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Jorge Vassallo, 40 anos, tem um daqueles empregos que provocam inveja a quem gosta de viajar. Trabalha na agência de viagens Nomad há sete anos e conhece países como o Laos, Vietname e Camboja quase como as palmas das próprias mãos. Fez a primeira visita há 15 anos. É autor do blogue “Fui dar uma volta” e lança, nesta terça-feira, 4 de outubro, o livro “Indochina”, que conta histórias vividas durante os périplos por estas paragens do sudeste asiático. Em exclusivo para o Observador, Jorge Vassallo escreveu “No professionals”, texto que se junta a dois capítulos que integram o livro, “Sarah” e “Como atravessar a estrada no Vietname”, editado pela Oficina do Livro.

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No professionals

Em Saigão é muito frequente sair à noite com os grupos que me acompanham na viagem da Indochina – pelo que até já incluí, no texto do programa, uma sugestão a isso mesmo. Normalmente começamos por beber uma cerveja num dos bares improvisados ao longo da Bùi Vên, depois seguimos para o “Apocalypse Now”, onde dançamos e bebemos até às tantas. Ou seja: há pessoas que, por conhecerem alguém que já tenha viajado comigo, ou porque estão atentas ao programa, já aparecem com a expectativa de ir “abanar o capacete” na última noite que passamos no Vietname.

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No entanto, noites há em que este vosso humilde servo não se sente com energia, ou está sem vontade, ou mal disposto, ou pura e simplesmente não está para-aí-virado. Esta história é sobre uma dessas noites. Ou, melhor, sobre as consequências de uma dessas noites.

Já não me lembro porquê e sinceramente não interessa muito: só sei que três ou quatro raparigas queriam muito sair, mas eu não. Depois do jantar, a maior parte do grupo voltou para os seus quartos mas elas queriam ir dar uma volta, cheguei a explicar-lhes para onde podiam ir e como, “desculpem lá mas hoje fico em casa, preciso de descansar”. E provavelmente porque não se sentiam à vontade para sair sozinhas no Vietname, acabaram também por desistir e voltar para o hotel – mas não sem antes eu prometer que, para compensar, iríamos “dar um pézinho de dança” noutra noite qualquer, ao longo da viagem.

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Fotografia: Jorge Vassallo

Ora, “noutra noite qualquer”, para mim, era em Banguecoque. Quatro ou cinco noites depois. O que não quer dizer que, para elas, fosse a mesma coisa. No dia seguinte seguimos viagem e deixámos para trás o Vietname, entrando no segundo país deste intenso périplo, o Camboja. Ficámos a dormir em Phnom Penh, a capital – e logo na primeira noite fizeram saber que, para elas, “noutra noite qualquer” podia ser já amanhã.

“A sério? Querem sair em Phnom Penh?”

“Porque não? Parece animada, a cidade. Não devem faltar sítios onde se possa dançar e beber com os locais.”

Tentei-lhes explicar que, apesar de haver uma quantidade enorme de bares, não havia muita variedade. Pelo menos que eu soubesse – confesso que só saí em Phnom Penh duas ou três vezes. E das poucas vezes que saí à noite na capital do Camboja, fui invariavelmente parar a lugares frequentados principalmente por “profissionais do ataque”, mafiosos locais e alguns expatriados:

“Dificilmente vamos encontrar o tipo de lugar de que vocês estão à procura.”

“Mas deve haver algum lugar normal. Não?”

Nem vou discutir aquilo que penso sobre a expressão “normal”.

“Vou tentar descobrir. Claro que há esplanadas e bares para conversar, e há discotecas também, mas não sei se há aquilo que vocês querem. Vou ver.”

Dito e feito. Pesquisei na net e fiz uma pequena selecção de lugares, telefonei a um amigo local para me confirmar ou desaconselhar alguns, mas-isto-é-Phnom-Penh, disse-me, há-sempre-alguém-ao-ataque, e há-sempre-alguém-à-procura. É uma selva.

Este, por exemplo. Até é giro, mas é um antro de meninas e expatriados.

E este: não é nada de especial, que buraco, nem as profissionais lá vão.

E este: é melhor não, é caríssimo, tem dress code e é frequentado por filhos de ministros e os respectivos capangas, sempre à procura de problemas, eu se fosse a ti não levava lá ninguém.

Olha este: este é capaz de ser mais “normal”, não conheço bem, e pelos vistos até tem boas referências na internet.

Nessa noite jantámos no night market, eu e o grupo; como de costume, sentados no chão como os locais, comendo os fritos e os noodles à venda nas bancas em redor. Depois passámos na minha gelataria preferida de Phnom Penh (que também já é de visita obrigatória, quando cá estou com os grupos) e a seguir alguns voltaram para “casa”, uns poucos decidiram-se por uma massagem e as quatro raparigas que queriam muito sair, foram sair.

Comigo.

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Fotografia: Jorge Vassallo

Mandámos parar um tuktuk e explicámos-lhe para onde queríamos ir. A noite estava quente e húmida, como é normal aqui, e soube bem sentir algum vento na cara, enquanto rasgávamos a cidade de uma ponta à outra. Quando finalmente parámos, o driver combinou ficar à nossa espera; e entrámos então por um portão que podia ser de qualquer vivenda. Lá dentro encontrámos um jardim muito simpático com algumas mesas espalhadas, não havia música e muito menos uma pista de dança – e não tinha praticamente clientes. Que tristeza.

Não era bem isto que queríamos.

Dirigi-me ao corpulento americano atrás do balcão e, sem rodeios, fui o mais franco possível:

“Desculpe, acho que viemos um bocado ao engano. As minhas amigas querem dançar, por isso estávamos à procura de algo mais animado.”

“Animação é o que não falta em Phnom Penh, my friend.”

“Sim… hmmm… eu sei. Mas eu estou com as minhas amigas e só queremos beber um copo e dançar. Procuramos um lugar animado, mas sem profissionais.”

Sorri. Ele sorriu de volta.

Acompanhou-nos ao tuktuk. Elas perguntaram-me o-que-foi e eu disse deixa-lá-ver. O homem trocou algumas palavras com o condutor, em khmer, debateu com ele o estado da nação e os problemas do mundo, e no final voltou-se para mim com um ar solene e anunciou:

“Okay, ele vai levar-vos a um lugar…”

“…que não tem profissionais.”

“Não te preocupes, my friend. Não tem profissionais.”

Subimos para o tuktuk e enquanto deixávamos para trás o americano e o seu silencioso bar, voltei a insistir com o driver:

“Hey… this bar… no professionals, right?”

“Don’t worry. No professionals.”

A expectativa era quase tão alta quanto a temperatura. Durante a viagem pouco se falou, sorríamos quando os nossos olhares se cruzavam mas era estranho quando víamos famílias inteiras a dormir na rua, as crianças nuas e sujas, acordadas a tão tardias horas. Os cães vadios, o lixo espalhado, os carros de alta cilindrada a reflectir as luzes da cidade. Este lugar de contrastes que são contradições, isto não faz sentido e no entanto é mesmo assim.

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Fotografia: Jorge Vassallo

Quando chegámos finalmente ao nosso destino, descemos do tuktuk e, antes de nos dirigirmos para a porta do bar, eu sei lá porquê mas decidi perguntar mais uma vez:

“My friend… are you sure there are no professionals?”

“No professionals here.”

“I’m with my friends”, disse apontando para as raparigas.

“No professionals.”

Avançámos e empurrei a porta, fui logo assaltado pelo bombar da música e pelo ar condicionado.

Estava escuro. Que fresco. Entrei.

Deixei os olhos habituarem-se e então percebi que o bar estava praticamente vazio. Ao balcão estavam quatro ou cinco mulheres. Sentadas em bancos altos, de pernas cruzadas e saltos altos, cada uma sozinha, vestida com pouco mais que uma micro-saia e um top. Todas elas dirigiram o olhar para a porta e, como se as quatro mulheres com quem eu estava fossem invisíveis, mal viram o potencial deste cliente branco, os seus sorrisos brilharam como se tivessem diamantes e nos olhos apareceram dourados cifrões.

Voltei-me para trás e vi nos rostos das quatro viajantes uma expressão que gritava que-lugar-é-este?!

Saímos.

Sempre a rir, até ao tuktuk.

“Olha lá! You said no professionals, man.”

“But no professionals here.”

“Sorry but there were four or five women there…”

“Oh… but those are not professionals… they are freelancers!”

Sarah

Googla na net, pesquisa no teu guia, pergunta a quem quiseres: qualquer top ten dos lugares a visitar em Luang Prabang inclui invariavelmente as cascatas de Kuang Si, a quase trinta quilómetros do centro da cidade.

Backpackers de calções comprados na Khao San Road0 e coreanos vestidos de lycra até aos pulsos, selfie sticks e monges de robe côr-de-laranja. Goste-se ou não da moldura humana, a verdade é que este postal é muito-muito bonito: por um lado é uma versão mais tímida do parque de Plitvice Jezera (conheces?, fica na Croácia, que espectáculo de lugar), por outro é um bom escape ao calor. Nos dias de calor, portanto. Ah: e ainda tem o centro de protecção dos ursos asiáticos, mais um parque de borboletas a menos de quinhentos metros.

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Fotografia: Jorge Vassallo

A história que vou partilhar agora começa quando estava a voltar de Kuang Si, depois de passar a tarde nas cascatas, onde fiz um piquenique com um grupo. Comemos peixe grelhado, laap de galinha e salada lao – e algumas pessoas foram nadar numa das piscinas naturais. Depois voltámos para a minivan e seguimos sorridentes para Luang Prabang

e até aqui tudo bem,

tudo igual a outras viagens,

nada de extraordinário a assinalar.

Atravessámos pitorescas aldeias e verdíssimos arrozais, templos coloridos e estátuas de budas dourados, galinhas a atravessar devagar a estrada com as respectivas filas de pintainhos atrás, mais as crianças fardadas a sair das escolas, a pé pela berma da estrada em grupos de seis, dez, dezoito, trinta, de braços à volta dos ombros uns dos outros, mais as mochilas enormes às costas, sorrisos e traquinices, dá gosto ver, e outros de bicicleta, às vezes dois em cada, a segurar o chapéu-de-sol aos quadradinhos – para mim esta é a imagem de marca do Laos, se tivesse de definir um postal que resumisse o país era um templo e uns monges ao fundo e em primeiro plano uma miúda a passar de bicicleta, uma mão no guiador e a outra a segurar um chapéu-de-sol, esta imagem diz tudo, mostra como aqui tudo acontece num ritmo muito próprio, porque uma pessoa a andar de bicicleta com um chapéu-de-sol na mão não pode ir depressa,

e sim, isto “diz” tudo.

Ou, como no trocadilho que é comum fazer com o nome do país em inglês, quando perguntas o que quer dizer o PDR em Lao PDR:

Please Don’t Rush.

Uma excursão de borboletas passa a voar, nos arrozais ao longe vejo vacas e búfalos a pastar, passamos por pontes de ferro e madeira onde só atravessa um veículo de cada vez. Uma mulher hmong3 caminha num trilho entre as árvores, com um cesto de verga às costas como se fosse uma mochila. Passa uma mota com quatro rapazes montados, todos a rir. Vejo roupa pendurada em cabides, a secar ao sol. Duas raparigas a lavar o cabelo numa fonte. Três noviços budistas sentados no muro do mosteiro, concentrados a ver qualquer coisa no telefone de um deles, uma estátua dourada atrás, enorme, do Buda sentado a convocar a Deusa da Terra.

Que momento tão bucólico, e curiosamente tão estranho ao mesmo tempo, é como se viajássemos numa bolha de ar, as janelas fechadas, quente lá fora e tão fresco aqui dentro, seguimos em silêncio porque alguns já dormem, e quem não dorme vai sossegado a apreciar a paisagem…

…quando subitamente a minivan abranda, o tuktuk à nossa frente pára, vejo pessoas a sair das casas à volta, a correr, noto alguma tensão naquele ambiente e decido sair para investigar sobre o que terá acontecido.

“Fiquem no carro, vou ver o que se passa.”

Saí.

Que calor.

E além da multidão que se acumulava à volta de uma carrinha parada junto a uma ponte, vejo um turista a correr de-um-lado-para-o-outro aos gritos, a dizer coisas do género “ela vai morrer!, ela vai morrer!” e “ajudem-me a tirá-la daqui!”

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Fotografia: Jorge Vassallo

Acelerei o passo e depressa percebi o que se tinha passado: um sorngtaaou tinha chocado de frente com uma minivan que vinha a sair da ponte no sentido contrário. Como me explicariam depois, ambos travaram mas já não foi possível evitar a colisão – que, apesar de muito ao-de-leve, sem consequências vistosas para as viaturas nem para os passageiros, foi suficiente para deslocar a “gaiola” do sorngtaaou e deixar uma turista inconsciente.

“Ela vai morrer! Ninguém faz nada e ela vai morrer!”

Aproximei-me da carrinha e vi uma turista deitada, com um rapaz ao lado que mais parecia estar a rezar, a falar muito colado a ela, então a barata tonta agarrou-me pelo braço, os olhos a gritar ajuda-me-a-tirá-la-daqui-para-fora, isto foi tudo muito rápido e eu a processar toda aquela informação, podia ter dado para outra coisa qualquer mas de vamos-lá-resolver-isto-com-calma e disse-lhe para ninguém mexer nela:

“Tenho um enfermeiro no carro, vou buscá-lo, por favor não façam nada!”

O Timóteo e a Fernanda, um casal de Setúbal que já tinha viajado comigo no Transiberiano, eram enfermeiros com bastante experiência. A enfermeira Flores, como é conhecida a Fernanda, já está reformada – e a sua especialidade é bebés, mas o Timóteo é da velha-guarda e ainda no activo, daqueles raros homens que já salvaram a vida a meio-mundo, um personagem verdadeiramente castiço com o coração tão grande quanto a barriga.

E é o grande herói da aventura que ainda agora estava a começar.

Voltei a correr para a minivan e expliquei de uma rajada o que acontecera.

“Timóteo, preciso de ti!”

Um instante depois estávamos de volta ao sorngtaaou. O Timóteo mandou toda a gente afastar-se e explicou-me que tínhamos de encontrar uma forma de a levar para o hospital, mas sem grandes movimentações. Fez algumas perguntas ao miúdo, eu fui traduzindo, primeiro de português para inglês e depois de inglês para português.

Os outros passageiros estavam bem: um ou outro arranhão, um susto – mas tudo bem. A miúda chamava-se Sarah, era inglesa e tinha vinte anos; o namorado era o Jay, dezanove, estava completamente “à nora”, nem quero imaginar o que passa pela cabeça de alguém numa situação destas. Dois miúdos em viagem pelo Sudeste Asiático, sozinhos, e de repente isto. Coitados. Depois havia uma família neo-zelandesa (o Dorje, que era o homem que eu tinha visto a correr aos berros de um lado para o outro; a mulher Keryn e o filho Tashi, de oito anos, que ficou pendurado na parte de trás do sorngtaaou , felizmente agarrado pelo pai, e ainda fez uns arranhões na perna, era o que tinha mais marcas mas nada de grave); e um casal tailandês de vinte e poucos anos também, e que estavam assustados mas sem qualquer mazela.

O acidente em si nem tinha sido muito grave, a Sarah é que teve azar: bateu com a cabeça em algum lado, ou deu um “mau jeito” e ficou inconsciente, deitada no banco corrido da “gaiola” que, felizmente, desencaixou. Felizmente: porque só desta forma foi possível tirá-la dali sem grandes movimentações, pois o próprio banco onde estava deitada serviu de maca.

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Fotografia: Jorge Vassallo

Não sei se foi o neo-zelandês ou o Timóteo ou algum local – eu não fui, que me lembre -, mas alguém pediu ajuda a uma carrinha de caixa aberta que estava parada na fila que entretanto se acumulara atrás da minha minivan. O Timóteo fez sinal para que esta estacionasse mesmo ao lado do sorngtaaou, a multidão afastou-se para a viatura passar, e depois de todos orientados sobre como pegar na maca, que movimentos fazer, etc… one, two, three! e de uma só vez passámos o banco corrido onde a Sarah estava deitada para cima da carrinha. Corri outra vez para a minivan e expliquei que ia com o Timóteo levar a miúda ao hospital, deixei algumas orientações ao grupo e:

“Encontramo-nos no hotel às oito, para jantar.”

Subimos então para a parte de trás da carrinha: eu, o Timóteo, a Sarah e o Jay, a família neo-zelandesa e o casal de tailandeses – e lá fomos, de cabeças ao vento e corações agitados, pela estrada fora rumo ao hospital. Durante o caminho fui traduzindo as orientações que o Timóteo dava constantemente ao David, fala-com-ela, pergunta-lhe-isto, diz-lhe-aquilo, e a Sarah parecia aos poucos começar a reagir, murmurava qualquer coisa sem sentido, chegou mesmo a tentar mexer a cabeça mas o Timóteo pediu para eu dizer ao Jay, para ele dizer-lhe a ela, “não te mexas, está tudo bem mas vamos ao hospital ver o que diz o médico, não te mexas.”

“Ele que continue sempre a falar com ela, está bem assim.”

Keep talking to her.”

E enquanto nos orientava a todos o Timóteo tocava-lhe na testa, via-lhe as pálpebras, segurava-lhe no pulso, já nem me lembro muito bem tudo aquilo que fazia mas eu ia fascinado com o trabalho daquele homem.

Quem sabe, sabe.

A viagem demorou anos. Parecia que nunca mais chegávamos.

No hospital, pouco mais havia a fazer. Quando chegámos o Timóteo ainda acompanhou a equipa local, transmitiu uma espécie de relatório, comigo sempre a fazer de intérprete. Mas depois deixou-os tomar as rédeas. Ficámos à espera no corredor, com os outros “acidentados”, genuinamente preocupados com a Sarah. É curioso como situações de alta tensão aproximam estranhos de uma forma tão intensa. Naqueles minutos partilhámos histórias de vida e demo-nos a conhecer um pouco uns-aos-outros, e quando mencionei o meu trabalho com a agência de viagens e as crónicas que publico no meu blog, o miúdo neo-zelandês ficou todo entusiasmado porque também gosta de escrever e os pais até abriram um blog para ele ir contando as aventuras desta viagem.

“Vou escrever um texto sobre hoje”, disse-me o puto com os olhos a brilhar.

“Fazes bem”, disse-lhe em tom de guru mais velho com anos de experiência, “deves transmitir as tuas emoções e aquilo que sentes, e tentar ao máximo que os leitores do teu blog partilhem a experiência. Nem sempre é fácil, às vezes pode parecer impossível, mas não custa tentar. Mesmo que só toques numa pessoa, apenas uma!, já valeu a pena.”

Explicaram-nos que a Sarah ia fazer raio X e mais-qualquer-coisa, não me lembro o quê – e que não havia forma de fazer TAC em Luang Prabang, por isso fosse-qual-fosse a evolução dela nas próximas horas, o ideal seria seguir no dia seguinte para Banguecoque. Há sempre um médico tailandês de prevenção aqui, devido a uma parceria com um hospital de Banguecoque, que por coincidência ia voltar para a Tailândia no dia seguinte, ou assim entendi. O importante é que ela ia acompanhada.

E como já disse: não havia muito mais que pudessemos fazer.

Aproveitámos a boleia da carrinha e voltámos todos para Luang Prabang. Todos excepto a Sarah e o Jay, claro. Estafados, deixámos os outros turistas nos respectivos hotéis e voltámos à nossa guesthouse, eu e o Timóteo. O grupo estava ansioso por novidades, como é natural. Jantámos e depois voltei para o hospital com um farnel para os “acidentados”: a Sarah estava acordada, deitada na cama com uma “coleira” ao pescoço, ainda desorientada, mas consciente.

“Não se pode levantar”, disse-me ele. “Já se quer ir embora mas os médicos não deixam. Vamos amanhã de manhã para Banguecoque, para fazer o TAC e ter a certeza que está tudo bem. Mas não se lembra de nada.”
Não me demorei muito no hospital, apenas o tempo suficiente para lhes dar o jantar, fazer um update da situação, desejar boa sorte.

“Mantenham-nos a par da situação.”

Monge a sorrir

Fotografia: Jorge Vassallo

No dia seguinte o grupo foi-se embora para Portugal, ficou só a São, com quem já viajei antes e que hoje é uma boa amiga. Fomos fazer um cooking class e, surprise-surprise, estava lá a Keryn, a neo-zelandesa. O marido e o filho tinham ido passear até à gruta de Pak Ou, a duas horas de barco pelo Mekong acima, um lugar muito especial (que recomendo) com dezenas de milhar de Budas de todos os tamanhos, posições, feitios e materiais.

Mas a cooking class foi um dia muito bem passado, a começar pela visita ao mercado de Phousy, onde ficámos a conhecer as verduras e outros ingredientes mais utilizados no Laos; e depois na cozinha que serve de sala de aula, bem no centro histórico de Luang Prabang, e onde aprendemos a confeccionar laap e outros pratos – qual deles o mais delicioso. Foi a forma perfeita para relaxar das emoções fortes do dia anterior, apesar do acidente ainda estar muito fresco nas nossas memórias.

Mantivemo-nos em contacto com os tailandeses e a família neozelandesa, nos dias que se seguiram, tentando acompanhar a evolução do estado da Sarah. Uma das primeiras mensagens trocadas era do neo-zelandês, que quando voltou do passeio à gruta, e enquanto estávamos no cooking class, visitou o hospital:

I was out at the Hospital this afternoon.

Sarah’s Xrays from lastnight showed no broken bones or obvious problems in her neck. But they kept her in the hospital overnight to keep an eye on her.

They had a Thai doctor and nurse who work at the Bangkok hospital. They said she was OK to stand up and to go to the bathroom etc, which made her very happy. She left to Bangkok a few hours ago.
Dois dias depois, um mail da tailandesa:
I checked with the Bangkok hospital today, she has arrived there yesterday at around 3pm, conscious and some bruises. She has checked with CT scan and there is nothing to worry about. But still in ICU, checking for more. If nothing wrong, the hospital will move her to a normal room.

Enjoy your trips.

Mas quando recebi esta mensagem, tinha caído de cama com uma senhora amigdalite e fui internado no hospital de Luang Prabang, o mesmo para onde tínhamos levado a Sarah. Mas essas peripécias ficam para outro capítulo, não faz sentido “ir por aí” agora.

Agora o que interessa é “fechar” esta história.

Uma semana depois, estava de volta a Hanói, a preparar-me para receber mais um grupo da Indochina. As reservas feitas, as voltas confirmadas, tudo bem encaminhado e quando fui para o aeroporto esperar os primeiros viajantes, eis que estava “em sentido” a ver se reconhecia alguém, quando de repente aparecem o Jay e a Sarah, que pelos vistos tinham aterrado nesse momento.

Que coincidência, qual é a probabilidade?

O Jay, mal me viu, acelerou o passo e veio abraçar-me. Com a voz a tremer disse-me ao ouvido thankyousomuch, thankyousomuch… e então ela aproximou-se, claramente “a milhas” do que estava a acontecer.

She doesn’t remember anything“, acrescentou antes de desabraçar-me.

Depois deu-lhe a mão e com a voz dez anos mais velha do que aquela que eu me lembrava de ter ouvido uma semana antes:

Sarah, this is one of the portuguese guys that saved your life.”

Como atravessar a estrada no Vietname

É das primeira coisas que ensino a quem viaja comigo na Indochina, logo no arranque da aventura em Hanói: como atravessar a estrada. Pode parecer uma ideia tola – se há coisa que, à partida, todos sabemos é como atravessar uma rua de um lado ao outro. Mas a verdade é que, no Vietname como noutros países, as lógicas e dinâmicas do espaço à nossa volta e da nossa interacção com o mesmo não são sempre as mesmas que na nossa zona de conforto.

E isso às vezes inclui coisas tão simples como atravessar uma estrada.

Panorama normal

Fotografia: Jorge Vassallo

Para muitos estrangeiros, é quase um acto de fé – mas eu não sou de seguir verdades absolutas e falsos profetas vestidos com fatos espaciais impermeáveis, eu prefiro ser como uma esponja e absorver as mais complexas verdades, se é que as há, dos mais insignificantes pormenores. Por isso não me venham com a história do ninguém-usa-capacete, os-semáforos-são-só-para-decoração, não-há-ordem-nem-regras-nem-leis.

My friend: despe esse fato, tira esses óculos, descalça-me esses sapatos. Tu não estás em tua casa.

O Certo e o Errado que conheces,

o Quente e o Frio,

o Leve e o Pesado,

o Lento e o Rápido,

o Claro e o Escuro,

o Grande e o Pequeno,

o Longe e o Perto,

as Lógicas e os Códigos, os Contrastes e os Motivos, as Causas/Efeitos:

esquece as coisas-como-elas-são, como as aprendeste, não podes ler esta paisagem nesses termos.
Atravessar a rua e sobreviver… um milagre? Por amor de Deus.

E sim: há pessoas que não usam capacete. Como há pessoas que passam os sinais vermelhos. Mas é obrigatório usar capacete, e quase toda a gente usa. E o sinal vermelho significa parar, e quase toda a gente pára. Não tenhas dúvidas. Tu é que estás habituado a ver todos os motociclistas de capacete e toda a gente a parar nos semáforos, sem excepção, ou salvo raríssimas excepções.

Ou seja: quando vês mais do que só um ou quatro ou treze a não respeitar as regras, segues a tendência comum, partilhada por muita gente, para generalizar. Mas está errado, my friend. Não podes chegar a uma conclusão ao fim de dois ou três minutos de observação – como já vi (algumas vezes) acontecer. Não podes, é tão simples quanto isso. Ninguém-usa-capacete, os-semáforos-são-só-para-decorar, não-há-ordem-nem-regras-nem-leis. Chegaste há meia hora e já tens verdades absolutas, parabéns. Enfim: faz parte.

Mas e se eu te disser que sim, se calhar até há dez ou quinze ou vinte por cento das pessoas que não usam capacete, mas que estão sempre a fugir à polícia, ou a determinadas ruas, ou a dar meia-volta para não ser apanhados? E se eu te disser que a maior parte das pessoas que passa os vermelhos ou está a virar para a direita, onde não interfere tanto com o trânsito? O que não quer dizer que não haja uma dose reforçada de malucos que, como dizes, não respeitam regras nem leis nem nada. Não nego isso, nem pensar. Mas uma coisa é ver-com-olhos-de-ver e aceitar que sim, há uma percentagem maior de pessoas a não respeitar isto-e-aquilo… mas daí a usar levianamente palavras tão absolutas como “ninguém”, “todos”, “nunca” ou “sempre”.

Mas eu ia dar umas dicas sobre “como atravessar a estrada”.

Desculpa lá, às vezes perco-me nestes pequenos devaneios.

Sobre rodas em Hanoi III

Fotografia: Jorge Vassallo

Estás na berma, queres atravessar para o outro lado. À tua volta vês motas e bicicletas, táxis e triciclos, carros e eventualmente um camião ou um autocarro. Não tenhas medo. Dá um passo em frente, com segurança, e vai olhando para o trânsito que vem na tua direcção. Não tens de os fixar como que a ameaçá-los, ou com medo. Mas vai olhando para eles como que a dizer eu-sei-que-tu-sabes-que-eu-sei.

Se puderes atravessa sempre numa ligeira diagonal. Dá-te mais margem de manobra do que numa perpendicular perfeita. E tem especial cuidado com os carros e veículos pesados, porque têm menos poder de desvio.

Atravessa. Baixa o olhar, se preferires, se te fizer muita confusão ver aquelas motas todas a vir na tua direcção – mas, como te disse, o ideal seria ires dando uns olhares ao trânsito. Avança devagar mas a um ritmo decidido, sempre à mesma velocidade, e nunca!, mas nunca aceleres ou desates a correr, e nunca!, mas nunca recues ou voltes para trás. É sempre em frente, como se fosses um zombie. E acredita que o trânsito se vai desviar de ti. Calculando o teu trajecto e a tua velocidade, as motas desviam-se ora por um lado, ora por outro – e eis que de repente chegas ao outro lado, rebenta-a-bolha e está tudo óptimo, estás vivo e inteiro porque respeitaste a Lógica, mais do que a Passadeira de Peões. Essa sim: meramente decorativa.

Sobre rodas em Hanoi II

Fotografia: Jorge Vassallo