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Interrogatório a Santos Silva: "Sócrates está na lista dos meus dez melhores amigos"

Quando foi interrogado, Carlos Santos Silva disse que ajudou Sócrates a ter "estatuto" por amizade e generosidade. Conta ainda como juntou uma fortuna e que "destruiu" os papéis da dívida do amigo.

Eu sou muito crente. Então reza aqui comigo, disse o recluso a Carlos Santos Silva.

Não, olha, eu vou-te prometer uma coisa, enquanto tu estiveres aqui [na prisão] eu vou fazer chegar, se eu puder, 5 mil reais à tua família no Brasil (sic), respondeu-lhe o empresário.

Era a primeira noite na cadeia e tinham passado poucas horas da sua detenção no aeroporto de Lisboa quando Carlos Santos Silva, o empresário amigo de Sócrates, conheceu aquele recluso. De nacionalidade brasileira, o homem mostrou-se muito preocupado. Contou-lhe que ia ficar preso por tráfico de droga pelo menos durante três anos e deixara a mulher no Brasil, grávida de três meses. Como iria sustentar o filho durante a pena de prisão? Santos Silva ter-se-á sentido tocado com o caso e prometido que todos os meses iria fazer chegar ao Brasil 5 mil reais, cerca de dois mil euros, até ele sair em liberdade.

O episódio foi relatado pelo próprio empresário ao juiz Carlos Alexandre e ao procurador Rosário Teixeira no interrogatório que começou a 21 de novembro de 2014, quando foi detido, e só terminou no dia seguinte.

[Veja aqui o episódio da mini-série do Observador “Sim, Sr. Procurador”, sobre o interrogatório a Carlos Santos Silva]

Santos Silva, agora acusado de crimes de corrupção, branqueamento e fraude fiscal, queria dar a conhecer aos magistrados o seu “desprendimento” em relação ao dinheiro e a sua “generosidade”, fundamentando assim porque emprestou milhões de euros a Sócrates. “Ele está na lista dos meus dez melhores amigos”, justificou.

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Rosário Teixeira: Cuidado, olhe… com isso, ó senhor.

Carlos Alexandre: Cuidado, cuidado porque a gente já viu muitas canções dessas!

Carlos Santos Silva: Mas que razões é que eu tinha de duvidar do senhor?

Carlos Alexandre: Nenhumas, nenhumas.

Rosário Teixeira: Sabe porque é que ele foi preso, por exemplo?

Carlos Santos Silva: Ele disse que tinha sido por tráfico de droga.

Rosário Teixeira: Então terá, se calhar, que aguardar cá mais que três anos. É um correio de droga?
(…)

Carlos Alexandre: … a pena. Só se ele tiver grandes razões para a pena ser atenuada, mas…

Carlos Santos Silva: Pois. Eu estava só a contar… eu peço desculpa.

Carlos Alexande: Não estava a contar, mas a coisa tem lógica, pronto, tem lógica. Pronto, o senhor pensou em ajudá-lo e colaborar.

Carlos Santos Silva: Não, porque faz parte também do meu feitio ser assim.

Carlos Alexandre: Portanto, se o senhor fez isto com uma pessoa que não conhecia de lado nenhum…

Amizade, generosidade e desprendimento. Foram estas as principais razões invocadas por Santos Silva para justificar porque emprestou milhares de euros em dinheiro a José Sócrates, dinheiro que à data do interrogatório ainda não tinha sido devolvido. O empresário explicou aos magistrados que, assim que Sócrates saiu do Governo, em 2009, contribuiu para que ele pudesse manter o seu “estatuto”. Por isso, não deixou que lhe faltasse nada.

"Da XMI eu recebo 25 mil euros, senhor dr.", revelou Carlos Santos Silva no interrogatório

Álvaro Isidoro / Global Imagens

Depois da primeira noite detido nos calabouços da Polícia Judiciária, Santos Silva contou abertamente como conheceu o ex-governante. Foi no ano de 1983, tinha 23 ou 24 anos (hoje tem 58) e trabalhava para a Junta Autónoma de Estradas quando começou a relacionar-se mais diretamente com a Câmara Municipal da Covilhã, onde então trabalhava José Sócrates. Em resposta às perguntas de Carlos Alexandre, Santos Silva começou a desfiar o novelo de empresas em que participa ou participou. Começou pela Proengel, a Enaque, a EFS, a Itinerisanis, a Proengel Internacional, a XMI.

Mais à frente, no interrogatório, acabaria por falar da participação nas empresas Dinope e Taggiam. Santos Silva, que é engenheiro civil de formação e empresário de profissão, disse ainda auferir por mês cerca de 7500 euros da Itinerisanis, 25 mil da XMI e entre 4 e 5 mil euros das outras empresas, consoante o volume de negócios. Uma informação que prestou já no segundo dia de interrogatório, para corrigir as primeiras declarações.

Carlos Santos Silva: O Senhor Dr. também me perguntou se eu recebia de outras empresas, portanto, e eu disse que sim.

Carlos Alexandre: Certo.

Carlos Santos Silva: Mas esqueci-me de referir, portanto, uma que é a XMI. E eu esqueci-me de referir isso ontem.

Carlos Alexandre: E quanto é que o senhor recebe lá então da XMI?

Carlos Santos Silva: Da XMI eu recebo 25 mil euros, senhor dr.

Carlos Alexandre: Mensais?

Carlos Santos Silva: Sim. Brutos. Todos os encargos são por minha conta… carro… isso tudo é por minha conta, não é. E eu esqueci-me ontem, portanto, e depois à noite, quando estava a… a comer qualquer coisa, lembrei-me que me tinha, portanto, esquecido desse pormenor.

Como é que Santos Silva juntou uma fortuna

Mas a fortuna de Santos Silva, segundo as suas declarações, não se fez com estes salários. Agora acusado de um crime de corrupção passiva e outro de corrupção ativa de titular de cargo político, 17 crimes de branqueamento de capitais, dez de falsificação de documento e quatro de fraude fiscal, o empresário foi, logo após ser detido, confrontado com os 23 milhões de euros que tinha depositados em contas na Suíça e que foram trazidos para Portugal ao abrigo do Regime Excecional de Regularização Tributária (RERT) — que permitiu a regularização tributária de rendimentos que se encontrassem fora do País.

Carlos Alexandre: Esse acervo foi transitado entre diversas contas bancárias em nome de sociedades offshores, que o senhor diz que não havia acordo nenhum, figurava apenas como beneficiário o senhor, designadamente em contas em nome da Sunland Finance, com conta em Cayman, o dinheiro ia circulando, Brickhurst International, Pinehill Finance todas com contas junto do UBS em Zurique?

Carlos Santos Silva: Corresponde à verdade.

Carlos Alexandre: Só não é verdade é que é dinheiro do senhor Pinto de Sousa?

Carlos Santos Silva: Não.

Carlos Alexandre: O circuito é verdadeiro, a pertença do dinheiro é que não.

Santos Silva admitiu logo que uma parte desse dinheiro, cerca de 14 ou 15 milhões de euros, tinha sido pago pelo Grupo Lena como uma espécie de “prémio” por problemas que resolveu em várias obras a nível internacional. Uma fatia resultava de um negócio que explorou nos anos 90, mais concretamente uma discoteca em Castelo Branco, e com serviços de engenharia no troço da A23 e para o Instituto Politécnico da Guarda. Uma terceira fatia de 6,5 milhões de euros, Santos Silva arrecadou num negócio com um tio de José Sócrates (ver infografia).

Segundo contou, foi Paulo Pinto de Sousa — também ele arguido no processo Marquês — primo de José Sócrates, quem lhe falou nesse investimento. Na altura, o pai de Paulo Pinto de Sousa estava a atravessar algumas “dificuldades” nos seus negócios e sugeriu que Santos Silva entrasse em sociedade consigo numas salinas em Benguela, Angola. Santos Silva aceitou entrar com 200 mil contos — com a condição de ser ressarcido desse valor e de 50% da mais-valia quando esta se realizasse. O capital investido seria corrigido à taxa de 5%. Resultado: o valor investido acabou por traduzir-se, em 2007, em 2 milhões de euros e as mais-valias em 4,5 milhões de euros só para Santos Silva — perfazendo os 6,5 milhões que foram parar à Suíça. “Este negócio foi começado com o pai, o António Pinto de Sousa em Cascais, que já faleceu, porque eles estavam com dificuldades monetárias, eu fiz esse favor, dei o meu aval pessoal para um empréstimo para a atividade deles que estava muito mal [uma loja em Lisboa] e foi aí que surgiu a conversa sobre as salinas”, explicou o empresário.

As salinas foram vendidas a uma empresa ligada ao milionário Hélder Bataglia — a ESCOM. Hélder Bataglia, por seu turno, chegou a ter uma relação com a irmã de Paulo Pinto de Sousa e tiveram uma filha.

Bataglia. O homem “de confiança” que tramou Salgado e foi a peça-chave no processo

Na altura do interrogatório já o Ministério Público tinha a convicção de que todo este dinheiro pertencia a José Sócrates e que Santos Silva seria uma espécie de testa-de-ferro do ex-governante, daí as várias entregas em dinheiro que a investigação registou e que o próprio Santos Silva admitiu. Mas esta informação foi recusada pelo empresário, que admitiu o circuito do dinheiro, entre Portugal, Suíça e, novamente, para Portugal, mas recusou sempre as suspeitas de que o dinheiro não era seu.

Santos Silva diz que emprestou 510 mil euros a Sócrates

O empresário amigo de Sócrates garantiu sempre que os 23 milhões de euros que juntou em contas na Suíça e que trouxe para Portugal lhe pertencem a ele e que resultam dos seus negócios. Ainda assim, admite ter emprestado mais de 500 mil euros a José Sócrates. Tudo por causa da relação de “amizade” que mantinham e para que ele pudesse manter um “estatuto” e um estilo de vida que lhe permitisse seguir a carreira “diplomática”. As explicações de Santos Silva foram sendo reforçadas sempre que o juiz Carlos Alexandre levantava dúvidas em relação a esta ajuda. O empresário reiterou, e até explicou, que em grande parte das vezes foi ele próprio quem foi levantar dinheiro para emprestar a Sócrates. Às vezes 5 mil euros, outras vezes 10 mil, nunca mais de 20 mil de cada vez, segundo afirmou.

Carlos Alexandre: 510.000 euros, foi o que emprestou ao senhor Pinto de Sousa?

Carlos Santos Silva: Sim, talvez fosse um pouco mais. Eu vou pondo nuns papéis.

Carlos Alexandre: É muito útil se pudesse dizer onde estão esses papéis, esses apontamentos.

Carlos Santos Silva: Não, já destruí. Pode haver um ou outro que ainda tenha.

Carlos Alexandre: Ao longo de que período fez estes empréstimos, podemos datá-los?

Carlos Santos Silva: Eu tive esta conversa em 2012.

Carlos Alexandre: Depois de o senhor engenheiro ter saído do governo, é isso?

Carlos Santos Silva: Exatamente, depois de sair, achei que poderia ter esse gesto.

Carlos Alexandre: Era facultar ao senhor engenheiro Sócrates um padrão de vida melhor em razão de alguns contactos que ele lhe pudesse vir a fazer no futuro?

Carlos Santos Silva: Não. Era mesmo por amizade e porque achava que ele tinha um estatuto, queria-lhe proporcionar as condições para ele continuar a fazer a sua vida de diplomata, que ele pudesse fazer uma vida, para ele honrar alguns compromissos que ele tinha, ele tem que sustentar a mãe.

Rosário Teixeira mostrou estranheza pelo facto de Santos Silva nunca recusar qualquer pedido de empréstimo vindo de Sócrates

Álvaro Isidoro / Global Imagens

À medida que o interrogatório avançou, o juiz Carlos Alexandre perguntou a Santos Silva como é que Sócrates lhe pedia estes empréstimos, se diretamente, se por códigos como “alguma coisa, “qualquer coisa”, “do mesmo”, “daquilo que sabes que eu gosto”. Santos Silva riu-se e admitiu que sim. Que quando Sócrates pedia era de forma codificada, mas que por vezes ele próprio, Santos Silva, tomava a iniciativa de lhe fazer chegar dinheiro. Razão: a “tal amizade”. “Se é uma coisa tão normal e tão de amizade, não vejo… não vejo necessidade de… de usar expressões equívocas?”, respondeu-lhe o juiz. O empresário respondeu que não eram “expressões equívocas” porque ele as “percebia”.

Já Rosário Teixeira mostrou estranheza pelo facto de Santos Silva nunca recusar qualquer pedido de empréstimo vindo do ex-primeiro-ministro. “Não é pedido de empréstimo, não é sequer como qualquer um de nós quando pede, mesmo que seja já mais velho, dinheiro emprestado aos pais; é uma exigência dele. Há um tom de exigência de uma coisa de pedir aquilo que é dele. Para si não é visto dessa forma?”, perguntou a Santos Silva. O empresário voltou a bater na mesma tecla: era para manter um “status“.

A relação com o Grupo Lena

Estava a fazer a A23, mais concretamente o troço da então IP6 entre Sarnadas e Castelo Branco, quando o Grupo Lena ganhou o troço seguinte. “E foi desde essa altura a minha relação com eles”, explicou no interrogatório o empresário Carlos Santos Silva. Na altura, quem estava à frente do Grupo Lena era António Vieira Rodrigues, que entretanto se reformou, mas foi com os filhos dele que Santos Silva viria a desenvolver mais negócios. Chegou a ser vice-presidente da SGPS do Grupo Lena e a ter uma empresa, a XMI, em sociedade com empresas dos filhos de António Vieira Rodrigues — António e Joaquim Barroca Rodrigues. Mais de 70% da faturação da XMI, segundo a investigação do Ministério Público, foi feita ao Grupo Lena.

Mas, além do dinheiro que Santos Silva recebeu do Grupo Lena por diversos trabalhos de engenharia e consultoria, o empresário recebeu também várias quantias que classificou como “comissões ou prémios” e que se deviam a problemas que resolvia no estrangeiro para que as obras avançassem a bom ritmo. Naquele dia do interrogatório, perante o juiz e o magistrado do Ministério Público, Santos Silva até deu alguns exemplos destas situações. Falou nas viagens que fez a Bucareste, Marrocos e Argélia — tudo locais onde o Grupo Lena adjudicou várias obras públicas. O engenheiro recusou sempre que esta facilidade com que resolvia pequenos problemas burocráticos nos outros países se devia à sua amizade e relação com Sócrates e com os cargos públicos que este exerceu.

“A minha relação com o Grupo Lena é antiga. Tenho-lhes feito muitas missões em termos de engenharia, fui a Bucareste diversas vezes por causa da obra do aeroporto; a Marrocos por causa da auto-estrada porque havia multas de 30 milhões de euros para pagar; acompanhei na Argélia o grande estádio que acabou por não ter sucesso e as mais variadas acções pelo mundo fora, em representação do Grupo Lena nestes grandes projectos”, disse Santos Silva.

Rosário Teixeira: Então e essa remuneração, não sendo o senhor accionista, tinha que ver com o
quê? Comissões sobre estes…?

Carlos Santos Silva: Não, portanto, tem a ver com muito trabalho de engenharia, porque nós nos estádios (imperceptível) fizemos projectos completos, digamos, para poder fazer as propostas

(…)
Carlos Santos Silva: Comissões podemos pôr se calhar entre…

Rosário Teixeira: Comissões nesse sentido.

Carlos Santos Silva: São pagamentos, são pagamentos.

Rosário Teixeira: … não. .. não tenho um juízo de censura na palavra comissões.

Carlos Santos Silva: Não, não … eu também não tenho, eu também não tenho.

(…)
Rosário Teixeira: O senhor resolveu um problema…

Carlos Santos Silva: Certo.

Rosário Teixeira: … e pagaram-lhe um prémio, pronto.

Carlos Santos Silva: Talvez o termo adequado seja esse.

Rosário Teixeira: Um prémio. Pronto, chamemos-lhe isso, se for mais confortável, chamemos-lhe um
prémio. Portanto, em face de o senhor ter resolvido estes problemas recebeu prémios e esses prémios foram parar à Suíça.

Carlos Santos Silva: Exactamente.

(…)
Rosário Teixeira: Podemos ter ideia de qual é o montante, isto é, é a totalidade desses prémios que
atinge este dinheiro que foi depois foi repatriado? Estamos a falar na altura, quando foi repatriado, em 23 milhões de euros? É a totalidade desses prémios?

Carlos Santos Silva: Não, não, não. Portanto, não é a totalidade desses prémios, portanto.

Rosário Teixeira: Então, ajude-nos lá a explicar como é que se formou o bolo que estava na Suíça.

Carlos Santos Silva: Com certeza, eu estou aqui, portanto, para lhe dizer toda a verdade.

As casas em Paris, Lisboa, Cacém e Alentejo

Foi em 2012 que a intenção de investir em Paris se concretizou. Pelo menos foi este o argumento de Santos Silva. O Ministério Público acredita que o apartamento na Avenida Président Wilson, na capital francesa, foi adquirido com dinheiro de Sócrates — o dinheiro que o empresário juntou na Suíça e trouxe para Portugal.

Ao juiz Carlos Alexandre e ao procurador Rosário Teixeira, Santos Silva explicou como comprou aquele imóvel. Contou que pediu ao seu advogado, Gonçalo Trindade Ferreira — também ele arguido no processo –, para tratar do negócio porque ele dominava bem a língua francesa. Pagou um total de 2,86 milhões de euros pelo imóvel. E emprestou-o a José Sócrates, que estava a estudar na capital francesa. Só em janeiro de 2013, recordou, ambos celebraram um contrato de arrendamento por seis meses. Convencionou-se um valor de 4 mil euros de renda. Mas Sócrates nunca pagou. Cerca de um ano depois, Santos Silva terá decidido fazer obras na casa. E, garantiu, pediu ao amigo e ex-governante que, uma vez que estava ainda em Paris, controlasse as obras.

Em conversa com Santos Silva, Sócrates irritou-se com o atraso nas obras da casa em Paris: "Eh pá, porra, é preciso agora tratá-lo com dureza, pá, porra pá"

JOSÉ COELHO/LUSA

Carlos Santos Silva: Recordo-me depois de lhe pedir, quando ele estava em Paris, se ele podia, portanto, pela nossa relação de amizade e também porque ele, embora não exercesse função, mas também tem, se ele de vez em quando podia passar por lá, digamos, e olhar, para eu não estar lá a deslocar-me tantas vezes. Isso eu pedi-lhe, se ele me podia fazer esse favor em termos de amizade.

As provas que o Ministério Público reuniu indicam ainda que foi Santos Silva quem tratou do apartamento de substituição enquanto decorriam estas obras. É que, por esta altura, além de Sócrates, também a ex-mulher, Sofia Fava, e um dos filhos de ambos se encontravam em Paris. O empresário confirmou no interrogatório que, a pedido de Fava, contactou a agência com a qual costumava trabalhar e que lhe encontrou uma casa para viverem provisoriamente. Acabou por acrescentar que não foi apenas uma, mas duas casas. Uma para Fava e para o filho e outra para Sócrates. Tudo por amizade.

O arguido insistiu, ao contrário do que veio a acusar o Ministério Público, que as obras no apartamento de Paris eram um projeto seu, e não de Sócrates. E que era uma forma de o valorizar , passando a renda de 4500 para 7500 euros — como aconteceu. Afirmou que não havia garantia de que Sócrates viria a ocupar posteriormente o apartamento. Carlos Alexandre foi sempre perguntando se ele tinha a certeza de que tudo teria corrido desta forma. Porque estas declarações eram importantes para a investigação e para a determinação de uma medida de coação. Santos Silva reiterou. Até que o juiz o confrontou com uma escuta que mostra Sócrates visivelmente irritado com o atraso nas obras.

“Tá-nos a mentir, pá, enfim, ela vai-lhe ligar também, mas, eh pá, porra, é preciso agora tratá-lo com dureza, pá, porra pá, quer dizer deixa-nos aquilo num estado miserável, pá, porra pá, e estou farto de ter lá a malta também com a tralha às costas pá, tou farto pá, f **** pá, quer dizer, não se pode confiar em ninguém, pá, nestes gajos, pá, quer dizer, o gajo tinha dito Novembro, condições de habitabilidade, 15 de Dezembro, pá, onde isso já vai, não é? E acha que em Janeiro não está”, diz Sócrates por telemóvel a Santos Silva.

Dois anos antes da aquisição em Paris, também Santos Silva adquirira três casas à mãe de Sócrates, Maria Adelaide Pinto de Sousa: uma no edifício Heron Castilho, em Lisboa, por 600 mil euros, e dois outros apartamentos no Cacém, concelho de Sintra. Santos Silva garantiu às autoridades, mais uma vez, que estes negócios não tiveram intervenção de José Sócrates e que até negociou diretamente com a mãe dele “na salinha última da casa, que é uma salinha onde bate o sol”, descreveu.

Carlos Santos Silva: Essas casas, portanto, foi o An. .. o já falecido António José que veio, portanto, procurar-me, dizendo, portanto, que a mãe, portanto, tinha interesse em… queria vender umas casas, se eu, portanto, poderia estar interessado em comprá-las. Eu desloquei-me lá, portanto, vi as casas, uma portanto, estava… estava e está arrendada… uma estava e está arrendada e a outra.

Rosário Teixeira: Com uma renda baixa?

Carlos Santos Silva: 12 euros e 800… 12 euros.

Carlos Alexandre: (Imperceptível)

Carlos Silva: 12 euros e 80 centavos.

Rosário Teixeira: 80 centavos.

Carlos Santos Silva: E não se consegue fazer vida daquilo, pronto, dificilmente… E a outra precisa de umas obras, portanto, de recuperação, portanto, nomeadamente, digamos, da cozinha toda nova, portanto… E eu, portanto, digamos, depois de ver as casas, portanto, e de também fazer ali um… um benchmarking do mercado achei, portanto, que os valores que me estavam a pedir, portanto, estavam dentro do mercado e aceitei, portanto, comprá-las, dentro da óptica, portanto, digamos, de investidor

Rosário Teixeira: Estes valores de 100 mil euros por uma casa e 75 mil euros por outra.

Carlos Santos Silva: Exatamente.

“Há aqui mais um imóvel que também tem uma historiazinha para contar”, disse a determinada altura o procurador Rosário Teixeira, referindo-se ao Monte das Margaridas, a propriedade adquirida pela ex-mulher de Sócrates, Sofia Fava, em Montemor, Alentejo. Santos Silva explicou que Fava foi ter com ele a pedir ajuda para conseguir um empréstimo. Precisava que ele fosse avalista dela. “Mais do que um aval, foi constituído um colateral [uma garantia no valor do investimento]…”, respondeu-lhe o magistrado. Ou seja, Santos Silva aplicou o valor do monte, os 760 mil euros, e transformou-o numa garantia. Logo, nem sequer podia tocar neste dinheiro durante o período de crédito.

Santos Silva justificou que era igual. Caso Fava falhasse uma prestação ou desistisse de pagar o empréstimo, ele teria que o pagar. Rosário Teixeira alertou-o que era diferente ter dinheiro para pagar uma prestação em falta ou ter o dinheiro total da propriedade ali “empatado”. O empresário respondeu que não, uma vez que o dinheiro ali aplicado estava a render. Argumento que não convenceu o Ministério Público, que considera que este dinheiro era de Sócrates e que ele o iria resgatar mais tarde.

Santos Silva foi ainda confrontado com outra coincidência no processo, e que o Ministério Público vê como branqueamento de capitais: a avença paga pela empresa XML, de Santos Silva, a Sofia Fava. A ex-mulher de Sócrates recebia uma avença de 4900 euros para fazer alguns trabalhos na área de consultoria do Ambiente para aquela empresa. A prestação do Monte era, na altura, de 4700 euros.

O livro e o “status”

Carlos Santos Silva foi ainda questionado sobre o livro de Sócrates Confiança no Mundo. “É verdade que houve aqui uma campanha montada para comprar exemplares do livro?”, perguntou-lhe Rosário Teixeira, que acabou por lhe chamar uma “indução artificial” de vendas. “Eu comprei bastantes”, respondeu Santos Silva a rir.

O amigo de Sócrates disse que não foi só a pedido do ex-primeiro-ministro, mas por vontade própria. Mais uma vez, porque achava que Sócrates tinha que manter um certo “status“. Explicou ainda que as vendas do livro do ex-primeiro-ministro foram prejudicadas porque, ao mesmo tempo, tinha saído um livro de Rodrigues dos Santos e outro do Asterix. “O problema também era o do Asterix”, disse. O empresário descreveu ainda como decidiram começar a passar nas caixas automáticas das lojas, para não levantarem grandes suspeitas junto dos funcionários por andarem a comprar sete livros de uma só vez durante vários dias.

Rosário Teixeira: E algumas destas utilizações foram também ou estão também ligadas com a aquisição do livro do senhor engenheiro. É verdade que houve aqui uma campanha montada para comprar exemplares do livro?

Carlos Santos Silva: Eu comprei bastantes (ri-se).

Rosário Teixeira: Mas foi a pedido do próprio engenheiro Sócrates?

Carlos Santos Silva: E também por vontade própria. Eu também gostava.

Carlos Alexandre: O senhor engenheiro.

Carlos Santos Silva: Também.

Carlos Alexandre: Está bem, ó senhor engenheiro, pode ser que tenha sido. A sua explicação começa… faz sentido no princípio… Mas, ó senhor engenheiro.

(…)
Carlos Alexandre: Alavancou as vendas do livro?

Carlos Santos Silva: Certo. Exactamente.

(…)
Carlos Santos Silva: E que eu… portanto… é que neste sítio comprava, por exemplo, sete, pronto, noutro cinco… porque não podia comprar, portanto.

Carlos Alexandre: Eu sei, a D. Inês chegou a queixar-se de que uma vez numa loja lhe fizeram uma abordagem dizendo “Tanto livro que a senhora leva desse senhor” e tal… Não foi?

Carlos Santos Silva: Exacto.

Carlos Alexandre: Não se recorda desta conversa?

Carlos Santos Silva: Recordo, recordo.

Carlos Alexandre: Pronto, quer dizer… Este é um tema até, mais ou menos consensual aqui neste circo todo, não é?

(…)

Carlos Alexandre: Havia… havia necessidade de ir comprar livros a todo o lado.

Carlos Santos Silva: O sete… o sete era… o sete era um número que eu, por exemplo, entendia razoável, o cinco ou o sete, porque a partir…

Carlos Alexandre: Em cada sítio onde fossem.

Carlos Santos Silva: Pois.

Carlos Alexandre: … se não aquilo era uma…

Carlos Santos Silva: Era desra. .. desra… desra… não era…

Carlos Alexandre: Desrazoável.

Carlos Santos Silva: Desrazoável, exactamente.

(…)
Rosário Teixeira: “A Confiança no Mundo”… (…) Há aqui uma sessão curiosa, que houve alguém a aconselhar para ir às máquinas automáticas porque os rapazes das caixas já começavam a aborrecer-se de aparecer lá três e quatro vezes a mesma pessoa com cinco livros, seis livros e então passa a dizer “Então vai às máquinas, que as máquinas não coiso e tal…”

Carlos Santos Silva: Não… senhor procurador, era para não dar nas vistas!

Rosário Teixeira: Para não dar nas vistas!

Carlos Santos Silva: (ri-se) É que na caixa automática é só passar.

Rosário Teixeira: Exactamente, a máquina não se queixa.

Carlos Santos Silva: E, portanto, porque o front office no balcão é o mesmo, não é?

Rosário Teixeira: Exacto, pois… foi até dito pelo mesmo funcionário que tinha passado três vezes com uma carrada de livros.

Santos Silva admitiu também que pagou as viagens de férias do ex-primeiro-ministro a Formentera e a Cabo Verde e que chegou a dar dinheiro a Sócrates através da conta bancária do motorista dele, João Perna.

O negócio que faz Santos Silva ter vontade de chorar

Segundo o despacho de acusação do Ministério Público, entre as várias operações autorizadas pelo ex-primeiro-ministro com “fundos da sua pertença”, estão alguns negócios feitos pelos seus amigos Santos Silva e Rui Pedro Soares, ex-administrador da PT e atual administrador da SAD do Belenenses. Negócios cujos lucros, acreditam os investigadores, serviam para Santos Silva pagar várias contas de Sócrates.

Um destes negócios está relacionado com a compra e venda de direitos televisivos do campeonato espanhol por três anos através da empresa Worldcom Comunicações Lda — cujo principal acionista era Santos Silva e que era também participada pela empresa espanhola Walton Grupo Inversor, com ligações a Rui Pedro Soares. Foi a Walton que adquiriu os mesmos direitos à sociedade espanhola Sogepec e que depois os vendeu à sociedade portuguesa Partrouge Projetos de Investimento. Para o procurador Rosário Teixeira pareceu um “bom negócio”. Para Santos Silva, pensar nisso dá “vontade de chorar”, como respondeu em interrogatório. É que, quando vendeu os direitos à Partrouge, empresa de Pais do Amaral, Santos Silva terá recebido o valor do sinal, mas a empresa entrou em falência antes de concluir o resto do pagamento. O valor total do negócio seria de 6 milhões de euros.

Rosário Teixeira: Adiante, falemos agora aqui deste negócio da… dos audiovisuais que aqui vem (imperceptível) desta situação da… da Walton Group e deste negócio dos audiovisuais. Tem ideia do que isto é? Queria-lhe pedir que fizesse esse enquadramento desta… deste negócio e da sua participação nele.

Carlos Santos Silva: E… Em primeiro lugar apetece-me já chorar.

Rosário Teixeira: Mas olhe que esse negócio parece ter sido bom!

Carlos Alexandre: Mas qual negócio?

Carlos Santos Silva: Não, não foi.

Rosário Teixeira: O da… dos audiovisuais.

Carlos Alexandre: Ah, dos audiovisuais!

Carlos Santos Silva: Infelizmente não foi.

Carlos Alexandre: Apetece-lhe já chorar!!!

“A Autoridade Tributária teve uma interpretação do negócio (…) e eu tive que pagar ao fisco mais de 500 mil euros de imposto sobre dinheiro que não recebi da Partrouge”, porque esta entrou em insolvência, explicou Santos Silva.

Ainda assim, os 2 milhões foram parar à conta do BES de Santos Silva, a mesma que o Ministério Público acredita ter servido para receber dinheiro de Sócrates e de onde saiu a maior parte dos pagamentos e levantamentos destinados ao ex-primeiro-ministro.

Óculos partidos e conversas sobre elevadores

O interrogatório de Santos Silva começou na noite em que foi detido no aeroporto de Lisboa e só terminou no dia seguinte, 22 de novembro. Durante as horas de interrogatório, houve momentos em que a sua voz começou a baixar e teve que ser chamado à atenção e houve até tempo para dois dedos de conversa sobre as novas instalações da Polícia Judiciária. Pelo meio, Santos Silva partiu um parafuso dos óculos e o juiz Carlos Alexandre mandou um funcionário do tribunal consertar.

Carlos Alexandre falou com Santos Silva sobre um elevador avariado na sede da PJ

JOSE SENA GOULAO/LUSA

Carlos Alexandre: Partiu… partiu os óculos?

Carlos Santos Silva: Parti-os mas não tem problema (…) . Mas eu leio assim quando for necessário.

Carlos Alexandre: Ó valha-me Deus.

Carlos Santos Silva: É que falta… não… caiu o parafuso…

Carlos Alexandre: Pois.

Carlos Santos Silva: Se tivéssemos para aí uma chave…

Carlos Alexandre: Uma chave? Mas… mas está aí o parafuso?

Carlos Santos Silva: Está, por acaso.

Carlos Alexandre: Vou pedir ao João, que o João é todo engenhocas e arranja os óculos.

A certa altura do interrogatório, a voz de Santos Silva começou a sumir-se. E o juiz Carlos Alexandre teve que interromper o interrogatório para pedir que falasse mais alto, caso contrário o sistema de gravação não captaria a sua voz. O empresário pensou que, se falasse mais alto, seria “indelicado”.

Carlos Alexandre: Ia pedir-lhe para (…) falar um pouco mais alto porque… mas isso ajusta, deixe estar que a jovem ajuda, ela tem muita maleabilidade, é uma rapariga nova, mas, embora a coisa não dê, porque isso está tudo, enfim… ora bem, mas é o que é… E que falasse um pouco mais alto que é para se…

Carlos Santos Silva: Eu há bocadinho estava a falar mais alto?

Carlos Alexandre: Há bocado estava. Agora é que está bom. Como está a falar... como falou agora.

Carlos Santos Silva: Está bem, pronto. É que eu… eu… eu saí com a sensação que estava a falar alto demais e que podia estar a ser indelicado.

Carlos Alexandre: Não, não, não, não, não… estava a falar bem… Diga. Agora é que estava num tom tão baixo, tão baixo que eu.

Carlos Santos Silva: Aliás… E eu perguntei aliás à senhora dra.: “Se calhar falei alto demais, estava a ser indelicado de estar a falar alto”.

Carlos Alexandre: Não, não, o senhor aqui não é indelicado nem coisíssima nenhuma. Nós não estamos habituados a que sejam indelicados connosco, quer dizer, nem o senhor comigo nem eu consigo.

O juiz Carlos Alexandre quis saber como é que Santos Silva fazia tanto dinheiro nos serviços de engenharia que prestava. O empresário respondeu-lhe que era quase um perito em encontrar “soluções optimizadoras” nas obras. E deu como exemplo um dos trabalhos que a sua empresa, a Proengel, projetou: as novas instalações da Polícia Judiciária, na Rua Gomes Freire, em Lisboa. O juiz Carlos Alexande aproveitou para se queixar de um elevador que avariou.

Carlos Santos Silva: E nós fazemos isso. Ainda agora, portanto, no edifício da Policia Judiciária, fomos nós que fizemos a revisão toda do projecto, portanto, e encontrámos também soluções, portanto, para o cliente; o cliente que era o Ministério da Justiça e, portanto, como havia a necessidade por determinação, portanto, da senhora ministra, portanto, reduzir o valor da obra em 15%, não é, e portanto…

Carlos Alexandre: Na… no Palácio, ali na Polícia Judiciária?

Carlos Santos Silva: Sim.

Carlos Alexandre: E embelezou aquilo também com umas soluções optimizadoras poupadoras de recursos?

Carlos Santos Silva: Certo. Não, ainda falta neste momento… só falta o Laboratório de Polícia Científica.

(…)
Carlos Alexandre: Sim, mas encontrou soluções optimizadoras.

Carlos Santos Silva: Sim, sim.

Carlos Alexandre:… luminárias e…

Carlos Santos Silva: Sim, sim e em conjunto.

Carlos Alexandre: … e elevadores. Um há dias foi lá, desceu demais e coiso.

Carlos Santos Silva: Não me diga que há problemas.

Carlos Alexandre: Houve lá um problema, houve, o elevador desceu de repente e tal. Mas pronto, depois
está parado… Parou naquela altura, acho que ainda não levou nada.

Carlos Santos Silva: E com… como sempre com a colaboração também das pessoas, portanto, nomeadamente o eng. Nelson…

Carlos Alexandre: Isso é uma coisa que aconteceu… O eng. quê?

Carlos Santos Silva: Nelson da Polícia Judiciária.

Carlos Alexandre: Ah, sim, sim… O engenheiro Nelson tem lá um gabinete e tal. Eu conheço.

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