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Fui à procura de Madonna mas só encontrei a Dona Fernanda

Entre o Liceu Francês e um autocarro do Fófó, do Pestana Palace aos imóveis mais chiques da Lapa, por Alfama e por WC públicos, Pedro Vieira quis descobrir por onde anda a nova rainha de Lisboa.

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Last night I dreamt of San Pedro

Mas também com Santa Maria Maior, Santo António e São Vicente, padroeiro de Lisboa. Isto porque Madonna anda mesmo em roda livre pela cidade, numa altura em que é cada vez mais dispendioso alguém tornar-se lisboeta. A rapper Capicua já se cruzou duas vezes com ela, a primeira num restaurante chique na zona da Avenida de Liberdade, a segunda num ateliê de um artista. “De ambas as vezes estava acompanhada por amigos portugueses e fez questão de ser discreta e de evitar fotos”. A capital portuguesa pode ser, de facto, uma Isla Bonita, sobretudo se pudermos enfrentar rendas e compras de imóveis com um encolher de ombros e uma canção trauteada. O que é facto é que Lisboa tornou-se mesmo muito apetecível, trendy, como escrevem as publicações da especialidade, graças à paz, ao pão (saboroso e variado), à habitação (se tivermos orçamento para palacetes), à saúde, à educação (no Charles Lepierre) e ao clima temperado.

O que significa que hoje em dia é cada vez mais fácil disputarmos um lugar na esplanada do Jardim das Amoreiras com o Eric Cantona ou um molho de brócolos no supermercado com a Monica Bellucci. Naturalmente Madonna acaba por ser uma espécie de cereja no topo do bolo, para usar a terminologia de Jorge Jesus, nesta espécie de corrida às celebridades, sendo capaz de gerar por si só um manancial de artigos e peças na imprensa, só porque resolveu abraçar a pátria da sardinha gorda e da alfândega céptica. Peças como esta, que tentou seguir os passos da estrela pop em Lisboa, sem direito a avistamentos furtivos ou golpes de sorte, apesar de todo o trajecto ter sido feito a pé. Por contingências orçamentais e porque é mais provável ver passar uma estrela se não estivermos enfiados num túnel do metropolitano ou encafuados no meio do eléctrico 28.

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Rua do Arriaga, 2

Visto de fora, o palacete impressiona. Paleta de cor a fazer lembrar as villas romanas, fachada imponente, janelas e portas cerradas. Orientação favorável à luz solar, pilaretes que impedem o estacionamento selvagem nos passeios circundantes, grades de segurança nos acessos ao rés-do-chão.

Foi noticiado o interesse de Madonna num imóvel situado no bairro da Lapa, avaliado em sete milhões e meio de euros, uma antiga residência de embaixadores britânicos em Lisboa durante mais de 100 anos. Do lado de fora adivinha-se um jardim de respeito e o ambiente ao redor é mesmo tranquilo, apesar de ser dia de semana. Nada bule nestas ruas durante o tempo em que o repórter deambulou pelo local. Excepção feita a uma senhora munida de um saco com três maçãs starking e uma mala Louis Vuitton de imitação – sim, mesmo na Lapa – que se esgueirou num ápice para dentro do palacete, entrando pela Rua São Francisco de Borja. Se estivéssemos ao serviço do jornalismo tablóide teríamos de pronto uma cacha com o título “Madonna manda vir fruta” mas felizmente não é o caso.

Na padaria de dona Fernanda, Madonna já tem direito a um lugar na montra, espécie de instalação de arte contemporânea, entre bonecos enfeitados com rostos de celebridades recortados do jornal, quadras populares escarninhas, da autoria da dona da loja, e folhetos de campanha de várias cores e tendências.

O silêncio impera no bairro e nem a proximidade da embaixada do Iraque (os futuros vizinhos da frente da vedeta, se o interesse se confirmar) parece ameaçar a tranquilidade do local. Aliás, o polícia encarregue da vigilância exterior parece mais entretido em trocar mensagens via telemóvel do que em prevenir uma sublevação sunita que avance pelas ruas pavimentadas a paralelepípedos e debruadas a calçada portuguesa. Essa seria uma desvantagem, se Madonna resolvesse deslocar-se a pé, entre saltos altos e solas de plataforma, mas também não parece ser esse o caso.

Vantagem adicional: a localização próxima do Museu Nacional de Arte Antiga poderá proporcionar-lhe o convívio íntimo com mais Madonnas e a prova última da tranquilidade da zona é o facto de conseguirmos apreciar cartazes por vandalizar da campanha autárquica de Assunção Cristas. Uma raridade, por estes dias.

Rua da Lapa

“Meus amigos muita atenção
Que a campanha vai começar
Candidatos não faltarão
Nesta rua a chatiar!”

Se nas artérias que envolvem o referido palacete não há sequer um sítio onde tomar a bica, a umas dezenas de metros de distância, tudo muda. Na padaria de dona Fernanda, Madonna já tem direito a um lugar na montra, espécie de instalação de arte contemporânea (a contrastar com o acervo do MNAA), entre bonecos enfeitados com rostos de celebridades recortados do jornal, quadras populares escarninhas, da autoria da dona da loja, e folhetos de campanha de várias cores e tendências. Aqui, Madonna partilha o palco com Salvador Sobral, colocados à frente de um vaso com plantas e atrás de duas guitarras-miniatura, cortesia do merchandising Millenium BCP.

“Ainda ontem passou por aqui, montada numa mota e com os gorilas todos atrás.” Apesar do aparato, Fernanda acha que a estrela mantém um perfil discreto. “Já não é a primeira vez que a vejo, a gente olha e nem diz que é ela. E isto é um bom sítio para ela viver, o povo português atira-se menos às celebridades. Está sempre tudo tranquilo.” Dona Helena, freguesa habitual da padaria, gostava de cruzar-se cara a cara com Madonna:

— Pedia-lhe algum, para me ajudar a encontrar uma casinha para alugar.

— Ó dona Helena, se a ajudasse a si, depois tinha de ajudar a todos.

— Eu só queria algum para alugar uma casinha. Posso ficar a tomar conta dos filhos dela, ou então dar-lhe umas massagens.

Helena vive num prédio degradado da zona e o seu sonho era morar em Campo de Ourique.

“Está um bairro tão lindo, mas hoje em dia quem é que pode lá morar?”. Entre lamentos e farpas ao mercado do arrendamento, a conversa desliza do assunto Madonna para os candidatos autárquicos. A casa de Medina. O apagão de Leal Coelho. É então altura de o repórter se fazer à estrada, sem antes levar uma rima para o caminho:

“E que o rebanho de curiosos
Não nos traga só tresmalhados
Que esta gente daqui tem tojos
Prós deixar todos picados!”

Amoreiras

À porta do Charles Lepierre, mais conhecido como liceu francês, vive-se a agitação de um dia normal de aulas. Alunos que entram e saem num corrupio, pais que aparecem à porta, professores dirigindo-se aos seus automóveis, crianças mesmo pequenas com iPhones na mão. Alguns miúdos preparam-se para uma surf trip, garantida por uma empresa especializada em transporte de crianças. Outros deambulam em frente ao liceu, muitos rumam ao centro comercial das Amoreiras para almoçar. De David Banda, filho mais velho de Madonna, nem sombra.

Numa casa de banho pública, 50 cêntimos por alívio, arrecadados por um funcionário que ainda não teve a felicidade de cruzar-se com Madonna. “Mas ela que venha, gostava que ela viesse, para a gente tirar aqui uma fotografia”.

Dentro do shopping, e segundo informações recolhidas na livraria Bertrand, the plot thickens. Um livreiro que prefere não ser identificado garante que a relação da estrela com o estabelecimento de ensino implicou algumas alterações no estacionamento e na circulação do trânsito envolvente. David também está incluído numa lista de alunos que deverão comprar manuais de língua portuguesa encomendados pelos docentes do liceu naquela livraria, embora não se tenha registado qualquer alvoroço na hora de levantar a encomenda. A gente olha e nem diz que é ela. Dona Fernanda dixit.

99-85-SR

O dever de repórter deveria levar-me até ao centro de estágios do Benfica, ao Seixal, mas o Observador é omisso em relação a despesas de representação. O plano B levar-me-ia até ao estádio da Luz mas sofro de uma paralisante objecção de consciência clubística. Ao avistar uma carrinha do Fofó, o verdadeiro clube de Benfica, na Rua da Escola Politécnica, sinto que esta etapa da reportagem fica cumprida. Aliás, a carrinha do Fofó trazia vidros fumados. É bem possível que a Madonna estivesse acoitada lá dentro.

PS: As instalações do Clube Futebol Benfica albergam a oficina de automóveis “Fofocar”. Isto não se inventa. E é melhor do que a maioria dos singles lançados pela Madonna desde “Hung Up”.

Rua Nova da Trindade

Madonna terá sido avistada no Bairro do Avillez, o último desdobramento do império do chef que guarda no bolso um par de estrelas Michelin. No dia em que o repórter saiu em busca da material girl, o ambiente era modorrento, salvando-se apenas um cacho de turistas entretidos a tirar fotografias ao espaço. Da equipa de serviço ninguém tinha servido Madonna.

Saindo à rua, e avançando meia-dúzia de metros, o alfarrabista A Barateira, transfigurado no bar/conceito/barbearia/poiso de cerveja O Purista, aparenta uma atmosfera com cara de poucos amigos, com meia porta fechada, luz quase inexistente e um cliente a quem aparam o cabelo à máquina. Da rainha da pop, nem sinal. Prosseguimos viagem. Cá fora, gente acotovelando-se com mapas na mão, carros em buzinão, a EMEL praticando a insustentável leveza de bloquear. Tudo normal.

WC públicos da junta de freguesia de Santa Maria Maior

Lisboa tem sido forçada a adaptar-se aos desafios trazidos por uma vaga de turistas sem precedentes e por uma gentrificação verdadeiramente acelerada e uma das mudanças passa pela colocação de torniquetes nas casas de banho públicas das “zonas de interesse”. 50 cêntimos por alívio, arrecadados por um funcionário que ainda não teve a felicidade de cruzar-se com Madonna. “Mas ela que venha, gostava que ela viesse, para a gente tirar aqui uma fotografia”. Não conseguimos imaginar cenário mais apetecível.

Alfama

Em contraste com o sossego que banha a envolvente do palacete da Lapa, autêntico mar da tranquilidade, Alfama vive uma espécie de atmosfera-formigueiro, entre cargas e descargas, turistas em movimento e uma babel de línguas. A banda sonora é, mais do que o fado vadio ou os pregões de outras épocas, a dos trolleys com rodinhas. A artista plástica Ana Vidigal veio viver para o bairro mais ou menos na mesma altura em que Madonna se passeava em Veneza, escapando ardilosamente à perseguição de um leão. “Vim para cá nos anos 80 e não foi nada fácil. Fizeram-me a vida negra. Para já, era filha de um senhorio. E depois, fazia parte de um grupo de pessoas que não se enquadrava no bairro, com hábitos e horários estranhos”.

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Lost in Lisbon…….. ????????????

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À época houve um movimento de descoberta de Alfama por uma série de jovens artistas e profissionais liberais que resolveram habitar uma zona de Lisboa onde não existia classe média e onde a vida era essencialmente comunitária. Para o melhor e para o pior. A chegada de uma burguesia jovem, boémia, provocou mais atrito do que o veraneio de uma estrela pop nos dias que correm. “Demorei dez anos até me sentir bem no bairro. Recebiam-me mal na mercearia, esvaziavam-me os pneus do carro. Mas com o tempo as coisas foram melhorando e hoje em dia adoro viver aqui, parece é que vivo no estrangeiro”. Ana Vidigal assistiu a mudanças profundas em Alfama e vê com bons olhos a reabilitação que vai acontecendo. “A minha rua estava a cair de podre. Agora há muitos edifícios recuperados, há muitos senhorios de classe média que têm uma ou mais casas que estão a recuperar e a destinar ao alojamento local. Mas não me parece que sejam especuladores”.

Em relação ao destaque que se tem dado à vinda da artista para Lisboa, Ana corta a direito. “Acho uma saloiice. Aqui vive-se bem porque não há pressão sobre as pessoas. Se começam a chateá-las muito, mudam-se num instante para outro lado. Deixem lá a mulher descansada”.

Ana reconhece que há camadas populares de Alfama que agora não têm acesso à habitação naquela zona – é a classe baixa, então dominadora que está a desaparecer – mas acha que é um fenómeno comum a outras cidades. “Em muitos sítios é impensável morar-se no centro. Quem vive em Nova Iorque, mora nos arredores. É o que está a acontecer aqui. Vivi muitos anos numa Alfama Nápoles, agora deixem-me lá viver um bocadinho numa Alfama Manhattan”. Então e as celebridades? Ana ainda não se cruzou com Madonna, embora saiba que a estrela se tem passeado pelo bairro, entre idas aos fados e concertos privados em prédios nas redondezas, cruzando-se com muitos mochileiros pé-descalço e rastas longas. Music mix the bourgeoisie and the rebel, lá diz a moça.

Em relação ao destaque que se tem dado à vinda da artista para Lisboa (mea, nostra, culpa), Ana corta a direito. “Acho uma saloiice. Aqui vive-se bem porque não há pressão sobre as pessoas, o ambiente é saudável. Se começam a chateá-las muito, enfim, têm muito dinheiro, mudam-se num instante para outro lado. Deixem lá a mulher descansada”.

Na pastelaria Alfacinha mal se nota a propalada descaracterização do bairro. No interior, a música de Roberto Carlos salta do Youtube para dar atmosfera à sala. Mulheres que já contam algumas dezenas de primaveras bebem Sagres Radler. A única pista para o zeitgeist turístico é dada por uma senhora que se esforça por aprender rudimentos de inglês com o genro, de forma a conseguir comunicar com os inquilinos de circunstância. “Diz nineteen? Náine tin? Oh pá.”

Cá fora, na micro-esplanada, uma assembleia constituída por Brites, Paula, Mário, Honorato e Cortez prefere o assunto autárquicas ao fait-divers Madonna. Entretêm-se a esmiuçar o folheto de candidatura “Lisboa Precisa de Todos” para a junta de freguesia de São Vicente, que hoje em dia agrega vários bairros, e que traz em destaque as fotografias de Fernando Medina e da actual presidente Natalina Moura:

— O Quadrado (candidato do PSD) só é conhecido na Graça. O Vitor Agostinho (CDU) só é conhecido em São Vicente. Ao menos ela (Natalina) é conhecida em todo o lado.

— É conhecida, é. É conhecida como a Pinóquia.

— Não é que eu não goste dela, não gosto é de quem me faz mal.

— Há coisas que a junta de freguesia não pode fazer. Tem de se votar bem é quando se vota para o governo, que faz as leis.

— Diz que esse aí comprou uma casa por 5000 euros, disseram na televisão.

— Ó mulher, você não sabe contar euros. Nem por 5000 contos, quanto mais 5000 euros. Uma casa nas Avenidas Novas? Nem pense.

— Foi o que disseram na televisão.

— Só negócios…

— Já eu fiquei sem casa e ela nada.

— Mas isso não tem a ver com as juntas, tem a ver com as leis. Nem sequer com as câmaras, é quando se vota para os governos.

— Não há lei nenhuma para os alojamentos.

— Ai há, há.

— Então vá lá ver se há.

— Também não é a junta que vai mudar a lei…

Todo o folheto é esquadrinhado à moda da política de proximidade, enquanto o manancial de línguas estrangeiras serve de cama sonora ambiente. Este é filho daquele, esta é a que trabalha acolá. Então mas este não era de outro partido? Uma coisa é certa, o alojamento local e o disparar do preço das rendas para valores astronómicos está a mexer com as pessoas. Muito mais do que Madonna, ou outras celebridades que se instalaram na cidade. Tomando de empréstimo novamente a terminologia de Jorge Jesus, Madonna, Fassebender, Bellucci, isto é gente que joga noutro campeonato. De regresso ao interior da Alfacinha, João copia à mão um poema para um caderno e tenta entoá-lo à moda de um fado, claro. De Madonna, já ao entardecer, nem rasto. Bloco de notas fechado, viola enfiada no saco. Deixemos mas é a mulher descansada.

Pedro Vieira é pivô de televisão e ilustrador relutante.

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