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© Hugo Amaral/Observador

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Henrique Neto. De criança que devorava livros a homem que "ralha"

Comunista pela necessidade de ação, palmilhava Leiria atrás da liberdade. Foi nos moldes que viu o futuro, nos livros a saída. E a política? Um desvio. Uma espécie de amor-ódio. Hoje é candidato.

*Artigo inicialmente publicado em março de 2015, quando Henrique Neto anunciou a sua candidatura.

“Ouvi falar dele pela primeira vez em 1969, na Marinha Grande. Eu tinha uns oito anos [ele mais de 30] e fui pela mão do meu pai levar-lhe roupas à prisão, nas Caldas. Não o conhecia, e nem falámos nessa altura, mas lá estava o Henrique Neto, preso por andar a distribuir propaganda”.

— “Andam a arranjar uma rica vida, andam”.

Era Adriano Roldão, o “galifão lá do sítio”, presidente da câmara e um homem da situação. Tinha-os apanhado em flagrante. Mas Henrique Neto até estava responsável pela campanha e tinha autorização para colar um cartaz ou outro. Passou. “Depois fomos para as Caldas da Rainha distribuir os panfletos e foi aí que veio a polícia e apanhou-os a todos sem exceção. Eu vinha no grupo de trás, escapei”.

É aqui que chegamos à visita na prisão. Quem conta a história é Amílcar Martinho, colega de infância de Henrique Neto, que acabaria por partilhar consigo alguns dos tempos mais quentes da juventude irrequieta passada no Movimento de Unidade Democrática, depois no Partido Comunista – o único onde havia ação – e no Sport Operário Marinhense, onde se lia os livros proibidos e se aprendia o inglês. Pela mão, Amílcar levava o filho, Jorge, que naquele dia ouvia pela primeira vez falar no nome que depois seria tantas vezes repetido.

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Henrique Neto acabaria por ser libertado um ou outro dia depois, por força do Dr. José Vareda, formado em Direito e um dos homens mais influentes do seu tempo na Marinha Grande, com quem o jovem Neto se aconselhava amiúde. Os restantes infratores, os que eram considerados “mais agressivos ao regime”, ficariam presos até à Revolução.

"Sempre teve uma necessidade de fazer obra, mostrar que era capaz. Como empresário movia-se pelo lucro, claro, mas não era só o dinheiro. Tinha um certo jeito 'naif' de conseguir os seus objetivos."
Jorge Santos, empresário e presidente da Nerlei

Jorge Santos, o menino de oito anos, hoje tem 54. Fez-se empresário da indústria dos plásticos e presidente da Associação Empresarial da Região de Leiria (Nerlei). Depois desse dia na prisão só se voltaria a cruzar e a conhecer verdadeiramente Henrique Neto décadas mais tarde, nas andanças da vida empresarial, nomeadamente nos congressos e fóruns de discussão da indústria de moldes. Nunca trabalhou diretamente com Henrique Neto, mas sempre partilhou o ramo e por isso as conversas – e o associativismo, que lhes corre nas veias. “Toda a gente sabia quem ele era porque intervinha sempre, onde quer que vá o Henrique Neto tem de intervir”, é ponto assente, diz. Era assim na década de 1980, quando estava no seu auge enquanto empresário, como é hoje, no auge da sua reforma. Pelo meio, e apesar de ter nascido no seio de uma família pobre de operários vidreiros, “conseguiu estar sempre uma data de quilómetros à frente dos outros”, resume o pai Amílcar, hoje com 79 anos.

Mas esta história que se tenta contar é longa e com cabelos brancos. Tem precisamente 79 anos. Mete a luta contra o salazarismo, o alistamento no Partido Comunista, as reuniões clandestinas (sem nunca o serem) na casa da Marinha Grande, e muito mais tarde a chegada ao Partido Socialista, pela mão do advogado e amigo Jorge Sampaio. Mas também mete muitos livros consumidos pelo canto do olho no chão da Bertrand, e o sonho de trabalhar nos moldes – que eram o futuro. Mete um “sopro de sorte” que o faz voar para os EUA, voltando um dos empresários com mais sucesso do seu tempo. Um dos mais ricos e também um dos que mais “ralhava” com os operários.

Começa em 1936, no Beco do Carrasco, bem no centro de Lisboa. Podia começar na Marinha Grande, onde provavelmente se fez, mas quis o destino que fosse nascer à capital...

O pai sempre fora operário vidreiro mas depois da tropa vai parar a Lisboa e arranja trabalho como polícia na esquadra da Boavista. É nessa altura que nasce o primeiro e único filho, num quarto alugado no Poço dos Negros. Os primeiros três anos de vida, o pequeno Henrique vive-os ali. No mesmo andar, no lado esquerdo, vivia a tia Júlia, com a filha – que anos mais tarde viria a trabalhar na Bertrand do Chiado. Depois, foi sempre entre cá e lá, lá e cá. Aos três anos a família volta para a Marinha Grande, porque o pai arranja novo emprego. Mas não fica muito tempo. No final da terceira classe, já a saber ler e escrever, volta para Lisboa, pela mão do pai que arranja novo trabalho como vidreiro na 24 de julho. Acaba a quarta classe e vai parar à Escola Industrial Fonseca de Benevides, porque “o liceu era para meninos ricos”. Mas só fica na capital dois anos letivos, no curso de serralharia – o terceiro, quarto e quinto anos vai acabá-los à Marinha Grande.

Por essa altura, com 14 anos, já trabalhava numa caixotaria do tio, enquanto continuava os estudos à noite. Ajudava a fazer os caixotes de madeira e depois a sua função era entregá-los, de burro pela mão, nas fábricas da zona. Sem irmãos, trabalhou cedo “porque era assim que tinha de ser”. “E mesmo assim não foi tão cedo quanto isso, o meu pai começou aos oito”, conta. Chegava a casa e dava o dinheiro todo à mãe – “não era aos meus pais, era à minha mãe” – para ajudar nas despesas. Foi assim “até vir da tropa e casar”. Deixou os caixotes aos 16 anos para ir atrás do que sempre quis, a indústria dos moldes. O padrinho pô-lo como aprendiz de serralheiro na maior fábrica da Marinha, a Aníbal Abrantes, e depressa subiu ao primeiro andar e passou a desenhador, depois a diretor e mais tarde a proprietário. Mas já lá vamos.

O pai, presente mas ausente, foi possivelmente o fio condutor dos primeiros capítulos desta história. Há quem diga que há uma idade a partir da qual nenhuma realidade supera a memória. Talvez por isso os mais velhos falem pouco e fiquem horas virados para dentro. O pai de que se lembra era assim mesmo. Só tinha a quarta classe, mas lia que se fartava. Sobre política, sobre tudo. Lia mais do que conversava. Aliás, raro era conversar com o filho. Tanto melhor, o silêncio era uma espécie de anuência. E não era preciso muitas palavras para o pai influenciar o filho em (quase) tudo. Tanto na quietude com as leituras, como na permanente inquietude com o trabalho e a vida. A política anti-regime, mais do que uma influência do pai, revolucionário do 18 de janeiro de 1934, foi uma herança da família paterna, toda ela oriunda da tão politizada Marinha Grande.

Reuniões clandestinas na casa da Marinha Grande

Aos 15 anos já estava alistado no MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática) “porque toda a miudagem na Marinha Grande se alistava, menos os filhos das classes mais altas, dos médicos e advogados (esses talvez não)”. Depois, já em idade adulta, entra para o PCP, mais ou menos pelos mesmos motivos.

"Conheci-o quando ele chega com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17 anos, junto às obras da capela da Amieira, para recolher assinaturas para a libertação de Mário Soares." 
Amílcar Martinho, amigo de infância

Amílcar Martinho, que acabaria por ser contabilista até aos dias de hoje, fazia parte dessa miudagem e mantém a memória fresca. Ao Observador, o marinhense conta como conheceu Henrique Neto nessa tenra idade de adolescentes:

“Andava-se a construir a capela da Amieira, ali ao pé da Marinha Grande, e chega ele [Henrique Neto] com um grupo de rapazes da nossa idade, 16 ou 17, a recolher assinaturas para a libertação de Mário Soares. Eu assinei, e até me lembro que depois foram dizer ao meu patrão que me devia demitir por causa disso (mas não demitiu). Foi assim que o conheci”, recorda. No mesmo dia, se a memória não lhe estiver a pregar partidas, os rapazes seguiram para Amor, uma terra perto de Leiria, para continuar o trabalho “e o padre de lá mandou chamar a polícia”. Foi um susto, mas nenhum dos dois foi dentro.

Segundo bem se recorda Amílcar Martinho, “o Henrique Neto foi sempre líder naqueles tempos do PCP da Marinha Grande” e com vontade de ver as coisas feitas. Lembra-se do tempo em que iam “fazer cópias dos cadernos eleitorais à Câmara Municipal” ou do tempo em que Henrique Neto se dava com “os Ministros”, o Carlos, o Vítor e o Lenine Ministro, “todos rapazes muito para a frentex, que acabaram por ter as suas fábricas”.

E lembra-se sobretudo das reuniões, supostamente secretas, que havia entre 1969 e 1973, na casa de Henrique Neto na Marinha. Na altura, Neto já estava na direção comercial da Aníbal Abrantes e já ganhava muito dinheiro, por isso a casa já nada tinha a ver com a casa modesta onde tinha crescido. “Esta era uma bela casa”, Amílcar Martinho recorda-se bem.

As reuniões serviam para discutir ideias e planear estratégias. “Nunca podia ir muita gente porque eram clandestinas, mas ia alguma. Até termos vindo a saber que um dos homens que frequentava as reuniões era ‘bufo’ e contava tudo ao sr. Adriano Roldão, o galifão lá do sítio”, conta Amílcar Martinho. Em 1969, Henrique Neto chegou a ser candidato pela Oposição Democrática e durante mais de um ano andou a caminhar pelo distrito de Leiria, principalmente rumo ao norte, que era a zona mais rural, para politizar os menos instruídos, fazer debates, distribuir cartazes. Fazia-se política como se podia, mas o PCP da Marinha Grande era, ainda assim, muito virgem. “Falava-se muito mas depois cada um ia para sua casa e não aplicava nada”, diz.

Bate com a porta do comunismo em 1975, ainda a poeira da Revolução de abril não tinha assentado. E fá-lo por uma conjugação de dois fatores. Primeiro, por desacordo: “houve uma noite em que reunimos até às 4h00 da manhã para discutir a questão dos SUV – Soldados Unidos Venceremos. Queriam armar os soldados (não os capitães), porque o PCP tinha perdido um certo poder no Conselho da Revolução, e eu achei que isso podia dar origem a uma guerra civil. Bati-me por aquilo a noite toda, quando vi que não conseguia, fui-me embora”. Depois, por uma questão de timing. É que Neto tinha acabado de formar a sua própria empresa na indústria dos moldes, a Iberomoldes, e tinha de fazer escolhas. “Provavelmente se não tivesse acontecido aquele episódio eu tinha continuado a fazer coexistir o mundo empresarial e a política”, mas aconteceu. Daí até 1993 manteve-se afastado da política.

Bem disposto, mal disposto, bem disposto, mal…

Funda a Iberomoldes em 1975, a empresa que começou com quatro pessoas e que chega ainda hoje às 1400. Sempre disse que não tinha ambição de ter uma empresa sua porque já estava num cargo de topo da Aníbal Abrantes, levava muito dinheiro para casa, estava casado e tinha dois filhos. De todo o modo, já tinha chegado mais longe do que alguma vez pensaria. Diz que nunca foi o dinheiro que o moveu, mas sim a vontade de fazer obra. Mas a verdade é que foi quando a nova administração da Aníbal ameaçou cortar-lhe o ordenado – “dois sujeitos de Cascais, do regime, pouco competentes, ficaram medrosos com a crise e quiseram reduzir os ordenados…” – que bateu com a porta. “Disse que não, não há cá cortes. E fui embora”, conta.

Reza a lenda que o anúncio da sua saída da Aníbal Abrantes foi feito numa reunião plenária, com todos os trabalhadores da empresa, e que Henrique Neto terá dito: “Só volto cá no dia em que for para comprar isto”. Neto ri-se e diz que isso é “romance”, “típico dos meios pequenos”.

Mas Salomé Rios, hoje com 60 anos, estava lá e jura a pés juntos que aconteceu. “Na altura ninguém fez caso disso, não parecia possível ou plausível sequer. Passado uns 12 anos o que é certo é que comprou a empresa”, em jeito de expansão do seu império no setor dos moldes.

No trabalho só se falava de trabalho. Uma vez fui ao Algarve com a família e chegámos a passear no veleiro dele. E ali era completamente diferente, sempre bem disposto, o trabalho não entrava. E eu pensava, a brincar, "Por que é que não é sempre assim?"
Salomé Rios

Salomé Rios secretariava a direção comercial da Aníbal Abrantes desde os seus 19 anos, logo, trabalhava diretamente com Henrique Neto. E quando em 1986 a Iberomoldes adquire a Aníbal, Salomé passa a secretariar a direção da casa-mãe. Durante mais de 20 anos foi assistente de Henrique Neto e conhece-o como poucos. Conhece-o, imagine-se, pelo caminhar.

“Bastava vê-lo entrar no escritório de manhã para perceber se estava de bom ou mau humor”, conta ao Observador. “Às vezes pensava ‘hoje não abro a boca, só respondo ao que ele perguntar’, porque já sabia que tinha dias em que não valia a pena insistir, era esperar que a tempestade passasse. Quando se conhece bem uma pessoa sabe-se estas coisas”. Enfurecia-se quando o trabalho corria mal, quando havia erros nos moldes e a peça, que custava milhares de euros, tinha de ir direitinha para o lixo. E então aí “ralhava, ralhava muito porque não gostava que os erros resultassem da falta de atenção ou descuido dos operários”. Salomé, apesar de não ter a ver com o assunto, estava mesmo ali ao lado e acabava por levar por tabela. É a lei da vida.

Os funcionários tinham medo do patrão? “Não, não, sabiam que ele tinha razão! Tinham era muito respeito. Era como um professor daqueles antigos, não batia, claro, mas impunha respeito”, diz. “Defendia muito o rigor e a inovação, por isso tínhamos de estar sempre à frente dos outros”.

Quando Henrique Neto se aproximava da fabricação, punham-se todos quase em sentido. “Vem aí o patrão, vem aí o patrão”. “E todos rezavam para que estivesse tudo bem, porque se não estivesse sabiam que ele ia notar. Não se conseguia esconder nada, porque conhecia o trabalho dos operários como a palma das suas mãos”. Os rostos e os nomes dos mais de mil funcionários é que não podia conhecer, por isso Salomé lembra-se de como todos ficavam “envaidecidos” quando Henrique Neto os cumprimentava à passagem pelos corredores. “Admiravam-no. Ainda hoje todos gostam dele, dava pica trabalhar para uma pessoa assim”, conta Salomé.

Pendurado no elétrico a caminho da Bertrand

Se tiver de escolher um ponto de partida para chegar à pessoa que acabamos de descrever, talvez os livros não sejam má ideia. “Os livros…foram a minha grande vantagem”. “E obsessão”. A constatação é do próprio Henrique Neto, com os olhos postos no passado.

Ainda que naquela altura de miudagem, a leitura fosse quase uma competição – “quantas páginas leste hoje? 300 e tu? 350, ganhei” – a sua obsessão era tal que não passou despercebida a Aquilino Ribeiro, o próprio. Andava ali muitas vezes pela Brasileira, Chiado, e quando parava na Bertrand, raro era o escritor não encontrar o miúdo sentado no chão a espreitar pelos livros a dentro. A espreitar sim, porque os livros estavam fechados e só quem os comprasse podia cortar e abrir a primeira página. Então espreitava-se, e Henrique Neto lia quanto podia. Aquilino Ribeiro, e outros que tais, lá lhe batia na cabeça: “Então rapaz o que é que andas a ler hoje? Epá isso é muito para ti, não é para a tua idade”.

Pôs a terceira e última filha na escola alemã. Porquê? "Porque há 20 anos achei que a cultura alemã, não só a língua, como também a disciplina e metodologia, iam ser muito importantes no futuro das pessoas"
Henrique Neto

Os Miseráveis, por exemplo, diz que os leu com oito ou nove anos. Um ofício que aprendeu quase sozinho, na Candidinha, uma espécie de pré-escola na Marinha onde uma professora ensinava uma dúzia de meninos a ler. Aos quatro começou, aos seis ou sete já lhe tinha tomado o gosto e já entrava nas competições. Entre os nove e os 12, “como só tinha aulas de manhã, vinha por aí fora, às vezes pendurado no elétrico, passar as tardes na Bertrand [onde a prima trabalhava]. Ali é que eu tinha livros com fartura”, conta. Se não tinha tempo de ir para o Chiado, ficava-se pelo jardim da Estrela ou pelo jardim de Santos, onde uma senhora abria uma estante de ferro e aço cheia de livros e jornais para as pessoas lerem.

Na juventude, a leitura e o cinema continuaram a ser os seus entreténs prediletos. Hoje, no escritório que comprou no coração do Chiado, com vista para o Castelo de São Jorge e para as luzes da cidade, as paredes falam por si, à imagem e semelhança de quem as decorou: de um lado os DVD, muitos e empilhados, do outro os livros, que já têm de se amontoar no chão à falta de prateleiras vazias; e ao meio os jornais. Nas estantes, as biografias de Álvaro Cunhal aparecem ladeadas da obra de Mário Soares, à direita, e da biografia de Steve Jobs, à esquerda. Ironias da vida. Isso, e os quadros de Fernando Pessoa, um deles bem grande a denunciar a admiração de sempre, fazem a decoração.

No se escritório, no Chiado. Com os livros em pano de fundo © Hugo Amaral/Observador

© Hugo Amaral/Observador

Foi, aliás, um livro que influenciou a sua forma de ver a vida. “O Choque do Futuro”, de Alvin Toffler. Leu-o talvez no início da década de 80, ou antes, e “ficou obcecado”. A tese era de que a sociedade humana tinha uma dificuldade de adaptação crescente às transformações – o que antigamente acontecia em 50 ou 100 anos (“as pessoas viviam num sítio e morriam nesse sítio, se eram pedreiros eram pedreiros para a vida, e por aí fora”), passava a acontecer em 10 anos, e dali a 20 anos, já passava a acontecer em cinco anos. A transformação é veloz e a necessidade de adaptação tinha de ser constante. “Uma pessoa já não podia ter uma empresa para se limitar a fazer uma coisa, porque essa coisa ia mudar nos próximos cinco ou dez anos, mas ia mudar para o quê? Essa ideia atormentava-se e comecei a ficar obcecado com o tema do futuro”, confessa.

De repente tudo o que importava era ter uma “visão de estratégia”. E até em casa tentava aplicar essa regra, apesar de não se considerar um pai austero e demasiado rígido. Pai de três, dois de um primeiro casamento aos 27 anos, e uma terceira filha, fruto da união com a companheira de há 30 anos, Henrique Neto optou por pôr o mais velho e a do meio na escola pública, mas com a benjamim (hoje com 28 anos) o pensamento foi outro. “Esta já vai para a escola alemã. Porquê? Porque há 20 anos achei que a cultura alemã, não só a língua, como também a disciplina e metodologia, iam ser muito importantes no futuro das pessoas”.

A obsessão ficou.

Um sopro de sorte

A história não se fez, contudo, sem um sopro de sorte. Quando era um jovem desenhador de moldes na Aníbal Abrantes não fazia como os outros que, na hora de almoço, pegavam na bicicleta e iam até casa. Levava uma sandes e uma merenda e comia ali mesmo. “Em dez minutos estava despachado e depois não tinha nada que fazer, então descia ao piso de baixo e andava pela fábrica a ver como estavam os moldes que andávamos a desenhar”. Todas as semanas aparecia o senhor Tony Jongenelen, o holandês responsável pelas exportações, que ia à fábrica ver em que pé estava o progresso para fazer o contacto com os clientes americanos e estrangeiros, em geral.

"Quem vai é o Henrique", terá ordenado o holandês. Tinha aprendido inglês no Sport Operário Marinhense e lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA.

“Chegava e ia direto ao engenheiro, diretor-geral da empresa. Mas às vezes o engenheiro não sabia bem das coisas e eu, como sabia, metia-me na conversa”, conta. Às tantas já não era ao engenheiro que se dirigia – “bem, em vez de falar com o engenheiro falo mas é com este gajo, é mais credível”.

Depois pronto, a sorte de uns é o azar de outros. Quando o holandês adoeceu, depois de um enfarte, foi o jovem Henrique, de 25 anos, e não o sobrinho do patrão, de 45, que o foi substituir no mundo das exportações. “Quem vai é o Henrique”, terá ordenado Tony Jongenelen. Tinha aprendido inglês no Sport Operário Marinhense e lá foi, de mala ao ombro, fazer negócios para os EUA. “Foi uma chance, um salto inegável na carreira, foi o que me permitiu ter percorrido o mundo inteiro ao longo de 40 ou 50 anos”, diz hoje, com os pés assentes no coração de Lisboa. Só aos EUA foi uma centena de vezes e, feitas as contas de cabeça, pode dizer que conhece todos os Estados e grandes cidades daquele país, à exceção de Seattle. “Nunca calhou, mas é pena”.

"As pessoas aqui na terra admiravam-no. Andar com a mala na mão, a correr países, a falar línguas que ninguém conhecia..."
Amílcar Martinho, amigo de infância

O desencanto e a amargura

Sempre em viagens entre a Marinha e o resto do mundo, não lhe sobrava muito tempo para a política. Desde a saída do PCP, em 75, escolheu sempre as empresas. Como a relação com Mário Soares foi sempre “up and down, up and down” até hoje (mais down do que up), só voltaria a alinhar por um partido em 1993, a pedido especial de Jorge Sampaio – velho amigo dos tempos do Dr. José Vareda. “Não estava com vontade de fazer fosse o que fosse, mas como era amigo dele e ele tinha acabado de se tornar secretário-geral e queria alargar o partido disse ‘tudo bem'”.

É com António Guterres que chega à primeira linha do Partido Socialista. Começou por ser seu porta-voz para a Indústria, ainda na oposição, e uma espécie de conselheiro. Escrevia-lhe documentos de uma página – “nunca mais de uma página” – sobre o que pensava e como pensava que devia agir, primeiro enquanto líder da oposição depois já enquanto primeiro-ministro. “Por acaso tenho ai umas cópias bem giras”. E ele dava-lhe ouvidos? “Não, nunca!”.

No dia da apresentação oficial da candidatura a Belém, rodeado da família e velhos amigos © Hugo Amaral/Observador

© Hugo Amaral/Observador

Gostou dos primeiros dois anos, talvez, quando Sousa Franco estava no Governo. “Porque ainda estavam relativamente vivos os Estados Gerais, havia idealismo, pensava-se que a educação ia resolver os problemas do mundo, já havia vícios, mas não tantos”. De resto, dos tempos da governação guterrista guarda sobretudo um pensamento: “foi a maior perda de oportunidade do país desde o 25 de abril”.

“Pode dizer-se que outros fizeram pior, claro, mas aquela era a altura em que o professor Cavaco tinha saído, os erros eram evidentes, o Guterres sabia qual era a acusação que se fazia aos governos de Cavaco. E quando chega ao poder não faz senão continuar a política do betão, para dar uma casa a cada português, como costumava dizer”.

“E depois foi muito influenciado por um pequeno grupo que o rodeava, o Pina Moura, o Jorge Coelho e todos os seus interesses…”. “Mudou muito”, diz.

Desencantou-se. Os papéis de uma página que costumava escrever a Guterres, no ano de 2000 passaram a uma carta de quatro páginas. “Disse-lhe tudo. Que estávamos a endividar-nos, que estávamos sem estratégia para a economia, os negócios eram mais do que muitos, o Pina Moura fazia o que queria no Governo”. Depois vem José Sócrates, o “vendedor de automóveis”, a pessoa mais criticada de sempre por Henrique Neto.

"Gostava de concorrer contra Guterres nas Presidenciais"
Henrique Neto

Hoje, à distância dos acontecimentos, diz que tem muitos amigos à direita, na cena política, mais agora que está reformado. E elogia aquilo que o fez gostar de Guterres, antes de se virar para o lado dos críticos. “Ele era um organizador do pensamento, tem uma capacidade intelectual que eu nunca vi em ninguém, tem uma memória, uma organização mental que é um caso raríssimo”. Mas os elogios, ainda assim, não chegam para Neto pensar em retirar a sua candidatura caso António Guterres avançasse para Belém. Antes pelo contrário.

“Se fosse a minha escolha, Guterres seria aquele com quem em gostaria de concorrer nas Presidenciais”. Mas não é, e Guterres não avançou.

Em 2009 Henrique Neto sai da Iberomoldes, porque a relação com o sócio entrou numa fase de rutura. Hoje diz que não gosta de sustentar conflitos, “daqueles que já se sabe à partida que não têm solução”, e agora sabe que foi por isso que saiu. Não dava mais. “Além de que estava cansado. Tinha trabalho 59 anos sem parar, sempre a viajar muito, talvez até tenha batido o recorde dos descontos para a Segurança Social”, diz em jeito de brincadeira para a seguir deixar uma nota mental: “quando for Presidente da República hei de mandar alguém lá ver isso da Segurança Social, se bati recordes”.

O motivo foi, por isso, de divergência, mas a saída foi discreta. “Na empresa nunca se notou que a saída era por atrito um com o outro. Foi tudo sereno, sem tragédia, sem ninguém perceber. O sr. Henrique mandou um comunicado para todos os funcionários a dizer que já trabalhava há quase 60 anos e que era altura de acalmar. Todos compreenderam e a empresa continuou o seu rumo”, recorda Salomé.

"Agora só o vejo de vez em quando. No Operário [Sport Operário Marinhense], que agora é um clube de elite, ou em São Pedro de Moel. Mas só o cumprimento na rua, com 'olá, passou bem'"
Amílcar Martinho, amigo de infância

Passados seis anos, o empresário garante que não ficou nenhum “vazio”. Até porque a vida é um comboio em constante movimento, com várias estações e apeadeiros. Tudo o que começa, acaba. A genética da irrequietude do pai. Saiu quando teve de ser e aproveitou para se dedicar às suas outras paixões: os livros e a escrita, o veleiro no Algarve, a família, os netos, a casa de Miraflores e de São Pedro de Moel, as tertúlias de pensadores, e, por fim, o reencontro de papel passado com a política.

Mas naquele último dia, quando fechou a porta do gabinete na Iberomoldes e se despediu da sua secretária de uma vida, apercebeu-se de que aquela era uma estação das grandes que ia perder de vista assim que soasse o apito do comboio. This is it. “Porque eu simbolizava o último adeus. Já tinha tratado de tudo, já tinha arrumado tudo, preparava-se para fechar a porta do gabinete pela última vez…”. E ali estava Salomé. Naquela altura, Henrique Neto já não foi capaz de falar nem de manter a serenidade e discrição que tinha pautado o seu processo de despedida. E chorou.

Ainda hoje, seis anos depois, o seu gabinete continua intacto, com todas as suas coisas, tal e qual as deixou. Salomé Rios continua a trabalhar exatamente no mesmo sítio, algures entre as duas portas que separavam os dois sócios, uma à esquerda, outra à direita. Com a diferença de que já não o vê entrar e caminhar pelo corredor para adivinhar se vem bem ou mal disposto. Ainda hoje aquela porta da direita (ou seria a da esquerda?) é o “gabinete do sr. Henrique”. “E duvido que algum dia deixe de ser”.

P.S. – Tire-se-lhe de vez o título de doutor, engenheiro ou arquiteto. Não tem nenhum curso superior e faz questão de o dizer. Foi Mário Soares quem lhe acrescentou certa vez o ‘arquiteto’, já que teimava em não ser nenhum dos outros dois. Mas não. Comendador até é, mas também não gosta. Lembra-lhe Eça. Henrique Neto, apenas. Esclarecido?

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