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Jake LaMotta, o touro expiatório

A propósito da morte do pugilista que inspirou o papel de Robert De Niro em "Touro Enraivecido", Bruno Vieira Amaral recorda como uma das personagens mais repugnantes do cinema conquistou o público.

Pouco depois da estreia de “Touro Enraivecido”, Jake LaMotta foi ver o filme na companhia da ex-mulher, Vickie (papel desempenhado por Cathy Moriarty). O ex-pugilista ficou chocado com o homem que viu no ecrã. “Eu era mesmo assim?”, perguntou a Vickie, talvez à espera de uma resposta consoladora. “Não, eras pior.”

Olhando para trás, parece incrível que o melhor desempenho da carreira de Robert De Niro, aquele que é unanimemente considerado o ponto alto da carreira de Scorsese e o único filme dos últimos 40 anos que disputa os lugares cimeiros nas listas dos melhores filmes de sempre seja sobre uma personagem tão desagradável, tenha sido filmado a preto e branco e tenha recebido críticas pouco entusiasmadas na altura em que saiu. O único ponto em que quase todos concordavam era na excelência do trabalho de De Niro. O empenho de De Niro entendia-se não só pelo seu perfeccionismo mas porque a ideia de adaptar para o cinema a história do pugilista Jake LaMotta tinha partido dele.

[o trailer de “Touro Enraivecido”:]

Quando, no início dos anos 70, DeNiro leu a autobiografia de LaMotta, procurou logo convencer os seus cúmplices cinematográficos a avançar com o projecto. Quando Scorsese estava a rodar “Alice Já Não Mora Aqui”, DeNiro ofereceu-lhe um exemplar, mas o realizador não se mostrou minimamente interessado em fazer um filme sobre boxe e, em particular, sobre LaMotta. Filmes sobre pugilistas com uma tendência para se auto-destruírem já tinham sido feitos (“O Grande Ídolo”, “Há Lodo no Cais” – este talvez o melhor filme de sempre sobre boxe, apesar de não ter uma única cena no ringue) e a história da relação problemática dos irmãos também não era muito original (outra vez, “Há Lodo no Cais”).

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Morreu Jake LaMotta, o pugilista que inspirou o filme “Touro Enraivecido”

Scorsese queria fazer filmes pessoais, em que soubesse que tinha alguma coisa para dizer e como dizer: “Eu sabia o que queria dizer em ‘Mean Streets’, da mesma forma que sabia o que queria dizer em ‘Taxi Driver’. Até em ‘New York, New York’ eu sabia o que queria dizer. Mas não fazia a mínima ideia do que raio era ‘Touro Enraivecido’”, contou o realizador a Peter Biskind, citado no livro Easy Riders, Raging Bulls.

Foi o fracasso estrondoso de “New York, New York” – um filme tão pessoal que Scorsese não podia passar as culpas do desastre para mais ninguém – a juntar aos problemas na vida pessoal, com o fim do segundo casamento e o consumo de drogas que o deixou às portas da morte, que empurrou Scorsese para “Touro Enraivecido”. Estava a dar cabo de todas as relações importantes e o seu único refúgio, o cinema, ameaçava tornar-se um inferno. Percebeu que o seu percurso não era assim tão diferente do de Jake LaMotta.

Uma história sem redenção, sem esperança, sem um final feliz, sem uma mensagem para reforçar a crença na América e que, pelo caminho, obrigava o espectador a conviver e, de certa forma, a compreender e a gostar de um homem detestável.

Encontrada a motivação pessoal, faltava ainda o resto. A United Artists tinha encontrado ouro com “Rocky”, um filme de baixo orçamento que triunfou nas bilheteiras e nos Óscares. Era um filme onde o realismo cru dos anos 70 recebia uma injecção de idealismo e esperança na história do underdog que se redime no ringue. “Touro Enraivecido” era a antítese de tudo isto, era o anti-Rocky. Uma história sem redenção, sem esperança, sem um final feliz, sem uma mensagem para reforçar a crença na América e que, pelo caminho, obrigava o espectador a conviver e, de certa forma, a compreender e a gostar de um homem detestável (“é incrível porque somos forçados a compreender alguém que é completamente odioso”, disse o crítico Ben Ollins).

De Niro e Scorsese convidaram então Paul Schrader, argumentista de “Taxi Driver” e que já se lançara como realizador, a melhorar uma primeira versão do argumento. No seu livro, Biskind conta que até o próprio Schrader – que não era propriamente um escritor delicodoce – achou as personagens repelentes e que terá dito a Scorsese que era preciso emprestar à personagem principal “uma profundidade que não tinha” porque, de outra forma, não havia nele nada que justificasse que se fizesse um filme.

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Os executivos não sabiam como conseguiriam vender um filme cujo protagonista, entre outras características reprováveis, espancava a mulher grávida provocando-lhe um aborto. As reservas morais foram postas de parte e o financiamento avançou quando o produtor Irwin Winkler lhes ofereceu o “Rocky II”. Negócio é negócio e o problema não era tanto moral como financeiro. Havendo possibilidade de ganhar dinheiro de outra maneira, a ideia de se fazer a biografia de uma “barata”, nas palavras de um do executivos da UA, parecia menos reprovável.

Mas não era só a personalidade negativa de LaMotta a refrear o ânimo dos investidores. Se as perspectivas já eram más, pioraram quando Scorsese decidiu filmar a preto e branco. A escolha não só levantava problemas técnicos como também iria afastar o público, mas Scorsese achava que era o ideal. Defendia-se com o argumento de que as pessoas tinham na memória os combates de La Motta transmitidos na televisão a preto e branco e queria que o filme tivesse a aura das fotografias da revista Life dos anos 40, mas terá sido o conselho de um mestre a pô-lo nesse caminho.

Durante a pré-produção do filme, o realizador, acompanhado por Michael Powell, então casado com Telma Schoonmaker, responsável pela montagem da maior parte dos filmes de Scorsese, visitou o ginásio onde De Niro treinava. Powell notou que havia qualquer coisa de errado com as luvas vermelhas. O velho realizador britânico – conhecido pelos filmes feitos em colaboração com Emeric Presseburger – sabia alguma coisa sobre o impacto das cores numa tela, basta pensar em “Os Sapatos Vermelhos” ou “Quando os Sinos Dobram”, e Scorsese, para terror dos produtores, aproveitou a dica.

Certa vez, quando viu LaMotta às cabeçadas na parede do quarto de hotel, De Niro percebeu tudo: aquilo que tornava aquele homem detestável – a agressividade, o descontrolo, a tendência para a auto-destruição – era também o que o tornava humano.

Durante todo o período de produção, Scorsese estava convencido de que aquele seria o seu último filme. Pensava que estava a morrer e, mesmo se sobrevivesse, não acreditava que a sua carreira em Hollywood tivesse futuro. Essa urgência e esse desespero, uma espécie de derradeira fuga em frente, combinaram na perfeição com a personalidade auto-destrutiva do protagonista. Mas isso só resultou por causa de De Niro. Schrader e Scorsese perceberam logo que a relação que os espectadores estabeleciam com a figura de De Niro, com o seu rosto, era a chave para a humanização de La Motta.

Porém, De Niro, com a intuição dos grandes actores, foi mais longe. Ir longe tem menos que ver com a transformação violenta do corpo e com a obsessão dos pormenores (num breve documentário que acompanha a edição especial do DVD, La Motta dizia que, a certa altura, De Niro quis saber qual a marca de charutos que ele tinha começado a fumar depois de terminar a carreira porque era importante para ele fumar aqueles charutos, e não outros), e mais com a compreensão profunda do homem.

Certa vez, quando viu LaMotta às cabeçadas na parede do quarto de hotel, De Niro percebeu tudo: aquilo que tornava aquele homem detestável – a agressividade, o descontrolo, a tendência para a auto-destruição – era também o que o tornava humano. Havia, no sofrimento auto-infligido de LaMotta, quer na sua vida pessoal, quer no ringue, algo de sacrificial, como se estivesse a pagar com o corpo não só pelos seus pecados, mas pelos pecados dos outros.

[a cena de abertura de “Touro Enraivecido”:]

Foi também a este entendimento que Scorsese chegou. A célebre frase de Mean Streets, de que é nas ruas, e não na igreja, que se pagam os pecados, aplica-se aqui na perfeição. Os ringues e as ruas eram a via sacra de homens como LaMotta. O seu sofrimento não salva e talvez nem sequer redima, mas purifica, é catártico. Só assim se compreende que uma personagem que Katherine Carroll, crítica do New York Daily News, descreveu como “uma das mais repugnantes da história do cinema”, tenha conquistado a compreensão dos espectadores.

“Touro Enraivecido” não é um filme amoral. A ideia de castigo e de punição está lá, do princípio ao fim. Na cena que recria um combate que perdeu para o seu grande rival, Sugar Ray Robinson, LaMotta, com a cara toda amassada, atira-lhe:

“Hey, Ray. I never went down. You never got me down, Ray. You hear me? You never got me down. Yeah. See? Look.”

Há uma diferença entre perder e cair que reside na ideia de sacrifício, na ideia de que alguém tem de beber o cálice do sofrimento até à última gota. Como se tivesse sempre de haver alguém a sofrer por nós, a receber os golpes que nos estão destinados. Que o cordeiro sacrificial não seja um santo, mas um homem desprovido de quaisquer qualidades, é o que dá ao filme de Scorsese e à vida de LaMotta um significado religioso, uma grandeza moral. Afinal, os pecados também se pagam no cinema.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor dos romances “As Primeiras Coisas” (vencedor do prémio José Saramago em 2015) e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.

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