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Janos Marjai/EPA

Janos Marjai/EPA

“Eu podia ter tido mais coragem..."

Reportagem especial. Em Berlim, no local onde um ataque terrorista provocou 12 mortos, o Observador ouve a raiva, a estupefacção, a mágoa - e o medo.

Reportagem em Berlim

Há quem tenha interrompido as férias para prestar homenagem às vítimas e quem não arrede pé da praça há horas. Os berlinenses choram os mortos mas não mostram rancor em relação aos refugiados. Entretanto, a polícia recomeça do zero uma investigação que levou um inocente a interrogatório. O autor do crime continua a monte.

A praça enfeitada com tendinhas de telhados coloridos. Música animada. Grupos de amigos na cavaqueira intercalada por uma dentada numa salsicha e um trago de vinho quente. Luzes e árvores de Natal por todo o lado. Crianças montadas em carrosséis e a apontar para os bolinhos de massapão. A cada passo, um aroma diferente: mostarda, castanhas, canela.

Assim era o mercado de Natal de Breitscheidplatz, no bairro comercial de Charlottenburg, em Berlim, quando o vi pela primeira vez há menos de três semanas. Era o sítio favorito da arquitecta síria Zoya Massoud, a minha cicerone, exilada de guerra em Berlim desde 2012, que queria mostrar-me a Igreja Memorial do Imperador Wilhelm, no centro da praça, transformada em ruína pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial e rodeada por edifícios modernos. Para ela, o exemplo da reconstrução que gostava de ver aplicada em Aleppo: a memória embrulhada em esperança. “É o tipo de sítio que relembra os horrores da guerra, mas nos faz acreditar num futuro melhor”, disse-me.

“Mas de uma coisa este terrorista pode ter a certeza, é que Berlim não é uma cidade que se amedronta porque já passou por muito pior. Vai manter o seu espírito aberto e multicultural”, diz um berlinense.

Esta noite, apenas a torre despedaçada da igreja me faz acreditar que estou no mesmo local. Não há luzes nem vinho, nem carrosséis nem bolinhos. Sopra uma brisa polar que amplifica os sons sobreviventes à invasão do silêncio: passos, o tic-tac dos semáforos, a combustão dos pavios das velas. Não cheira a nada, as lágrimas são inodoras. As barraquinhas do mercado estão cercadas por grades e barricadas policiais. É o que resta do terror que na passada segunda-feira se precipitou sobre o mercado sobrelotado, na forma de um camião de 19 toneladas a avançar sobre a multidão a mais de 70km/h. Fez 12 mortos, 48 feridos, 14 deles em estado crítico. “Nem sei o que dizer… podia ter sido eu, ou um amigo meu”, diz Zoya Massoud. “Ainda não sei dizer se o simbolismo daquele lugar morreu ou se vai passar a ser ainda maior”.

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Numa esquina da Hardenbergstrasse, junto a uma coluna, repete-se a cena que Paris, Bruxelas e Nice tiveram recentemente o desgosto de presenciar – dezenas de velas iluminadas em memória dos mortos e gente cabisbaixa a olhar para elas. “Nesta altura, não devemos falar de política nem de ideologias. Só quero prestar a minha homenagem às vítimas e às suas famílias, mais nada”, diz o berlinense Philipp-Georg Schmidt, de 34 anos, acompanhado pela mãe, que interrompeu as suas mini-férias de Natal em Dresden para acender uma vela no local da tragédia.

“Mas de uma coisa este terrorista pode ter a certeza, é que Berlim não é uma cidade que se amedronta porque já passou por muito pior. Vai manter o seu espírito aberto e multicultural”. À sua frente, está um cartaz com as palavras, proferidas em 1963, do antigo presidente americano John F. Kennedy: “Todos os homens livres, onde quer que vivam, são cidadãos de Berlim, e, portanto, como um homem livre, eu me orgulho das palavras ‘Ich bin ein Berliner‘”. Ao lado, uma imagem de uma caneca de glühwein (o vinho quente, símbolo dos mercados de Natal), com uma inscrição em francês: “Os bravos de Berlim”.

Em Berlim há raiva, estupefacção, mágoa, mas também medo

AFP/Getty Images

Um casal mantém-se abraçado por largos minutos. Ela, Katherine Eichmann, de 41 anos, estava no mercado com colegas na altura do ataque, nas tendas do lado oposto da colisão. “Não ouvi nada, só me recordo de ver pessoas a correr e eu corri também. Pensei que fugiam de um tiroteio”, diz. Quando se apercebeu do que tinha acontecido, foi invadida por um sentimento de culpa. “Eu podia ter tido mais coragem e tentado socorrer algumas pessoas ou tentado ver para onde fugiu o condutor. Sinto-me perdida, não consigo arredar pé daqui. Só fui a casa dormir umas horas e voltei para cá”.

Em redor das velas, há sentimentos difusos: raiva, estupefacção, mágoa, mas também medo. Afinal, o autor do presumível ataque continua a monte e está armado. E a polícia, segundo o diário alemão Die Welt, que chegou a deter um refugiado paquistanês de 23 anos para o libertar seis horas mais tarde, está neste momento sem qualquer pista sobre o verdadeiro autor do atropelamento. Após a libertação do suspeito, as autoridades focaram-se no visionamento das imagens das câmaras de videovigilância da praça para obterem indícios úteis na caça ao homem. Na última noite, não havia notícia de arma, vestígios de ADN ou rasto do assassino. Esta quarta-feira, as autoridades anunciaram que estão a seguir cerca de 500 pistas difusas, inclusive amostras genéticas e dados de GPS. As autoridades encontraram também, no camião, documentos de identificação de um tunisino que é agora procurado pela polícia (mais informações aqui). As dúvidas são muitas e os factos escassos.

Sabe-se apenas que um camião Scania azul escuro, de uma empresa polaca, saiu de Itália com um carregamento de barras de ferro para entregar em Berlim. A entrega estava agendada para esta terça-feira mas o condutor, o polaco Lukasz Urban, de 37 anos, chegou um dia antes à capital alemã e decidiu antecipar o descarregamento em Moabit, uma zona periférica de Berlim. Segundo a estação televisiva alemã ZDF, que seguiu o rasto conhecido da viagem, a empresa mandou-o voltar mais tarde para realizar a operação e, cansado de esperar, o camionista foi a um restaurante de kebab onde, pouco antes das 16h, enviou uma foto e uma mensagem aos familiares, dizendo-se “chateado pela demora”. A partir desse momento, a empresa polaca perdeu o rasto ao condutor e ao veículo, que só foi visto novamente perto das 20h a investir sobre os civis no mercado natalício. No lugar do passageiro, Lukasz Urban foi encontrado morto, “com claras evidências de ter sido esfaqueado e baleado”, segundo o seu primo e patrão Lukasz Wasik, que fez o reconhecimento do óbito por fotografia. “Ele foi a primeira vítima deste crime hediondo”, afirmou.

Entre os presentes em Breitscheidplatz, um homem avistou o terrorista a saltar da cabine do camião assim que este ficou imobilizado e a fugir -- e perseguiu-o.

Todos os dados apontam para que o camião tenha sido desviado por um ou mais homens, ainda não é claro. O condutor ainda deu uma volta ao recinto da festa antes do ataque. A polícia acredita que procurava o local do mercado com mais gente. Entre os presentes em Breitscheidplatz, um homem avistou o terrorista a saltar da cabine do camião assim que este ficou imobilizado e a fugir — a testemunha perseguiu-o pelo parque do Jardim Zoológico ao mesmo tempo que informava a polícia.

Durante todo o dia, pensou-se que esta testemunha tivesse seguido o suspeito até à Coluna da Vitória, onde a polícia deteve Nevad B., o paquistanês inicialmente indiciado pelo crime. A informação revelou-se falsa. O denunciante perdeu de vista o suspeito no início dos dois quilómetros que separam os dois locais, indicando aos policias as características físicas que os fizeram interceptar o jovem requerente de asilo, a viver na Alemanha desde o início do ano e com título de residência desde o último junho.

Foram realizadas buscas ao centro de acolhimento de Templehof, onde o paquistanês residia, que resultaram na apreensão de telemóveis e de um portátil. Em vão. Nevad negou o envolvimento e, segundo o The Guardian, fugiu do mercado com receio que a sua condição de muçulmano refugiado o tornasse suspeito. Não tinha armas, não apresentava qualquer sinal de sangue nem o seu tipo de sangue coincidia com o recolhido no camião. A demora no desfecho do interrogatório deveu-se ao facto de o estrangeiro falar em balochi, um dialecto paquistanês. Foi libertado por volta das 20h.

Quase à mesma hora, o autoproclamado Estado Islâmico, através da sua agência de notícias Amaq, reivindicou a autoria do atentado, mas sem apresentar qualquer prova. “Um ‘soldado’ realizou o atentado como resposta aos apelos para atacar cidadãos da coligação internacional”, uma reivindicação que, segundo fonte da investigação à ZDF, “soa mais a ideológica que a material”, aproximando ainda mais este caso ao de Nice, em que Mohamed Lahoualej-Bouhlel, um francês de origem tunisina, matou 86 pessoas usando um camião para atropelar a multidão que festejava o Dia da Bastilha.

Frauke Petry, líder da Alternativa para a Alemanha (AfD) reagiu de imediato: “Merkel acabou politicamente”

Nigel Treblin/Getty Images

A identificação do suspeito como refugiado chegado da Rota dos Balcãs durante o período da política de “fronteiras abertas” de Angela Merkel fez disparar os ataques políticos no país e no mundo. O político holandês Geert Wilders publicou nas redes sociais uma imagem de Merkel com as mãos manchadas de sangue. Nigel Farage, do britânico UKIP, disse que o ataque era uma herança da chanceler. As páginas do AfD e do movimento islamofóbico PEGIDA encheram-se de motes como “Estes são os mortos de Merkel”. Frauke Petry, líder da Alternativa para a Alemanha (AfD) reagiu de imediato: “Merkel acabou politicamente”, disse ao diário inglês The Telegraph. “Este não é um caso isolado. Ensina-nos a olhar para o estrangeiro, principalmente para França. O mercado de Natal não foi um alvo aleatório. Não é apenas um ataque à liberdade e ao nosso estilo de vida, mas também à nossa tradição cristã”. Até Horst Seehofer, presidente da CSU, o partido gémeo da CDU na Baviera e seu aliado, defendeu um maior controlo das fronteiras no rescaldo do acontecimento.

A chanceler visitou na tarde de terça-feira o local da tragédia acompanhada pelos homens fortes do seu governo, assumindo a ocorrência de um atentado mas, ao mesmo tempo, procurando travar a proliferação do discurso de medo e de hostilidade para com os refugiados. “Seria particularmente duro para todos nós se se confirmar que a pessoa que cometeu este crime tenha pedido asilo e protecção na Alemanha”, declarou, sem deixar de acrescentar que não permitirá que o país fique “paralisado pelo medo”.

Os primeiros a sentir essa paralisia são os árabes a residir na Alemanha. No momento em que as autoridades anunciaram a libertação do suspeito paquistanês, Hekmat, um engenheiro jordano, perdeu as estribeiras: “Como é possível que revelem a nacionalidade, o estatuto de imigração e até o nome de um suspeito sem terem a certeza de que é responsável? Só serve para alimentar o ódio contra os muçulmanos”, desabafa, na estação central de autocarros, à chegada a Berlim. “Eu já tinha dito aos meus amigos que, com a aproximação das eleições [marcadas para o final de 2017], algo de terrível ia acontecer. Isto só serve os interesses do ódio: o da extrema-direita, que coloca mais alemães contra os refugiados, e o do ISIS, que vê mais muçulmanos oprimidos a radicalizarem-se na Europa”. O jordano lamenta ainda que os média internacionais não tenham prestado a mesma atenção ao ataque perpetrado pelo ISIS no seu país no passado fim-de-semana, em que 10 pessoas perderam a vida.

“Há algum tempo que achava que tinha sido um erro receber tanta gente sem registar devidamente as suas identidades”, diz Ulf Schneider, de 52 anos, que se decidiu ontem a deixar de votar em Merkel para escolher o AfD.

No memorial às vítimas, é difícl encontrar quem responsabilize a política de acolhimento pelas mortes. Berlim é uma cidade de esquerda e multicultural, receptora de alemães de todas as latitudes em choque com a mentalidade conservadora dominante. Uma excepção é Ulf Schneider, de 52 anos, que se decidiu ontem a deixar de votar em Merkel para escolher o AfD. “Há algum tempo que achava que tinha sido um erro receber tanta gente sem registar devidamente as suas identidades”, diz. “Agora, chega. Precisamos de uma mão forte para pôr termo a este abuso e mandar para casa quem não quer aceitar a cultura alemã”.

Um rapaz de óculos e camisa aos quadrados ouve e abana a cabeça, em discordância. “O que se passou aqui pode acontecer em Madrid, Lisboa, Dublin ou em qualquer outra cidade. É duro, é injusto, mas é resultado de um contexto internacional. Tenho a certeza de que Berlim vai seguir em frente e que vai continuar a ser uma cidade segura para qualquer estrangeiro”, diz o berlinense Tim Ställe.

A menos de dois quilómetros dali, João Pereira, empregado de mesa no restaurante português “A Telha”, acredita que a Alemanha não devia deixar de receber refugiados, mas com limites: “Alguns deles, os que levantam mais suspeitas, deviam ficar confinados a um espaço fechado, onde tivessem comida e dormida, mas sem oferecer perigo à cidade”. João tinha amigos no mercado de Natal e, em dia de folga, esteve perto de os ir visitar no dia do incidente. “Vi na televisão e fiquei chocado. Mas a vida continua e sei que a cidade não vai mudar o seu estilo de vida por causa disto. A segurança é que vai apertar — por exemplo, na passagem de ano já anunciaram que vão aumentar o policiamento na festa das Portas de Brandemburgo”, diz o português.

As pessoas recolhem. Escuridão completa, o Natal de luto. Estão cinco graus negativos e só as chamas das velas resistem ao relento. Até os polícias que rodeiam a praça se abrigam nas carrinhas. Outros, pela cidade fora, continuam a caça ao homem. No horizonte, só uma coisa parece definitiva: a velha igreja que Berlim decidiu manter desfigurada como testamento de pedra da destruição que os alemães infligiram a si próprios. Está ali para que ninguém esqueça as consequências do ódio.

Reportagem atualizada às 11h15 com mais informação.

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