o seguraram: “You’re fired!” tornou-se sinónimo de Trump, como pode ver neste vídeo:

Para Trump, tão importante como as palavras é a aparência. No segundo episódio de “O Aprendiz”, virou-se para um concorrente e disse-lhe “Pareces um cadete de West Point”, referindo-se à academia militar americana. Anos depois, parece não ter mudado. Quando já tinha vencido a eleição e estava à procura de um Secretário de Estado, Trump admitiu escolher Mitt Romney (cabelo impecável, queixo impecável, sorriso impecável) para chefiar o Departamento de Estado, usando um argumento original: “Ele tem o aspecto ideal para o papel”. Ao falar sobre a sua escolha para vice-Presidente, Trump disse que Mike Pence “tem óptimo ar”.

Haverá poucas coisas piores para quem trabalha com Trump do que não ter óptimo ar. No seu primeiro briefing à imprensa, o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, vestiu um fato de riscas cinzentas, demasiado largo no colarinho, e foi imediatamente criticado por Trump, que lhe sugeriu mais cuidado na escolha do guarda-roupa.

Não que Trump seja propriamente um ícone da moda. A revista GQ fez um vídeo onde mostra todos os problemas de imagem do novo Presidente: gravata XXL, casaco de fato sem estar abotoado, calças amarrotadas, mangas de camisa desajustadas e, ainda, aquele cabelo.

Uma revista preocupada com a moda masculina, como a GQ, pode incomodar-se com a aparência de Trump, mas não há muito a fazer. Na primeira temporada de “O Aprendiz”, “The Donald” já era assim (tirando o cabelo, que estava ligeiramente mais escuro).

Trump na temporada de "O Aprendiz" com celebridades: a gravata XXL, o casaco desapertado, as calças engelhadas. Tal e qual como hoje em dia na Presidência

O ego

Para o Presidente Trump, tudo é maiúsculo (até quando escreve no Twitter; aliás, especialmente quando escreve no Twitter). Vive rodeado de coisas que são, indiscutivelmente, “as melhores” e “as maiores” do mundo, do planeta e do universo. Qual a diferença entre o Trump da Casa Branca e o Trump de “O Aprendiz”? Nenhuma.

No episódio 12 do reality show, por exemplo, o apresentador descreve a Trump World Tower como “um dos edifícios mais luxuosos do mundo” e a sua propriedade de Mar-a-Lago (onde tem passado muitos dias da sua Presidência), com gastos já muito criticados, como “o clube privado mais luxuoso do mundo”. A sua construção frásica preferida parece ser, precisamente, esta: “O meu ______ [preencha o espaço em branco] é o mais luxuoso do mundo.”

Depois, naturalmente, há ele próprio. No terceiro episódio de “O Aprendiz”, autoelogia-se da seguinte forma: “A negociação é uma arte muito, muito delicada. Umas vezes temos que ser duros, outras vezes temos que ser doces como um bolo. Não se consegue aprender a negociar. É inato, está nos genes. (…) Construí um império à base de negociação”.

Terá ele mudado muito desde essa época? Ora, vamos ver: na sua última conferência de imprensa, há poucos dias, disse isto: “Adoro negociar coisas, e sou muito bom nisso“.

O aperto de mão

E já viram aquele aperto de mão? É a última crítica ao Presidente Trump. Numa tentativa vil de tentar dominar quem se cruza com ele, Trump utiliza um aperto de mão armadilhado: agarra a mão de quem o vai cumprimentar e puxa-a na sua direção, procurando assim desequilibrar e menorizar o seu oponente. O The Guardian até fez um vídeo comparando os mais diversos apertos de mão (o último foi ao vizinho Trudeau):

Mas, vamos admitir: não há aqui nada de novo. No segundo episódio da série “O Aprendiz”, Trump leva os concorrentes a uma agência de publicidade com a qual costuma trabalhar e, ao falar com o dono, cumprimenta-o da mesmíssima forma, como pode ver no vídeo em baixo. Se o aperto-de-mão-karate for uma técnica, então é antiga.


The Apprentice US Season 01 Episode 02 por yannperrot

A Primeira Dama

E Melania, mudou muito? Aliás, a pergunta parece ser outra: e Melania, continua a ser uma prisioneira de Trump? Logo no dia da tomada de posse do novo Presidente, criou-se no Twitter as hashtags “Free Melania” e “Save Melania” e apresentou-se como prova de que ela tinha sido capturada por Trump um vídeo em que Melania sorri quando Trump olha para ela, mas fica terrivelmente triste logo que ele vira as costas:

Tem graça, mas, na verdade, a Primeira Dama dá sinais de independência. Numa das primeiras entrevistas que os dois deram depois da vitória nas eleições, ao programa “60 minutes”, a entrevistadora perguntou diretamente a Melania se ela o criticava por causa de alguns dos seus tweets mais provocadores:

— Nunca lhe disse “Vá lá…”
— Sim, disse. [Trump acrescenta: “Ela diz…”]. Claro que disse, muitas vezes, desde o início da campanha.
— Se ele fizer alguma coisa que você acha excessiva, diz-lhe?
— Sim, estou sempre a dizer-lhe.
— Está sempre a dizer-lhe?
— Sempre.
— E ele ouve-a?
— Acho que ele me ouve, mas no final faz o que quer fazer. Ele é um adulto, conhece as consequências. Eu dou-lhe a minha opinião e ele [sorriso] faz o que quiser com ela.

Para quem viu toda primeira temporada de “O Aprendiz”, a resposta não surpreende. Logo no primeiro episódio, os concorrentes são levados ao apartamento do casal na Trump Tower e, quando Melania aparece, uma das raparigas diz-lhe, a suspirar: “Você é uma sortuda…” A resposta de Melania foi imediata: “Acham que ele não é sortudo?”.

O apartamento onde os dois viviam na altura da gravação do reality show era de dimensões gigantescas, tal como a Casa Branca. Por isso, um outro diálogo dessa cena podia também repetir-se agora. Quando uma concorrente perguntou a Melania como é que ela limpava uma casa tão grande a resposta foi: “Bem, temos pessoas que a limpam por nós”.


The Apprentice US Season 01 Episode 01 por yannperrot

A autoridade

No começo, Donald Trump só estava ali de passagem. Como contam Michael Kranish e Marc Fisher na biografia Trump Revelado, a ideia do criador do reality show era ter um apresentador diferente em cada temporada. Depois de Trump, seria a vez de Richard Branson, da Virgin, e de outros milionários. Mas Trump tornou-se demasiado popular. E uma das razões para isso foi a sua capacidade de mostrar autoridade. Viu-se logo no primeiro episódio como é que ele se comportava. Quando o apresentador fez uma pergunta a um concorrente e ele respondeu com a frase “Eu ainda não tinha acabado”, Trump decidiu dar-lhe uma lição de vida: “Deixe-me só dizer-lhe uma coisa. Quando está a tentar ser escolhido por alguém, não o interrompa a dizer ‘Deixe-me acabar’. Isso em primeiro lugar, em termos da vida. Estamos aqui a falar da vida, não é rapazes? Por isso, quando lhe faço uma pergunta e ainda não acabei de a fazer, não me diga ‘Deixe-me acabar’. Isso não é bom, percebe?”.

Ele percebeu logo. E o mesmo deve ter acontecido com o repórter Jake Turx, de uma revista judaica que (note-se) apoia as políticas de Trump. Na última conferência de imprensa do Presidente, Jake fez uma pergunta a Trump sobre ameaças recentes a judeus nos Estados Unidos, mas teve o extremo cuidado de tornar claro que, na sua opinião, Trump não é anti-semita. Mesmo assim, o Presidente nem o deixou acabar a pergunta. Ao mesmo tempo que afirmava que aquela não era “uma pergunta justa”, ordenou-lhe: “Sente-se, já percebi o resto da pergunta”. Ao ver que Trump estava a defender-se de uma crítica que não lhe tinha feito, o repórter ainda tentou interromper, mas ouviu um ríspido “Quieto, quieto, quieto…”.

É natural que Trump decida comportar-se da mesma forma que nos estúdios de “O Aprendiz”. Afinal, a primeira temporada do reality show começou com 20 milhões de telespectadores e terminou com 27 milhões. Doze anos depois, Trump só precisaria de pouco mais do dobro dessas pessoas — 62 milhões — para ganhar a Casa Branca. Ao fim de um mês na Presidência, já se percebeu que nada mudou.

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