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As feridas invisíveis de uma guerra dentro do corpo

Balas, minas e granadas, matam ou ferem o corpo. Mas ver a morte de um amigo também fere por dentro, na cabeça. O Stress Pós-Traumático nos militares portugueses é uma doença muito pouco estudada.

Olhei para as minhas mãos e vi fios de cabelo. A minha mulher, Isabel (nome fictício), estava deitada no chão do quarto aos berros comigo. Não percebi logo o que se tinha passado. Senti-me como se estivesse a afogar-me. Não queria acreditar que tinha tido outro pesadelo com a missão. Outra vez. Foda-se.

O Stress Pós-Traumático é quase um fantasma em Portugal. De certa forma, ainda é tabu pensar que homens tão “duros” possam “amolecer” e “ter medo”, afirmaram alguns especialistas com quem o Observador conversou. As feridas do Stress Pós-Traumático podem ser invisíveis, mas a dor é real.

Nem este é um tema estranho ao país. Portugal ainda tem memória dos vários casos dos militares que participaram na guerra colonial e que ainda hoje estão a ser tratados. Para Ricardo Pinho, psicólogo e presidente da Associação Nacional de Contratados do Exército, naquela guerra muitos portugueses foram confrontados com a questão de “matar para sobreviver”, algo que “altera profundamente o estado de espírito das pessoas”. Eram pessoas sem treino, enviadas à força e com valores “cristãos muito fechados”, lembra.

Quando regressaram, “não eram vistos como pessoas que arriscaram a vida pela pátria”. Vinham doentes, com cicatrizes invisíveis na memória. Despoletaram casos de violência doméstica, que muitas vezes passaram despercebidos.

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Arquivo DN

O que eu estava a sonhar, veio-me à cabeça nos dias seguintes. Era outra vez o helicóptero a levar os meus colegas dentro de um saco preto. O barulho de ventoinhas assusta-me desde que começaram estes pesadelos. Ouço e fico a tremer como varas verdes. Eu tentei agarrar os sacos, enquanto dormia, e acabei por magoar a minha mulher. Não foi a primeira vez. Ela acabou a noite a tomar conta de mim.

O tema é um caso pessoal para Ricardo Pinho. Durante muitos anos não percebeu por que é que o pai, que tinha estado participado na guerra colonial, não suportava o som de batatas fritas a partirem-se. Só quando um dia um paciente lhe confessou que não suportava o som do quebrar das folhas secas, devido ao que tinha passado nas florestas, é que Ricardo estabeleceu um paralelo. Toda a sua vida teve em casa um caso de Stress Pós-Traumático.

Ricardo Pinho

© André Correia

“É militar, mas não deixa de ser humano”

“Vivemos numa sociedade um pouco machista. Ainda se pensa: homem que é homem não chora”, afirma o Sargento António Lima Coelho, presidente da Associação Nacional de Sargentos, em declarações ao Observador. “É militar, mas não deixa de ser humano”, acrescenta.

António Lima Coelho diz ter conhecimento de “algumas” situações de jovens portugueses regressados de missões internacionais que subitamente “manifestaram comportamentos não condizentes com a sua personalidade”, através de familiares. “Passaram-se.” E foram-lhe também relatados casos de violência doméstica.

“Não vimos o que aconteceu no caso dos militares que participaram na guerra colonial? Sofreram os filhos, esposas e netos, devido à pressão escondida dentro dessas pessoas”, diz. Por isso, lembra que só é feita uma conversa com os militares depois de participarem em missões, até três meses depois. E se os sintomas surgem mais tarde? “E quantos são os que sofrem em silêncio?”

Segundo vários estudos efetuados com miliares que não aceitaram participar em investigações relacionadas com acontecimentos traumáticos, quando comparados com indivíduos que aceitaram participar, os primeiros apresentavam mais problemas mentais.

Nunca fui ferido em missão. Os meus camaradas portugueses que fizeram comigo a missão também não. Mas os norte-americanos, aqueles malucos que andam sempre na linha da frente, quase todos os dias perdiam alguém. Vi muitos sacos pretos com corpos furados e ri-me… Não sei porque é que me ri.. O psicólogo diz que fui atingido por dentro, como naquelas histórias que ouvi dos doentes do Ultramar, na televisão. Eu não podia estar doente como eles, pensei. Eu tinha sido treinado para tudo.

De acordo com o artigo científico “Combat Exposure and Posttraumatic Stress Disorder Among Portuguese Special Operation Forces Deployed in Afghanistan”, publicado em 2011, 3% dos Comandos portugueses que cumpriram missão no Afeganistão, de uma amostra de 113 indivíduos, sofriam de Stress Pós-Traumático. Contudo, é preciso colocar os números em contexto.

“Um só estudo não dá para generalizar uma população”, lembra Carlos Osório, o autor do artigo, em declarações ao Observador, acrescentando que assumir que as forças militares portuguesas são muito ou pouco afetadas por Stress Pós-Traumático é um erro. Nos EUA, existem “centenas de estudos” sobre este tema, conta.

“Salvo o caso do Afeganistão, as missões [em que participaram militares portugueses] foram relativamente pacíficas”, diz. O próprio investigador Carlos Osório é um ex-militar.

Estou a ver televisão e os pensamentos maus voltam. Posso estar a ver o telejornal e dou por mim a pensar nos meus pesadelos. Por vezes, tenho dúvidas se são mesmo imaginação minha.

Relativamente à “baixa” prevalência de casos de Stress Pós-Traumático nos Comandos portugueses, Carlos Osório lembra que o treino dessa força militar em específico incluí “uma grande carga física e psicológica”, o que faz com que exista uma certa triagem durante o treino.

“O que conheci, já cá não está”

Um dos principais campos de batalha do Stress Pós-Traumático é a memória. A reexperiência traumática (pesadelos e lembranças espontâneas) e o distanciamento emocional são alguns dos principais sintomas.

Pensei em matar-me, antes de começar a fazer tratamento. Não sabia o que se estava a passar. Já tinham passado mais de seis meses da missão, quando os pesadelos começaram. Não percebi logo o que se estava a passar. Somos treinados para ser duros, para sermos homens a sério.

Nélson Sousa, amigo de Sérgio Pedrosa, um dos portugueses que faleceu no Afeganistão, foi militar durante 10 anos e participou em três missões. Chegou a Timor logo a seguir ao massacre no cemitério de Santa Cruz em 1991. Na Bósnia viu os restos de um pastor que pisou uma mina no mesmo terreno que cultivou durante muitos anos.

Nélson Sousa

© André Correia

“Somos [os militares] sempre muito reservados [ao lidar com a dor]”, confessa Nélson. São homens que não querem falar de dor a outros homens. Apesar de tudo o que viveu e viu, Nélson nunca manifestou sintomas de Stress Pós-Traumático. O mais próximo que esteve disso foi quando a namorada o acordou porque durante o sono não se calava “que tinha de mudar o cano à arma.” Mas não passou de um sonho.

Ao longo de dez anos de carreira militar, Sérgio só conheceu um caso de Stress Pós-Traumático, apesar de admitir que outros podem-lhe ter passado à frente dos olhos. “O que conheci, já cá não está. Ficou perturbado, suicidou-se.”

Felizmente, tenho uma mulher que me entende e que obrigou-me a ir ao médico.

Quantos sofrem em silêncio?

(Testemunho escrito com base nas palavras de um militar português que participou numa missão internacional nos últimos dez anos.)

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