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Histórias de portugueses que descobriram a Europa, o amor e o sentido da vida a comer atum em comboios

Pedro passou uma noite com Woody Allen. João conviveu com um terrorista. Rita encontrou o homem da sua vida. Há mais de 40 anos que milhares de portugueses mudam as suas vidas depois de um interrail.

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A viagem de Rita começou por causa de Alfonso — tinha conhecido o rapaz espanhol aos 14 anos nas férias de família, em Torremolinos, sul de Espanha, e aos 18 ainda não lhe tinha saído da cabeça. “Foi a paixão da minha adolescência. Decidi que queria voltar a vê-lo e, para isso, tinha de ir a Espanha”, diz Rita Rodrigues, hoje com 49 anos. Com os pais de férias no Japão e os irmãos no Algarve, comprou um passe de interrail de 15 dias, pôs a mochila às costas — tacho atado a uma presilha, sapatilhas atadas à outra — e apanhou um comboio para a Andaluzia. “Mal sabia eu que só ia voltar 12 anos depois”, diz.

Foi o verão de 1986, o primeiro de Portugal e Espanha no seio da União Europeia. Rita nem sabia bem para que isso servia; preocupava-a, sim, não ter sinal de Alfonso em Torremolinos. Tinha-lhe dado jeito um telemóvel, mas estes só iriam aparecer uma década mais tarde. “Ainda estava no sul de Espanha quando o passe de interrail caducou”, conta a ex-bailarina, atual empresária de restaurantes vegetarianos. “Mas eu não queria regressar, porque estava a viver uma fase complicada. Na dança, era muito controlada pelo coreógrafo, tinha uma vida muito intensa, cheia de competição. Em casa, o clima também andava negativo. Então, decidi continuar. Ia dançar na rua, ganhar uns tostões e seguir viagem de comboio”.

Esta foi a viagem de Rita Rodrigues, nos anos 80

Esta foi a viagem de Rita Rodrigues, nos anos 80 @D.R.

E assim fez. Nos comboios, dormia em cima dos depósitos para as bagagens feitos em tiras de couro ou, quando saía, à porta das estações. “Era tudo muito intuitivo, porque bastava uma pequena caminhada para encontrar um sítio onde abrir o saco-cama”, diz Rita. Usava carvão e lenha para fazer fogueiras, onde cozinhava sopas de legumes – cenouras, batatas e cebolas -, inteiros, claro, porque não tinha varinha mágica para as triturar. E lavava-se onde calhava: nos lavabos das estações, nas fontes venezianas ou nas águas salgadas do Mediterrâneo. “Viajei dois anos e nunca estive sozinha. Por onde andava, havia outros jovens a fazer interrail e juntava-me a eles, conheci centenas de pessoas”, diz. Para ganhar dinheiro, montava com outros viajantes palcos improvisados onde inventavam espectáculos de rua. Rita tinha formação de bailado clássico, já atuara na Gulbenkian e no São Carlos. Quando dançava, as moedas tilintavam: “Tínhamos um cartaz que dizia ‘give me money for the wine, coca-cola is too expensive’ [dê-me dinheiro para o vinho, a coca-cola é demasiado cara]”, recorda.

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Deslizava pelos carris ao sabor da liberdade: de Espanha para França, daí para Itália, depois Grécia. Teve os primeiros encontros com um mundo desconhecido, que só tenuemente lhe chegava ao apartamento em que vivia, na Av. de Roma, em Lisboa. “Lembro-me de conhecer um sul-africano loirinho no sul de França, que me falou do apartheid. Fiquei emocionada. Ele tinha fugido do seu país para não ir à tropa, onde sabia que o iam obrigar a matar os seus irmãos negros”, relembra Rita. Meses depois, a passagem pela Jugoslávia comunista, com homens armados a travarem-lhe o ímpeto de saltar do comboio para se banhar nas praias paradisíacas. “Retenho a foto de Tito em todas as lojas em que entrei. Ele já tinha morrido, mas a sua imagem ainda estava em todo o lado.” Eram histórias que não podia contar aos pais. As comunicações eram lentas e caras. “Cheguei a enviar telex para dizer onde estava”, diz a viajante. “Era assim: Estou bem. Stop. Italia. Stop. Volto em breve. Stop. Beijinhos. Stop”.

As experiências mais marcantes estavam, porém, por acontecer. Depois de muitas andanças, Rita assentou arraiais por uns tempos em Tübingen, na Alemanha, onde frequentava assiduamente uma república de jovens italianos. “Havia um rapaz que estava gravemente doente… magro, fraco, quase a morrer. Ele queria passar os seus últimos dias em Itália mas, por uma razão que não me recordo, estava proibido de voltar ao país. Os italianos falsificaram um passaporte para ele poder viajar”, conta Rita. “Depois, como ia para a Suíça, acompanhei-o no comboio. Lembro-me de ter a cabeça dele nas minhas pernas e de lhe fazer festinhas. Eu saí em Zurique e ele continuou viagem. Não sei se chegou a entrar em Itália, mas tenho a certeza de que viveu pouco tempo depois de nos separarmos.” Na altura, a doença do italiano era um mistério. Só alguns anos depois é que Rita viu na manchete de um jornal a descoberta do vírus que agonizava o seu amigo: “A SIDA. Tinha lidado com a doença do século e não lhe conhecia o nome”.

“Fiquei embasbacada a olhar para ele e perguntei logo à minha amiga quem era aquele homem.” Era Jean-Pierre, um italiano nascido na Suíça. E Rita ficou à espera dele. Quando regressou do Brasil, o homem voltou ao Latitude e foi apresentado à portuguesa. Casaram, viveram dez anos juntos em Genebra e tiveram dois filhos.

Genebra, 1988. Tinham passado dois anos e Rita decidira regressar a casa. Enquanto esperava pelo comboio para Lisboa, deu um passeio pelo Jardin de les Anglais e pediu a um transeunte para lhe tirar uma fotografia junto a uma fonte. Clic! “Portugais?”. “Sim, português”. “Eu também!”. O luso-suíço levou-a para um restaurante, o Latitude, onde se agruparam a outros jovens europeus. Surgiu a ideia de ir para a discoteca e Rita aceitou: enquanto dançava, o comboio partiu sem ela. Na manhã seguinte, voltou ao restaurante para pedir trabalho. “Perguntaram-me se falava francês, e eu “oui, non, je t’aime”, e ri-me. Mesmo assim, aceitaram-me”, conta. Ficou como empregada de mesa e babysitter dos filhos dos donos. Mais tarde, entrou como bailarina para o Gran Théâtre de Geneve.

Um dia, apareceu no restaurante um homem vistoso, cheio de bagagens, prestes a embarcar numa viagem de três meses para o Brasil. “Fiquei embasbacada a olhar para ele e perguntei logo à minha amiga quem era aquele homem.” Era Jean-Pierre, um italiano nascido na Suíça. E Rita ficou à espera dele. Quando regressou do Brasil, o homem voltou ao Latitude e foi apresentado à portuguesa. Casaram, viveram dez anos juntos em Genebra e tiveram dois filhos. O comboio que Rita perdera em 1988 só voltou àquela estação uma década mais tarde. “Se não tivesse tirado aquela fotografia, não tinha ido ao restaurante, não tinha perdido o comboio não tinha conhecido o meu marido”, conclui Rita. “Normalmente não damos muita importância a pequenos instantes e encontros que nos mudam a vida. Mas eles são fundamentais. E o interrail é pródigo nesses momentos”.

Uma viagem intemporal

Volvidos 30 anos da viagem da bailarina, os interrails mudaram as suas características, mas não passaram de moda. Ainda no ano passado, outra Rita, a designer Rita Seabra, de 23 anos, preteriu os voos low-cost para encetar com o namorado, João, um interrail de um mês. “Viajar de comboio permite ver paisagens, conhecer pessoas e atravessar fronteiras terrestres, que permitem constatar diferenças entre países. Além disso, é desafiante, porque nos obriga a planear percursos, escolher destinos, pôr a mala às costas e ir à aventura”, diz a motion designer. O passe custou 389 euros e deu direito a entrar em todos os comboios (é válido para 30 países durante um mês), com excepção dos nocturnos e dos TGV, sujeitos a reserva e taxa adicional. “Há pouca informação na net e muita flutuação de preços entre taxas, nuns comboios pedem-se três euros, noutros dez. Fomos apanhados de surpresa em algumas situações”.

Rita não precisou de enviar telegramas. Através do telemóvel, esteve em contacto permanente com a família e com os amigos. As fotos partilhadas no Facebook substituíram os postais. “Tínhamos um conceito fotográfico que aplicámos em vários destinos: tirávamos sempre selfies com metade da cara de cada um”, diz a viajante. Com a internet, puderam reservar alojamentos baratos, abdicando das noites ao relento ou à porta de estações. “O meu namorado tinha também uma aplicação que tinha todas as rotas e os horários dos comboios europeus. Ele tratava disso e eu ficava com os alojamentos e com o que íamos ver nas cidades”, diz Rita. Gastaram 1500 euros cada um.

Muitos dos primeiros utilizadores dos interrails revelam um certo saudosismo pela época em que não havia orçamento nem ferramentas de planeamento e tudo se conseguia pelo acaso e pela interacção entre viajantes. Os mais novos, como Rita, dizem que obtêm a mesma experiência, mas com mais conforto. Há, contudo, pormenores imutáveis, que são intrínsecos ao próprio conceito de deslocação. Um deles é o encontro com a História. Rita e João estavam nos Balcãs em agosto de 2015, quando centenas de milhar de refugiados do Médio Oriente chegaram à Europa caminhando por esta região. “Vimos muitos militares armados nas estações de comboio e metro, nos principais monumentos e nas ruas principais. Isso levou-nos a estar conscientes do perigo em toda a viagem”, diz Rita. “Na Bósnia, o comboio era duvidoso e começámos a pensar no que faríamos se houvesse um ataque, porque o corredor era estreito e só havia janelas de um lado. Então, engendrámos um plano de fuga, em que partiríamos o vidro e saltaríamos pela janela, mas ainda discutimos uns minutos quem saltaria primeiro, porque nenhum de nós queria deixar o outro para trás.” O medo faz parte da genética europeia contemporânea.

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Porém, a viagem foi muito mais prazerosa do que assustadora. Chegados a Hvar, uma ilha do Adriático ao largo de Split, na Croácia, no dia em que comemoravam o quinto aniversário de namoro, João deixou Rita no quarto (desrespeitando a regra que ambos tinham definido de não deixarem o outro sozinho) para lhe fazer uma surpresa. Voltou, levou-a a um barco que tinha alugado e conduziu-a até às preciosas ilhas circundantes, tão desertas quanto românticas. Aí, montou a câmara no tripé e começou a gravar: “Há cinco anos, tomei uma das melhores decisões da minha vida ao ir à festa em que nos conhecemos. Hoje tenho a certeza de que estou a tomar outra das melhores decisões: Rita, queres casar comigo?”, perguntou, enquanto tirava o anel de noivado do bolso dos calções de banho. Ela aceitou. “E fiquei a saber que na meia-hora que me deixou sozinha foi comprar um anel em Hvar, que é uma ilha em que não abundam as opções. Mesmo assim, acertou em cheio”, conta.

Desde 1972, ano em que a International Railway Union lançou o interrail para comemorar o seu 50º aniversário, que a vida de muitos milhares de europeus tem como marco uma aventura pelos carris do “velho continente”. Só no primeiro ano, foram mais de 5000. Esse número não parou de subir até ao fim dos anos 90, período em que as ofertas aéreas obrigaram os interrails a mudar de configuração. Mas o passe sobreviveu, estendeu-se à terceira idade e a utilizadores de primeira classe, e tornou-se num património vivo da identidade europeia.

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Numa altura em que o surgimento de movimentos nacionalistas e separatistas assombra a União Europeia (UE), o Partido Popular Europeu (PPE), a bancada dos partidos de centro-direita no Parlamento Europeu, anunciou no início de outubro uma proposta para dar passes de interrail a todos os jovens europeus que completem 18 anos. “A mobilidade dos jovens é essencial para promover o sentido de pertença à Europa”, lê-se na proposta. “A ideia partiu do líder do PPE, o alemão Manfred Weber, que fez interrail e é um grande entusiasta do conceito”, explica o eurodeputado José Manuel Fernandes, eleito pelo PSD, um dos subscritores da proposta. “O grande objetivo é permitir-se o contacto com a realidade europeia, que cada jovem se sinta um europeu, mas que valorize a diferença entre os povos. A diversidade é uma força da UE. Que, com os interrails, se reforcem os valores de multiculturalismo e de tolerância. Há muitos preconceitos que desaparecem com uma viagem. Vale mais que mil palavras, vários discursos ou intervenções. É o contacto direto com a realidade”.

O entusiasmo perante esta possibilidade teve eco em vários pontos da Europa, principalmente nos países mais periféricos, onde o interrail chegou a ser o único meio viável de viajar pelo continente de forma económica. “Nos anos 80, os interrails eram a única maneira de um jovem finlandês ver o mundo e poder pagar por isso. A Finlândia era um país remoto e os voos eram caríssimos. Andar com as malas às costas nos comboios define absolutamente aquela geração, juntamente com os penteados horríveis e as ombreiras nas camisolas”, diz Janne Lindberg, jornalista especializado em assuntos europeus a trabalhar na YLE, a estação pública finlandesa.

Numa altura em que o surgimento de movimentos nacionalistas e separatistas assombra a União Europeia (UE), o Partido Popular Europeu (PPE), a bancada dos partidos de centro-direita no Parlamento Europeu, anunciou no início de outubro uma proposta para dar passes de interrail a todos os jovens europeus que completem 18 anos.

O orçamento para a proposta que o PPE quer implementar já em 2017 é de 1500 milhões de euros, e está sujeito a vários acordos e parcerias com empresas ferroviárias. No entanto, apesar de a proposta ter sido bem recebida pela Comissão Europeia, falta o acordo dos Estados-membro, que votarão a medida em plenário. Antes disso, o PPE tem ainda de encontrar uma base legal para o financiamento – não há nenhum programa europeu em que a proposta possa atualmente encaixar-se. “Solicitámos à UE que, na revisão do quadro financeiro plurianual 2014-2020, seja introduzida essa possibilidade, permitindo-nos levar a proposta à apreciação dos Estados-membro”, explica José Manuel Fernandes.

Rita Seabra pensa uns segundos antes de emitir a sua opinião sobre o projeto europeu: “Eu concordo, mas acho que não devia ser aos 18 anos”, diz. “Com essa idade, a maior parte dos miúdos só quer festa, apanhar bebedeiras e acaba por não aproveitar a oportunidade em absoluto. Acho que aos 22 ou 23 anos já há mais capacidades para absorver uma viagem assim”.

Uma Europa de ferro: os caminhos e a cortina

José Vidigal não teve direito a passes grátis. Em 1982, teve de economizar os tostões que ganhava em part-time na empresa de engenharia civil do pai para se lançar na odisseia do interrail. “Gastei uns 13 ou 14 contos [65 ou 70 euros] no bilhete, acho eu”, diz o atual técnico comercial numa empresa de engenharia. “Portugal era um atraso de vida. Havia meia dúzia de discotecas, umas quantas matinés, o Rock Rendez-Vous e pouco mais. Quando cheguei a Paris, deram-me um livrinho, o Periscope, que era a agenda cultural da cidade. Todos os dias havia uns 50 eventos, havia sempre qualquer coisa para fazer. Em Portugal, a cultura era zero. Acho que, na altura, só tinha visto um concerto num estádio, dos The Police, em 1980”.

Os amigos chamavam-lhe maluco: afinal, porque iria ele gastar dinheiro a meter-se em comboios sem destino, se podia descansar de papo para o ar nas praias do Algarve ou da costa alentejana? “De facto, no estrangeiro tudo custava o dobro – os cigarros, os cafés, a comida. Mas eu tinha ouvido alguns turistas falar dos interrails e fiquei muito interessado em conhecer o que havia para lá da fronteira. Sempre fui um bocado nómada”, diz José. Havia bastantes dificuldades: não era fácil trocar moedas e o dinheiro era averbado ao passaporte. “Havia um limite, que era muito baixo para viajar. Dava muito pouco dinheiro por dia. Nem dava para fazer se não se conseguisse uns trabalhitos para ganhar uns ‘tustos’ ao longo da viagem”. Foi o que José fez: em Genebra chegou a trabalhar na cozinha de um hotel. Quando precisava mesmo de dormir bem e de um banho decente, entrava de noite em cafés decrépitos, onde sabia que pessoas pervertidas o iam convidar para casa com a expectativa de ter sexo com ele: “Felizmente, consegui sempre tomar o meu banhinho e encher a barriga sem passar por situações desagradáveis”.

Apesar de as carruagens serem alemãs ou austríacas, José sentia a grande diferença de um lado para o outro da cortina de ferro: “No lado ocidental, estava tudo limpinho. Até tinham sabonete nas casas de banho para nos lavarmos 'à gato'. Na Jugoslávia, não havia equipas de limpeza e as mesmas carruagens estavam sujas e caóticas”.

As vias não estavam escancaradas como hoje. Logo em Hendaye, a porta basca de entrada em França, começava o tormento: “Demorava uma eternidade, porque havia um grande fluxo de emigração para França, especialmente de marroquinos, que usavam a mesma ligação que nós. Depois, os carris eram diferentes, porque o Franco e o Salazar tinham usado a bitola soviética, que era mais larga que a francesa, e a transferência de linha era morosa”, recorda.

Nada comparável, porém, com o que encontrou na ex-Jugoslávia, em que lhe pediam uma pretensa “taxa de velocidade” sempre que passava de uma região para a outra. “Aquilo estava escrito em cirílico e nós não percebíamos nada. O comboio ficava parado até que as pessoas pagassem, e havia muitas que se negavam”. Apesar de as carruagens serem alemãs ou austríacas, José sentia a grande diferença de um lado para o outro da cortina de ferro: “No lado ocidental, estava tudo limpinho. Até tinham sabonete nas casas de banho para nos lavarmos ‘à gato’. Na Jugoslávia, não havia equipas de limpeza e as mesmas carruagens estavam sujas e caóticas”. Nos supermercados, não tinha vontade de comprar nada: tudo parecia igual, muitos alimentos com validade expirada no tempo de Estaline. “Mas comia-se o que havia, claro”, diz.

Trieste, no nordeste de Itália, era a estação de partida para a Jugoslávia. José recorda-se de ver passageiros a entrar pelas janelas assim que o comboio chegava à plataforma, de modo a reservar lugar. Rolava um grande corrupio de contrabandistas de jeans e de café. “As pessoas faziam um rolo de jeans, com umas dez calças, e escondiam-nos. Havia quem levasse umas três ou quatro calças vestidas”, lembra José, rindo-se. “Entravam gordos e saíam magros.” Como os turistas eram menos controlados que os eslavos, José, dotado da inata astúcia lusitana, abria a sua mala para os traficantes jugoslavos passarem a mercadoria. Transposta a cortina de ferro, o pagamento era feito em cervejas: “Eram umas ‘bejecas’ mais escuras, não tanto do nosso paladar, mas eram ‘bejecas’ grátis e isso é que contava”.

1989, cai o muro, passa o comboio

Um homem com uns 40 anos, magro e sem bagagem, interpelou João Barbosa, então com 19 anos, e os dois amigos com quem viajava no comboio para Dublin. “Quando percebeu que éramos portugueses, começámos a falar de que ambos os países eram católicos e gerou-se empatia”, diz João, jornalista freelancer. Chamava-se Patrick e mostrou-se tão simpático que não os abandonou enquanto não lhes encontrou um lugar para dormir. “Foi num hostel em que a rececionista ficou toda derretida quando dissemos que éramos portugueses, porque tinha estado apaixonada por um ladrão algarvio. Arranjou-nos um sobrado e passámos à frente das pessoas que estavam à espera”, lembra Barbosa.

Patrick mostrou-lhes Dublin, falou-lhes da repressão inglesa, do Bloody Sunday e da história irlandesa. Nutria simpatia pelos bascos da ETA. “Começámos a desconfiar que apoiava o IRA [Irish Republican Army, um grupo paramilitar que defende a saída da Irlanda do Norte do Reino Unido e a sua integração numa Irlanda unida], não só por causa do seu discurso, mas porque todos os dias fazia a rota Dublin-Cork-Belfast sem levar qualquer bagagem. Mas não tínhamos à-vontade para lhe perguntar isso”, explica João. Depois de darem uma volta à Irlanda, os portugueses voltaram a encontrar Patrick em Dublin, na véspera de viajarem para Belfast, na Irlanda do Norte. “Não, não vão amanhã para Belfast”, disse-lhes o irlandês. “Vão no comboio das 11h00? Não, não podem mesmo ir para Belfast”. Sem explicações de Patrick, João e os seus pares mantiveram o plano: só não apanharam o comboio na manhã seguinte porque adormeceram.

João Barbosa a registar a viagem que fez pela Europa

João Barbosa a registar a viagem que fez pela Europa

“Soubemos então que havia uma bomba na linha para Belfast, que foi desativada. Isso confirmava que o Patrick era do IRA”, diz o jornalista, que nunca mais viu o irlandês. Já em Portugal, trocou alguns postais com ele, sempre assinados por Patrick Feely. Mais tarde, uma notícia de A Capital chamou-lhe a atenção: “Dizia que Patrick Seely, o principal ‘correio’ do IRA, morrera durante uma manifestação em Belfast”, lembra João. A troca de letras no apelido causava algumas dúvidas quanto à identidade da vítima, dissipadas quando o irmão de Patrick respondeu ao último postal: “Confirmava que o seu irmão Patrick tinha morrido e tudo batia certo – as datas, o hospital e as circunstâncias da morte. Tínhamos mesmo conhecido o mensageiro do IRA”, conta Barbosa.

O interrail de João Barbosa, que custou 24 contos e contemplou uma dormida num vão de uma casa de banho pública parisiense e uma estadia desastrosa em Londres, nos aposentos de uma estrela pop arruinada que lhe colocou um lavatório à disposição para tomar banho, teve lugar num continente prestes a ver-se livre da barreira que o dividia há séculos: o muro de Berlim. “Mesmo antes da queda, a Hungria abriu a ligação para a Áustria e houve alguns alemães que conseguiram escapar do Leste por essa via. Eu vi um, num comboio alemão, que estava eufórico, aos gritos, com uma felicidade que nunca mais voltei a encontrar na minha vida”.

O interrail de João Barbosa, que custou 24 contos e contemplou uma dormida num vão de uma casa de banho pública parisiense e uma estadia desastrosa em Londres, nos aposentos de uma estrela pop arruinada que lhe colocou um lavatório à disposição para tomar banho, teve lugar num continente prestes a ver-se livre da barreira que o dividia há séculos: o muro de Berlim.

Teresa Silva visitou Berlim no verão desse ano e não ficou com uma boa impressão: “Não tinha nada a ver com a cidade que é hoje. Senti-me desconsolada, porque encontrei uma cidade inóspita, cercada, cheia de guardas com cães. Não havia pombos, só corvos”, diz a pintora, de 50 anos. À entrada da atual capital alemã, apanhou um susto. O comboio passou por um posto de controlo da RDA, entraram revisores com boinas soviéticas e caixas de madeira para os bilhetes, enquanto outros, com metralhadoras, lhes protegiam a retaguarda. Pediram-lhe o passaporte, ela não tinha. “Ordenaram-me que os acompanhasse e fiquei cheia de medo”, confessa. “Felizmente, havia uma passageira portuguesa que falava alemão, que lhes perguntou se não havia outra solução. E havia: tinha de fazer um passaporte provisório para um dia, que custava 30 marcos. Foi um rombo no orçamento mas consegui passar.”

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Umas semanas antes, Teresa tinha decidido juntar-se a Joaquim, um amigo recente, e a Álvaro, amigo deste, num périplo pela Europa. “Os meus pais reagiram mal e disseram-me que não me davam um tostão, mas eu dava explicações de inglês, tinha dinheiro de parte e usei-o na viagem”, conta Teresa. “Levámos 80 contos [400 euros] cada um para as despesas.”

Tinha o sonho de visitar os maiores museus da Europa e observar as obras que conhecia dos livros de arte. “Fiquei fascinada com o Louvre e com uma exposição do Salvador Dali que apanhámos em Veneza”, diz. “Eu queria ir a todos os monumentos que visse, mas o Álvaro, que estava habituado a comer sopas de feijão ao pequeno-almoço, preferia gastar em comida. Viajar também é saber gerir essas questões”, afirma a pintora, que classifica o interrail como a melhor viagem da sua vida, apesar de ter dormido no comboio rodeada pelo cheiro nauseabundo das meias de Álvaro e do chapéu de couro de Quim e da overdose de saladas no Macdonald’s, só para ficar com os garfos de plástico para picar o atum. “Tal o uso que lhes demos, que quando chegámos os garfos só tinham um dente”, diz.

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Teresa e Quim partiram de Santa Apolónia como amigos mas chegaram como casal. “Viajar é um excelente modo de começar uma relação, porque ali não tens conforto, dormes mal, comes mal e o teu lado negro surge. Se, ao conhecer o pior lado de uma pessoa, continuas a gostar dela, então é porque a relação pode ter força”, diz Teresa. Casaram no verão seguinte, em 1990, já com o muro de Berlim desfeito e pombos a sobrevoar as Portas de Brandemburgo. Vários países do Leste europeu passaram a fazer parte dos mapas de interrail.

Woody Allen, Arafat e uma bola de espelhos num navio militar

A imprevisibilidade é uma das principais características de uma viagem de mochila às costas. Quando amanhece, o viajante não sabe quem vai conhecer, o que vai ver, onde e com quem vai dormir nem para onde vai no dia seguinte. E é isso que o atrai.

Juliano Franco e Filipe César Marques, colegas de estudos em Direito, colecionaram surpresas dessas nos interrails que fizeram em 1997 e 1999. Na segunda viagem, numa passagem por Copenhaga, faziam tempo para apanhar o comboio quando um homem baixinho se meteu com eles e com os dois amigos que os acompanhavam num passeio pela marginal. “São portugueses? Têm fome ou sede? Sim? Então, venham comigo”, disse-lhes. “Acabámos num navio militar português, que estava ali estacionado com as forças da NATO à espera de ordens para intervir na guerra dos Balcãs, se fosse necessário”, conta o jurista Juliano Franco.

Os dois amigos à janela do comboio

Os dois amigos à janela do comboio

“Claro que, com 23 anos, ficámos impressionados. Entrámos na sala dos torpedos, simulávamos que estávamos a tocar nos botões, a fingir que telefonávamos para dar início à III Guerra Mundial. Depois, comemos como uns reis na cantina dos oficiais, bebemos bom whisky e ouvimos as histórias fascinantes dos militares. A dada altura, a cantina transformou-se numa discoteca e até saiu uma bola de espelhos do teto. Começaram a chegar elementos de outras tripulações, que já sabiam que as festas eram no barco português, e passámos uma noite muito divertida. Fomos dormir para a estação e acordei com um ladrão a tentar assaltar o César.”

Poucas semanas depois, novamente em mar alto, a dupla deparou-se com outra festa inesperada; apanhavam um barco noturno da Suécia para a Finlândia quando, de repente, o volume da música subiu e dezenas de passageiros começaram a chegar com bebidas em sacos de plástico. “Meteram-se nas camaratas e, uma hora depois, estavam todos bêbedos”, recorda César. “Aquilo transformou-se num bar, casino e discotecas com toneladas de bebidas alcoólicas.” Como na Finlândia o imposto sobre o álcool é muito alto, muitos finlandeses vão à Suécia comprar garrafas e bebem-nas durante a noite no barco. “A viagem podia demorar umas três horas, mas levou a noite toda”, explica Juliano. “Havia quem chegasse à Finlândia e não desembarcasse, pagando outro bilhete para ficar a dormir no regresso para a Suécia.”

Os dois colegas visitaram os locais mais díspares, desde os escritórios do Pai Natal, em Rovaniemi, Finlândia, até ao campo de concentração de Auschwitz, na Polónia. Contactaram com outros europeus, praticaram línguas estrangeiras. “Viajar ajuda a construir a identidade. Se fosse hoje, podia ter viajado de outra forma, mas tinha perdido as conversas que se têm nos comboios, as pessoas que surgem no caminho. Acho que o interral e o Erasmus fizeram mais pela União Europeia que meio século de leis comunitárias”, diz César, que se tornou juiz.

No portão de Auschwitz, na Polónia

No portão de Auschwitz, na Polónia

Num interrail até é possível conhecer celebridades. Pedro Ferreira, empresário na área da impressão digital, de 43 anos, conheceu duas num só ano: Yasser Arafat e Woody Allen. No outono de 1998, depois de ter poupado dinheiro a trabalhar na Expo’98, o rapaz da Amadora lançou-se à aventura com duas amigas que conhecera na exposição mundial. “Era para ter sido uma viagem de um mês…mas prolongou-se até agosto do ano seguinte”, explica. “Isto porque o bilhete estava em português e a data escrita num químico que se foi sumindo, possibilitando-nos usar o passe mesmo fora da validade. Ninguém notava.”

O alojamento em Paris e Amesterdão, que se tornaram nos quartéis-generais da viagem, também era gratuito. Na Holanda, ficavam instalados num apartamento partilhado por uns amigos. “Em Paris, ficávamos no apartamento do representante da Nigéria nas Nações Unidas, no bairro de La Republique. Tínhamos conhecido o filho dele na Expo e ele passou ao porteiro os nossos números de B.I., para que nos deixasse entrar sempre que quiséssemos. A casa estava sempre vazia e dali até podíamos ligar para os pais.”

Na capital francesa, Pedro ia a caminho de um concerto na FNAC – “ia bem vestido, de gola alta e botinhas amarelas” – quando foi intercetado diante de um hotel por três homens altos e engravatados. Do carro, saíram dois homens disparados para a porta do edifício. Assustado, Pedro só olhava para os seguranças e repetia que era português. De súbito, sentiu uma mão no ombro e olhou para a frente. “Era o Yasser Arafat”, diz. “Começou a falar francês fluente e eu não percebia tudo. Perguntou-me pelo nosso presidente, Jorge Sampaio, e qual a minha opinião sobre a Palestina. Disse-me que tinha muito apreço pela posição do meu país em relação à Palestina.” Pedro já nem foi ao concerto. Correu para um quiosque e abriu os jornais para perceber se Arafat estava mesmo em França ou se tudo não passara de uma alucinação. “E confirmava-se: estava em Paris para participar em encontros sobre a paz na Palestina.”

Duas páginas do diário de viagem

Duas páginas do diário de viagem

Pedro pensou que estava a alucinar novamente, desta feita em Amesterdão. E tinha razões para isso: numa noite de sexta-feira estava numa coffee-shop quando viu Woody Allen e uma mulher muito mais nova, acompanhados por um segurança, entrar no estabelecimento. “Metemos conversa com ele e ficámos surpreendidos por ele conhecer o presidente Sampaio, por causa da Expo’98, e também a ria de Aveiro, onde dizia já ter estado e ficado maravilhado”, conta Pedro. A conversa passou depois para o cinema. “Ele tinha acabado de fazer o Celebrity e pôs-se a falar da arrogância dos famosos, que tinha tentado retratar isso no filme e que até se tinha inspirado na ex-mulher para o papel principal”.

O casal e o segurança acompanharam Pedro e dois amigos para a discoteca Dam, “cuja decoração mudava de 15 em 15 dias com material reciclável”, diz Pedro. Inicialmente, a presença do realizador não despertou muita agitação — “na altura ninguém andava com câmara para tirar fotos”, explica Pedro — mas depois do primeiro autógrafo o cineasta norte-americano foi levado para o piso superior, mais reservado. “Pagou-nos cervejas dos mais variados tipos ao longo da noite, foi sempre simples e simpático, apesar de a partir de uma certa hora só me dizer “obrigado” e “senhor presidente”, assim mesmo, em português”. A farra acabou no hotel do cineasta já com a presença da agente a desmobilizar as hostes, depois de um repórter ter interrompido o pequeno-almoço que o grupo estava a tomar numa pastelaria para tentar fotografar o mestre.

Pedro é obcecado por queijos. Desta viagem, trouxe 28kg deles, de várias origens e qualidades. Uma carga leve quando comparada ao peso das vivências naqueles meses: “É uma viagem que nos muda, uma epopeia. Proporciona memórias que nunca são esquecidas”.

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