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Excesso de horas, precariedade, baixos salários. A vida dos motoristas da Uber

Trabalham entre 12 e 16 horas por dia, seis dias por semana a recibos verdes. Em troca recebem hoje valores que rondam o salário mínimo. Há motoristas da Uber desesperados e ninguém tem solução.

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Entrámos no carro de Cândida* numa noite chuvosa de dezembro. O trânsito de hora de ponta prolongou a viagem entre a estação de Santa Apolónia e o Bairro Alto, em Lisboa, dando tempo à condutora para resumir os primeiros dois meses de trabalho para a Uber. “Como entrei a meio de outubro não o trabalhei completo, por isso ganhei muito pouco”, começa por explicar, para logo percebermos que, pelo seu primeiro mês de trabalho completo, novembro, Cândida conseguiu apenas 440 euros. Foram seis dias de trabalho por semana, 12 horas por dia. “Treze horas em vésperas de feriado”, acrescenta.

Fazendo a conta aos 26 dias que trabalhou, por cada uma das 312 horas recebeu 1,41 euros à hora. Brutos, porque grande parte dos motoristas são contratados em regime de recibos verdes e, daquele valor, ainda é preciso subtrair os impostos a pagar. Não há subsídio de férias, de Natal nem de almoço. Não há dias de férias pagos, nem proteção em caso de doença. Por cada viagem feita em Portugal, a Uber ganha 25%. Cândida ganha 35% do total das viagens, mais 5% se for assídua, ficando a empresa que a contratou com o restante. Apesar de fazer o horário de quem tem um emprego e meio, ganha menos que os 530 euros de salário mínimo fixados pelo Governo — que subiu para 557 euros a 1 de janeiro de 2017.

Mesmo assim, Cândida mantém o sorriso, com o entusiasmo de quem só agora começou um novo desafio. “Se calhar eu ainda não conheço os melhores sítios, onde há mais clientes”, arrisca. Mas também não pode circular muito à procura deles, porque o contrato que a empresa tem com o rent-a-car sobe consoante o número de quilómetros feitos. E a condutora é avaliada por tudo o que faz: quilómetros percorridos, acelerações, travagens. Tudo medido pela tecnologia. “O meu filho já tinha estado na Uber, mas não se deu bem com isto”, conta.

Como ganha à comissão, às vezes trabalha 14 horas e já chegou a conduzir 16 horas. “Tenho consciência que é muito perigoso para as pessoas que transporto."

Francisco*, de 55 anos, já se deu bem. Na Uber e na vida. Até há cinco anos era diretor adjunto de comunicação de uma multinacional de telecomunicações, mas, com a crise, a empresa deixou Portugal. O desemprego em alta e a vontade de contratar funcionários de meia-idade em baixa ditaram que o único trabalho que haveria de conseguir seria em call centers. “Ganhava 500 e tal euros brutos, sempre a recibos verdes”, recorda. Em março de 2016, respondeu a um anúncio que pedia motoristas da Uber. Na entrevista, a empresa de turismo parceira da Uber disse-lhe logo que os turnos são todos de 12 horas: ou das seis às seis, quer seja da manhã ou da tarde, ou das oito às oito. E que só teria uma folga por semana.

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Esta terça-feira, por exemplo, começou a trabalhar às 8h30 da manhã, parou meia hora em casa para almoçar e só entregou o carro às 20h30 da noite. As corridas do dia somaram 80 euros no total, dos quais Francisco irá tirar a sua comissão de 35%. Ao fim de 12 horas de trabalho, ganhou 28 euros, dos quais ainda terá de fazer os descontos para a segurança social. Como ganha à comissão, às vezes trabalha 14 horas e já chegou a conduzir 16 horas. “Tenho consciência que é muito perigoso para as pessoas que transporto. E já o disse. Mas eles [empregadores] sabem que eu não tenho grande hipótese de voltar a ter um emprego como tive no passado e, quando uma pessoa se queixa, dizem-nos que, se não estamos contentes, podemos sair…

Um gigante quase sem funcionários

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A Uber apresenta-se como uma plataforma eletrónica que coloca em contacto motoristas e clientes. Os motoristas constituem empresas ou são contratados por empresas, essas sim parceiras da gigante norte-americana. Isto apesar de a Uber definir as tarifas, de ter o poder de bloquear a aplicação e de impedir que os motoristas negoceiem diretamente com os passageiros.

Em algumas empresas, como a de Francisco, qualquer dano feito no carro é pago pelo motorista. “No primeiro mês fiz um risco, ativaram a franquia do seguro e paguei 300 euros do meu ordenado.” Está estipulado no contrato que é ele o responsável pelo material de trabalho. “A conduzir 14 horas seguidas, é fácil haver um minuto de distração”, lamenta.

"Com a aplicação de cliente consigo ver pelo GPS todos os Ubers que estão à minha volta e às vezes estão 10 no mesmo sítio." © Quique Garcia/AFP/Getty Images

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Quem fala com os motoristas tem ouvido, com frequência, relatos de que só estão naquela profissão há dois, três, quatro meses. Os mais experientes notam que as contratações têm aumentado. E, ao contrário do que costuma acontecer entre a nova e a velha guarda, neste caso, mais e menos experientes têm a mesma visão do problema: quantos mais veículos descaracterizados de transporte de passageiros há nas ruas, menos clientes há para cada um. Logo, menos dinheiro ao fim do mês. Numa reportagem feita com a equipa da Uber, em maio, a revista Visão falava em “mais de mil motoristas em Portugal“, distribuídos pelo Porto, Lisboa e Algarve. Numa entrevista publicada pelo Observador a 1 de novembro, Rui Bento, diretor-geral da Uber em Portugal, falou em “mais de 2.500”.

Motoristas e empresas parceiras notam que, nos últimos dois ou três meses, o número de viaturas aumentou bastante. “Quando eu comecei, a aplicação da Uber tocava e tocava. Agora, chega-se a estar uma hora ou mais sem que a ‘app’ toque.” Para além de ter instalada a tecnologia de condutor, Francisco instalou também a de cliente. “Com ela consigo ver pelo GPS todos os Ubers que estão à minha volta e às vezes estão 10 no mesmo sítio.

“Cheguei a tirar 800 euros brutos no início”, recorda. Mas foi sempre a cair e agora anda nos 600 a 650 por mês. “Às vezes nem isso.” Depois dos impostos, fica com cerca de 510 por mês.” Lembra que os últimos anos de trabalho pesam nos cálculos da reforma, e que os seus “vão ser baixíssimos”. “Eu faço dois horários semanais só com uma folga e tiro um ordenado mínimo. Por dia sobram-me 10 horas livres para almoçar, jantar, tomar banho e dormir. Vida com este horário e uma folga? Não existe.”

Quando os protestos são de motoristas da Uber e não de taxistas

O fenómeno Uber gerou protestos de taxistas um pouco por todo o mundo, incluindo em Portugal. Mas as faces do descontentamento estão a mudar. Nos últimos dias, milhares de motoristas ao serviço de plataformas eletrónicas bloquearam os acessos aos aeroportos e às estradas de Paris. Exigem melhores condições salariais e acusam estas plataformas de promoverem uma “escravidão moderna”, de ficarem com comissões excessivas e ainda de lhes bloquearem abusivamente a aplicação, noticiaram os jornais franceses.

De acordo com o jornal espanhol El Pais, o sindicalista Sayah Baaroun resumiu, à porta do Ministério dos Transportes, o porquê do descontentamento: 70 horas de trabalho por semana [o limite legal em França é de 35 horas] por mil euros por mês [o salário mínimo é de 1.466 euros]”. No Brasil também já houve protestos este ano e, em 2015, um grupo de motoristas fundou a Associação dos Motoristas Parceiros das Regiões Urbanas do Brasil, a primeira do país com o objetivo de defender os interesses dos motoristas ao serviço da Uber.

"Ubernaque - Uber fraude" escrito num caixão. Uma as formas de protesto de um motorista da Uber em Paris, este mês. © Alain Joard/AFP/Getty Images

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A Uber defende-se dizendo que “não é uma empresa de transportes, na medida em que não tem carros e não emprega motoristas”. Em outubro deste ano, um tribunal britânico do trabalho não concordou e decidiu que os motoristas ao serviço da Uber não são trabalhadores independentes, mas sim funcionários da plataforma. A decisão, que poderá fazer jurisprudência, pode dar o direito a estes trabalhadores de receberem o salário mínimo, dias de férias e de doença pagos e todos os direitos previstos no código do trabalho.

A Uber, que assim também passaria a fazer descontos para a Segurança Social, recorreu da decisão no passado dia 13 de dezembro. Em todo o mundo, a empresa apresenta-se como uma plataforma eletrónica que coloca em contacto motoristas e clientes. Isto apesar de definir as tarifas, de ter o poder de bloquear a aplicação e de impedir que os motoristas negoceiem diretamente com os passageiros. “Os termos são definidos pela Uber”, defende o tribunal.

“Como é que o Governo não olha para isto? É uma exploração!”

Em Portugal ainda não houve nenhum protesto organizado nem entidade formada por motoristas ao serviço deste tipo de plataformas, embora um grupo de pessoas esteja a trabalhar na constituição da Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes. “Fui abordado por uma senhora no aeroporto, que é dessa associação”, conta António*. “Fiquei curioso e com esperança, porque ela andava a obter contactos de motoristas para gerar algum movimento em torno destas situações.”

António tem 65 anos e, no trajeto entre Lisboa e Cascais, descreve-se ao Observador como “uma das vítimas dos cortes na reforma”. No passado, teve uma empresa durante 15 anos e, mais tarde, foi gerente de outro negócio. Pede que não revelemos detalhes, para que a sua identidade permaneça anónima, tal como já tinham pedido Francisco e Cândida. Reformado em plena crise, e com a idade a travar-lhe as oportunidades de emprego, esteve à experiência na área das vendas porta a porta, uma atividade “muito desgastante” e com baixas remunerações. “Não conseguia arranjar outra atividade que não fosse vendas ou call centers“, até que, em maio, foi admitido numa empresa parceira da Uber.

“Na entrevista de trabalho perguntei porque é que os turnos diários eram de 12 horas. Responderam-me: ‘Sinceramente? Porque se trabalhar menos não vai ganhar nada e acaba por desistir'."

“Na entrevista de trabalho perguntei porque é que os turnos diários eram de 12 horas. Responderam-me: ‘Sinceramente? Porque se trabalhar menos não vai ganhar nada e acaba por desistir’.” De acordo com o artigo 203.º do Código do Trabalho, o período máximo de trabalho semanal é de 40 horas e o período normal de trabalho diário não pode exceder as oito. No entanto, com os valores que os motoristas estão a fazer atualmente, precisam de prolongar a jornada. “Eu faço 12 horas por dia, às vezes mais”, admite, apontando em seguida para as tendinites que já tem na mão e no ombro direito à conta disso. Num caderno, aponta todos os dias as horas trabalhadas e os rendimentos. Só não aponta a frustração que sente. “Deixei de viver”, lamenta. Nos dias de trabalho, não tem tempo para nada. Por isso, faz questão de tirar duas folgas por semana. “A primeira é para dormir. A segunda é para viver, mas no dia seguinte recomeça tudo outra vez.”

Nesse caderno, pode ver que quando começou a conduzir, às sextas, sábados e domingos no final de maio, ganhava 3,50 euros à hora. “O meu maior ganho foi em julho, 466 euros, só a fazer três dias por semana”, verifica. Neste momento, o rendimento não ultrapassa “a situação miserável de 1,50 euros à hora”. Como António é reformado, não tem de pagar segurança social. Só dali a um ano é que vai ver de que forma os rendimentos lhe pesam no IRS mas, pelo menos por agora, tudo o que ganha é limpo. Foi no final de agosto, com a descida dos turistas e o aumento da concorrência, que começou a sentir a perda de rendimento. Em média, faz 60 ou 80 euros ao fim de 12 horas de trabalho, de onde tira a sua percentagem de 30%. Nos dias de 60 euros, significa que traz para casa 18. No mês de novembro, o recibo verde que passou foi de 520 euros.

Mas se a empresa vir que gastou demasiado combustível para o que ganhou, ainda lhe desconta dinheiro. “Imagine que eu levo um passageiro ao Algarve mas depois volto para Lisboa com o carro vazio. A média baixa e vão-me descontar combustível. Isso gera uma preocupação permanente.” Os seus dois colegas, diz, queixam-se dos mesmos problemas. “Como é que o Governo não olha para isto? É uma exploração! Mas o nível de desespero é tanto que as pessoas aceitam.”

Horas máximas de trabalho e formação, sim. Limitar a concorrência, não.

O Ministério do Ambiente, que tutela os transportes, apresentou um diploma com a proposta de lei de um novo regime jurídico para a atividade das plataformas eletrónicas de transporte individual, como a Uber e a Cabify. O diploma foi aprovado em Conselho de Ministros e será discutido em breve na Assembleia da República. Uma das alíneas determina que “os operadores deixam de poder ser entidades individuais, têm necessariamente de ser pessoas coletivas”, explicou o ministro João Matos Fernandes, citado pela Agência Lusa. Isto é, os donos das viaturas passarão a estar obrigados a constituírem-se empresas coletivas, dando mais garantias ao Estado de que pagarão os impostos devidos e que não fugirão ao fisco.

Para além da obrigatoriedade de formação aos motoristas e de um máximo de sete anos de antiguidade para os veículos de trabalho, outra das alíneas determina que os motoristas não poderão trabalhar mais de seis horas seguidas, como determina o código do trabalho da atividade. “Seis horas?! Isso é irrealista, nunca vai ser cumprido”, reage António, exemplificando com o caso dos “camionistas que chegam a falsificar os contadores das horas de trabalho”. Na sua opinião, a medida vai aumentar os custos das empresas, ao terem de contratar mais pessoal. Quanto a Francisco, não tem dúvidas de que fará mais de seis horas por dia, seguidas ou não. “Se eu, com 14 horas, ganho o que ganho, o que seria com seis? Quem é que vai querer tirar 200 ou 300 euros por mês?”.

O diploma não estabelece, no entanto, um contingente para este negócio, como acontece com os táxis, cujos alvarás são geridos pelas autarquias e estabelecem um número máximo de viaturas em circulação. “Trata-se de uma atividade privada”, explicou o Ministério do Ambiente ao Observador. Não havendo serviço público como no caso dos táxis, o Governo diz que não pode determinar um número máximo de viaturas a operar nas ruas. Só a própria Uber poderia estabelecer um limite interno. Para o setor do táxi, o contingente é questão chave. Em reação ao diploma, Carlos Ramos, presidente da Federação Portuguesa do Táxi, informa que na próxima semana haverá uma reunião do setor para decidirem que medidas vão tomar. Em outubro, a reação foi uma marcha lenta até ao aeroporto de Lisboa.

Rui Bento trouxe a Uber para Portugal no final de 2014. Contudo, a empresa está sediada na Holanda. © Hugo Amaral / Observador

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

“Era preciso expôr ao público esta situação de forma muito clara, há muito a ideia de que este negócio é uma maravilha. As pessoas não fazem ideia“, lamenta António. Basta abrir qualquer portal de empregos para encontrar inúmeros anúncios a pedir motoristas para a Uber. “Venha colaborar numa empresa inovadora e fazer parte de um movimento vanguardista na área da mobilidade”, lê-se num. Entre os requisitos, pede-se “disponibilidade para seis turnos semanais de 12h”. Em troca oferece-se “boas condições de trabalho”, “ferramentas para partilha de informação” e “remuneração proporcional ao desempenho”.

Um anúncio alicia os candidatos prometendo um “rendimento variável e compatível com as funções”, especificamente “entre 700 e 1.400 euros por mês”. Talvez seja um texto repescado de anteriores anúncios porque, ao Observador, o seu autor admite que a realidade atual é diferente. Vasco* começou a operar no Algarve em junho e correu bem, porque o número de turistas era elevado, estes fazem viagens mais longas que os portugueses, e o número de viaturas era “baixo”. Chegou a ter dois carros, mas a situação atual obrigou-o a recuar. Atualmente tem um a circular e três motoristas, que trabalham 22 dias por mês, 12 horas por dia, ou mais se assim quiserem.

“Desde a greve dos taxistas [10 de outubro] notamos uma diminuição gradual dos rendimentos da empresa. Toda a gente pensa ter descoberto a galinha dos ovos de ouro mas, como não existe contingentação, há um manifesto excesso de carros a circular. A Cabify tem um número limite para proteção dos seus parceiros”, afirma. Os lucros da empresa diminuem e os motoristas queixam-se dos “150 a 200 euros brutos que ganham por semana”. Ou seja, cerca de 600 a 800 euros por mês, longe dos 1.400 do anúncio. Trabalham todos a recibo verde, menos um que constituiu uma empresa e emite outro tipo de faturas.

“Trata-se de uma atividade privada”, explicou o Ministério do Ambiente ao Observador. Não havendo serviço público como no caso dos táxis, o Governo diz que não pode determinar um número máximo de viaturas a operar nas ruas. Só a própria Uber poderia estabelecer um limite interno.

Já tentei falar várias vezes com a Uber mas dizem-me que esta é a sua política [não estabelecer um número máximo de parceiros]. Que, neste momento, não têm ainda carros suficientes para a procura que têm”, conta Vasco. Para ele, é a única forma de “tudo isto funcionar como deve ser”. “Acho que a Uber é um conceito absolutamente fabuloso. Em termos de utilizador final, foi do melhor que já apareceu. A Cabify é interessante mas representa uma fração mínima. Só eles podem solucionar o problema, modificando o contingente.”

Confessa-se iludido e desiludido em simultâneo. Desiludido, porque “a Uber espera que a oferta e a procura se auto-regulem”. Iludido, porque “é muito fácil uma pessoa entrar neste negócio a achar que é rentável. As seguradoras, os rent-a-car e os leasing passam-nos a informação de que é muito lucrativo, todos os parceiros me diziam que era um mercado tão lucrativo que eu não fazia ideia do que ia faturar”. Para estes fornecedores, o negócio continua a ser bom. E para a Uber “é indiferente que haja um operador ou 250 mil”, explica Vasco. “O que lhes interessa é que os clientes encontrem um carro rapidamente. Não querem saber, não há nenhuma proteção ao operador.

O empresário justifica a opção de ter os motoristas a falso recibo verde porque não sabe “o dia de amanhã”. “Existem todos os direitos, que são devidos, foram justamente conquistados, mas não se compadecem com as regras de mercado atuais”, sublinha. “Como recebemos todos por comissão, eu não posso fixar um salário porque depois não o posso baixar. Ao mesmo tempo, o 13.º e 14.º mês, se divido os rendimentos com o trabalhador, se ele não está a trabalhar eu vou dividir o quê com quem?” Gostava de poder dar melhores condições aos funcionários, mas sem a “liberdade para decidir os preços” não consegue fazê-lo. Atualmente, a Uber X tem como tarifa base em Portugal 1 euro, à qual se vão somando 10 cêntimos por minuto e 65 cêntimos por quilómetro. A tarifa mínima por viagem é de 2,50 euros. Em períodos de maior procura, entra em vigor a tarifa dinâmica, com preços mais elevados.

O Observador questionou o Ministério do Ambiente para saber se o diploma protege os motoristas das condições atuais de excesso de trabalho e precariedade. “É como em qualquer empresa, o código de trabalho tem de ser cumprido”, respondeu a tutela. Ou seja, não poderão manter-se situações de falsos recibos verdes, cabendo à fiscalização detetar casos irregulares. Quanto à forma como a tutela fará a fiscalização para que sejam respeitadas as seis horas máximas de condução, o Ministério não respondeu.

Travis Kalanick, fundador e CEO da Uber. © D.R.

Questionada sobre se houve queixas e fiscalizações aos motoristas e às empresas de transportes, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) respondeu ao Observador que “tem acompanhado atentamente, dentro das suas competências, a forma como as pessoas ao serviço de plataformas eletrónicas se encontram a prestar atividade”, acrescentando que, “neste momento, decorrem diligências inspetivas para o devido enquadramento da situação, pelo que, quando finalizadas, serão adotados os procedimentos inspetivos adequados.” Uma vez que os processos estão em curso, “não é possível dar qualquer informação sobre o seu número ou conteúdo”, afirmou.

Numa entrevista ao jornal i, em agosto, o Subinspetor-Geral da ACT foi mais claro. António Robalo dos Santos reconheceu que o “fenómeno da Uber” é acompanhado pela Autoridade “com grande preocupação”, e que ainda não era ” claro o tipo de relação que existe entre o condutor que faz estes serviços para a Uber e a própria plataforma”. “É imperativo perceber se existe uma ligação laboral ou uma prestação de serviços. E também se existe ou não trabalho que não esteja a ser declarado”, acrescentou. Enquanto isso não acontece, a ACT explica que faz inspeções, “tendo por referência a legislação vigente respeitante às relações de trabalho”.

Os preços “não são justos”

No Porto, a concorrência é, por enquanto, menor do que em Lisboa, garantem alguns motoristas ao Observador. Os anúncios de emprego também são escassos, ao contrário dos inúmeros pedidos diários para motoristas na capital. “Aqui ainda não há esse problema. Para já”, explica Guilherme. Parceiro da Uber há mais de meio ano, confirma que os relatos que chegam de Lisboa são mais complicados, e que há motoristas de táxi a mudar para os veículos descaracterizados. “Quando comecei a pensar entrar nisto vi que era só recibos verdes e isso não me interessa”, sublinha. Fez as contas, arranjou uma viatura e constituiu uma empresa familiar. “Vamos dividindo o trabalho para o carro nunca estar parado. A minha mulher anda de manhã, o meu filho à tarde e eu faço o turno da noite”, explica ao Observador, às duas da manhã de uma sexta-feira, na Avenida dos Aliados.

O Observador perguntou à Uber quantos motoristas trabalham atualmente no Porto, em Lisboa e no Algarve e quantos trabalhavam no verão; como é que olha para os salários e para os horários atuais dos motoristas que trabalham com a aplicação e sob a tarifa fixada pela empresa; e o que poderia ser feito para melhorar as condições destes profissionais. A empresa de Rui Bento recebeu as questões. Contudo, informou que não iria responder.

"Tenho pessoas que me dizem que estamos a ficar iguais aos taxistas. Clientes já se queixaram de gente mal educada, carros sujos, motoristas que não sabem onde é o Rossio. O Rossio!"

Bernardo é outro dos empresários que está a contratar, neste momento, motoristas para Lisboa. Mesmo se reconhece que já teve semanas melhores. “No geral as pessoas estão a queixar-se porque a oferta está a crescer demasiado, há muitos carros na rua”, conclui. Bernardo não só é dono de um carro e patrão de três motoristas, como também conduz o carro aos fins de semana. Como recebe a comissão dos três profissionais, a parceria com a Uber está a compensar-lhe. Aos motoristas, nem tanto.

“Infelizmente gostava de conseguir pagar mais, mas sei que com a procura que existe…”, admite, para logo acrescentar que “nunca vão existir salários altos com os preços atuais, nem aqui nem nos setores de táxis. Só se o carro estiver constantemente a andar”. Diz que todos tiram pelo menos o salário mínimo e que “as pessoas têm de ver isto como um trabalho temporário, destinado a quem tinha um trabalho estável, está desempregado e rapidamente precisa de um rendimento para pagar as despesas, ou então como um trabalho complementar”.

Sofia, da empresa Top Tour, também está a contratar mais pessoal. A parceria com a Uber “corre bem”, embora reconheça que “há mais viaturas em Lisboa, o que faz com que haja mais oferta do que procura”. A concorrência “reflete-se, bastante” e a empresa tem hoje “menos rendimentos”. Foi a única responsável que aceitou falar sem pedir para não citar o nome da empresa. No entanto, a chamada foi interrompida nos primeiros minutos e Sofia nunca mais atendeu o telefone.

Os chamados carros autónomos já estão em fase de testes. Um dia, não serão precisos motoristas. © Geoffroy Van Der Hasselt/AFP/Getty Images

AFP/Getty Images

Vasco concorda com Bernardo e afirma que os preços “não são justos”. Seja porque o combustível aumentou e “isso não está a ser tido em conta”, seja porque estão abaixo do custo de um táxi, serviço ao qual continua a recorrer, cuja tarifa acha justa e que, acredita, ambos os concorrentes se deviam reger “pela mesma bitola, não só nas obrigações, mas também nas tarifas”. António, por exemplo, considera que a Uber pratica dumping (venda abaixo do preço de mercado para conquistar quota), e questiona os prejuízos constantes. De acordo com a Bloomberg, as receitas no terceiro trimestre de 2016 subiram mas os prejuízos também – atingiram mais de 800 milhões de dólares (765 milhões de euros), somando mais de 2,2 mil milhões de dólares de prejuízo (2,1 mil milhões de euros) nos primeiros nove meses de 2016. Apesar dos prejuízos constantes, a empresa está avaliada em 69 mil milhões de dólares. Vale mais do que a General Motors e o Twitter juntos, exemplifica a Bloomberg.

Travis Kalanick, que criou a Uber em 2009, tem, no entanto, outros horizontes em vista. No futuro, poderá nem haver motoristas, como parecem indicar os testes que a Uber está a fazer nas cidades americanas de Pittsburgh e São Francisco, com os chamados carros autónomos. O Governo português está de olho no futuro da tecnologia e João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria, disse recentemente, em entrevista ao Jornal de Negócios e à Antena 1, que a tutela quer “criar legislação que permita usar as ruas de Portugal para piloto, para testes de carros” autónomos, adiantando que o diploma avança em 2017.

Por enquanto, ainda há motoristas de carne e osso e Francisco aponta outro problema gerado pela elevada contratação atual de motoristas. “Tenho pessoas que me dizem que estamos a ficar iguais aos taxistas. Clientes já se queixaram de gente mal educada, carros sujos, motoristas que não sabem onde é o Rossio. O Rossio!” Na sua opinião, os critérios estão a baixar “dramaticamente” e as comparações com os taxistas são más para o negócio. Vasco também admite que está a ser difícil manter a qualidade das contratações. “O maior problema no meio disto tudo é a inexistência de pessoas para trabalhar. Aparece muita gente, mas depois não conhecem a cidade, nunca aqui conduziram, não sabem trabalhar com GPS, não têm experiência. E o sistema começa a ter falhas.

Ex-diretor de comunicação com décadas de experiência, a Francisco não lhe faltam qualificações. “Sou licenciado, falo três línguas para além do português, adoro história e quando ando com turistas explico alguns detalhes históricos dos monumentos”, diz, orgulhoso. Apostou nesta profissão porque é praticamente a única a aceitar pessoas mais velhas.

“No mercado de trabalho uma pessoa de 55 anos é muito velha. Eu pergunto se uma pessoa de 55 anos que aguenta 14 horas por dia a trabalhar é velha e não aguenta.” Sonha voltar à sua área, ainda que consciente de que isso não acontecerá, dado que as únicas respostas que recebe são para estágios curriculares. “Neste emprego não há perspetiva de crescer, seremos sempre motoristas. Eu era bom na minha área e de repente vou ficar bloqueado a isto, sem tempo livre. A vida familiar apaga-se. Em troca de quê? Deste valor que se traz para casa?”

*Nome fictício. Estes motoristas e parceiros não se quiseram identificar, por medo que as declarações pudessem afetar a parceria com a Uber.

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