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JOEL SAGET/AFP/Getty Images

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Laëtitia foi assassinada aos 18 anos. Este historiador não a deixa morrer

Violada e desmembrada. Laëtitia ficou conhecida pelo assassinato brutal de que foi vítima. Ivan Jablonka resgatou-a e fê-la heroína num novo livro. Em entrevista, o autor conta como quis libertá-la.

Em janeiro de 2011, Laëtitia Perrais foi raptada, violada, morta e desmembrada. Tinha 18 anos. O país que a viu nascer e crescer escandalizou-se e o nome da jovem órfã foi repetido pelos franceses até se perder. O historiador e sociólogo Ivan Jablonka resgatou-a para fazer dela a heroína da sua própria história.

Em Laëtitia — Ou o Fim dos Homens, livro que chega a Portugal com os prémios Le Monde e Médicis no currículo, é Laëtitia que importa, ao invés do homem que ficou famoso por lhe ter tirado a vida. O caso que comoveu França — e que foi muitas vezes usado para fins políticos — foi alvo de análise por parte de Ivan Jablonka, que junta diferentes registos e géneros num mesmo livro: literatura, atualidade, investigação, história, sociologia e política.

Em entrevista ao Observador, Ivan Jablonka conta que demorou dois anos e meio a investigar o caso e a escrever o livro, que travou amizade com algumas fontes e que se comoveu com a vida e morte da sua protagonista. Mas o autor defende que a História se esquece continuamente das mulheres e que está na altura de os homens fazerem a sua parte na luta a favor da igualdade de género.

“Laëtitia não foi destruída por causa de uma guerra ou de um genocídio — coisa que aconteceu com os meus avós. O país onde vivia era democrático, rico e estava em paz. Então, como é que a sociedade destruiu aquela jovem mulher em apenas 18 anos?

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O livro está à venda desde setembro por 17,70 euros.

O livro junta géneros literários distintos e não chega a ser um romance. Como o podemos definir?
Sempre disse que este livro é literatura contemporânea. Há alguns anos publiquei um outro chamado A História é uma Literatura Contemporânea, onde queria mostrar que a História não tem nada que ver com ficção ou romance, mas que, enquanto investigação, pode ser considerada uma nova forma de literatura. O livro não tem nada que ver com ficção ou romance, sendo que tento ser um escritor que cria novas formas de literatura.

O livro já chegou a ser apelidado de “ovni literário”. Esta expressão faz sentido para si?
Alguns jornalistas escreveram isso… não posso comentar sobre outros comentários. Mas o leitor tem sempre razão, a palavra final a ele pertence. Se houve pessoas que o disseram, não tenho nada a acrescentar, apenas posso explicar o que tentei fazer. O meu trabalho é um encontro de géneros. Este livro é histórico, tenho fontes, levanto um problema e tento responder a uma questão científica. É sociológico porque estudo o caminho social de Laëtitia e da sua família. E é biográfico, claro. É uma investigação no reino das ciências sociais, é um policial e é um elogio fúnebre. O livro é muitas coisas ao mesmo tempo; é uma coisa pela qual podemos estar felizes, porque mostra que as fronteiras são cada vez mais difusas. Estou a escrever literatura enquanto historiador e sociólogo.

É uma ideia interessante, o facto de haver tanta necessidade em definir o seu livro…
Não quero que o meu livro seja etiquetado como qualquer coisa não ficcional ou como um livro histórico. O livro reúne muitas coisas e acho que o futuro das ciências sociais e, ao mesmo tempo, da literatura passa por inventar novas formas.

"Laëtitia não foi destruída por causa de uma guerra ou de um genocídio -- coisa que aconteceu com os meus avós [sobre quem também escreveu um livro]. O país onde vivia era democrático, rico e estava em paz. Então, como é que a sociedade destruiu aquela jovem mulher em 18 anos?"

Pela história que conta, e pelos géneros literários que mistura, o livro faz lembrar A Sangue Frio de Truman Capote. Já recebeu comparações com este autor?
Primeiro, tenho de prestar um tributo a Truman Capote porque, sim, ele inventou uma coisa nova e é um mestre. Há uma conexão óbvia entre o meu livro e o livro dele — falo do caso criminal. Ele lida com quatro assassinatos na cidade do Kansas [nos EUA] e eu com um único assassinato em França, no século XXI. Ambos investigamos e tentamos documentar um caso criminal. Mas há duas diferenças entre a sua obra-prima e o meu livro. A primeira é que ele focou-se nos criminosos — e até acho que estava um pouco fascinado com os dois homens, Dick e Perry. Quanto mim, foquei-me na vítima — e não quero dizer “vítima”, porque ao dizê-lo estou a pô-la de lado tendo em conta o crime que a destruiu; não digo “vítimas”, antes “pessoas desaparecidas”, “os ausentes”. O meu fascínio é em relação aos “desaparecidos”. A segunda diferença é que ele era um jornalista e romancista e em A Sangue Frio há partes inventadas, enquanto eu venho do lado da História e da Sociologia, tenho ferramentas especiais para investigar a vida humana. Não acho que Truman Capote quisesse ter um método, eu tenho: é o método de qualquer historiador e sociólogo. Mas, por norma, os meus colegas focam-se no passado e no passado remoto, enquanto eu tento usar essas ferramentas para compreender uma vida e morte muito recentes.

Laëtitia Perrais foi raptada na noite de 18 para 19 de janeiro de 2011.

FRANCOIS MONIER/AFP/Getty Images

De que ferramentas estamos a falar?
Do meu ponto de vista, existe um método universal para investigar. Esta investigação pode ser feita no passado ou no presente, mas em ambos os casos há um método e a primeira coisa a fazer é definir um problema. Neste caso, o problema era saber como é que uma mulher foi destruída em duas décadas. Laëtitia não foi destruída por causa de uma guerra ou de um genocídio — coisa que aconteceu com os meus avós [sobre quem também escreveu um livro]. O país onde vivia era democrático, rico e estava em paz. Então, como é que a sociedade destruiu aquela jovem mulher em 18 anos? Esta era a minha questão. Depois, é preciso ganhar alguma distância do mundo real. É importante dar um passo atrás quando começamos uma investigação. A terceira parte consiste em reunir provas, fontes, testemunhas e arquivos — no meu caso, a família da Laëtitia, os juízes e polícias que estiveram envolvidos no processo criminal e até a sua conta de Facebook. Estas são as minhas fontes, de forma a escrever algo que aconteceu, ao contrário da ficção. Uma parte do método é ainda multiplicar hipóteses, imaginar o que será a verdade e, depois, eliminar as hipóteses que são mais frágeis, mantendo a mais forte. Mantemos a última hipótese para afirmar “não tenho a certeza disto, mas muito provavelmente foi isto que aconteceu”. Há um método epistemológico, não fui eu que o inventei.

Porque decidiu escrever sobre o assassinato de Laëtitia?
Quando comecei a trabalhar como historiador, estudei crianças abandonadas. Por trás de uma criança abandonada há uma mãe em sofrimento. Então, desde o começo que me interessei na história das mulheres. Queria fazer um livro de história sobre as mulheres, mas não queria que fosse clássico e convencional, queria antes focar-me numa personagem feminina que pertencesse ao nosso mundo, à nossa sociedade. Escolhi este caso criminal porque pertence à história das mulheres num sentido mais lato e porque Laëtitia não era uma criança abandonada, mas sim uma criança de acolhimento. E porque a forma como viveu e morreu diz muito sobre o presente.

Enquanto historiador, acho que não estou preso no passado. Laëtitia era o “objeto” perfeito porque pertencia ao passado, enquanto criança de acolhimento e símbolo de violência masculina, e pertence ao presente por motivos muito óbvios. Mas porquê Laëtitia em particular, uma vez que, infelizmente, há muitas mulheres que são assassinadas todos os dias em todas as partes do mundo? Escolhia-a porque a história dela comoveu-me e porque o seu desaparecimento e a sua morte tornaram-se num assunto de Estado no meu país, por causa da intervenção do presidente e da cobertura mediática… A morte dela disse muito sobre três pilares da nossa democracia: média, governo e os tribunais.

Usou Laëtitia como um exemplo para falar sobre o assunto sensível que é a violência contra as mulheres. É isso?
Sim.

"A História sempre se esqueceu das mulheres. Não temos grandes mulheres na História, mas apenas grandes homens. Sou completamente contra isso. O que estou a fazer com Laëtitia é história com "h" pequeno, mas na qual todos nós temos o nosso lugar e importância."

Porque é que é preciso usar um exemplo tão específico para se falar sobre este tema? Sobretudo numa altura em que ainda existe algum preconceito em relação à expressão “feminismo”…
Primeiro tenho de dizer que, para mim, ser um feminista não é um insulto, nem uma coisa da qual tenhamos de ter vergonha. Enquanto homem, não tenho vergonha de dizer que sou feminista, considerando que o feminismo é o combate contra a desigualdade de género. Podemos dizer que o meu livro é feminista? Sim, mas há uma questão — sou um historiador e, como tal, não é suposto ser politicamente ativo no livro. Mas estudar a história das mulheres é ter um ponto de vista feminista, porque a História sempre se esqueceu das mulheres. Não temos grandes mulheres na História, mas apenas grandes homens. Sou completamente contra isso. O que estou a fazer com Laëtitia é história com “h” pequeno, mas na qual todos temos o nosso lugar e importância.

Nas primeiras páginas do livro escreve que Laëtitia é a heroína da trama. Acha que Laëtitia foi apagada tanto em vida como na morte, uma vez que foi o assassino quem ganhou protagonismo?
A vida de Laëtitia desapareceu completamente, mas não a sua morte. A morte de Laëtitia foi a única memória dela que ficou. O que me fez sentir muito desconfortável foi que esta jovem mulher, de apenas 18 anos, tornou-se um cadáver, um corpo ferido, porque foi assassinada. Isto foi ultrajante para mim, foi um escândalo moral. Ela estava presa na sua própria morte quando comecei esta investigação. Queria libertá-la. E sim, podemos dizer que o assassino ficou com a fama, tornou-se numa”estrela do mal”.

Tal como Charles Manson, que morreu esta semana aos 83 anos?
Exatamente como Charles Manson.

Ivan Jablonka é sociólogo e historiador

JOEL SAGET/AFP/Getty Images

No livro, também logo nas primeiras páginas, parece existir uma crítica à forma como os meios de comunicação atuaram…
Não era uma crítica. Dedico dois ou três capítulos do livro ao trabalho jornalístico, à dignidade do jornalismo, à sua importância democrática e ao seu papel. Não estou a lançar críticas ao jornalismo, estou só a pensar sobre o papel do jornalismo neste caso criminal. De um lado, os jornalistas estavam todos obcecados com morte, sangue e assassínio — como Truman Capote — mas, por outro lado, eles fizeram o seu trabalho.

Enquanto historiador, acha que algum dia vamos ver-nos livres da violência contra as mulheres?
Não sou um profeta e não consigo responder a esta pergunta. O que posso dizer é que violência sexual e física contra as mulheres sempre existiu. Temos, por exemplo, menções de violações na Bíblia e noutros textos muito antigos. Há milénios que as mulheres sofrem violência sexual, física e verbal. É verdade que o século XX marcou uma grande mudança face à condenação que os homens podem enfrentar enquanto violadores. No século XVIII, em França, não acontecia nada a quem violasse uma mulher. E se a mulher se atrevesse a apresentar uma queixa, a igreja diria algo como “tem a certeza que não o provocou?”.

"É minha convicção que está na altura de os homens fazerem alguma coisa, está na altura de os homens sentirem que é precisa justiça. Acho que o próximo passo, o próximo avanço, não vai ser feito apenas pelas mulheres."

Mas ainda há quem diga isso…
Sim, mas não são juízes.

Ainda há muita violência no mundo, sobretudo no mundo não ocidental. Sabemos que é melhor ser-se mulher em França ou em Portugal do que em algumas parte da Ásia e de África. Mas também sabemos que 123 mulheres foram mortas o ano passado em França e que em Portugal é qualquer coisa como 40 mulheres — Portugal tem percentagens muito elevadas considerando a sua população. Não consigo responder à sua questão, mas é minha convicção que está na altura de os homens fazerem alguma coisa, está na altura de os homens sentirem que é precisa justiça. Acho que o próximo passo, o próximo avanço, não vai ser feito apenas pelas mulheres. Escrevi este livro enquanto homem, marido, pai e historiador, mas o livro é também uma reflexão sobre o que é a masculinidade.

No livro, chega a falar na primeira pessoa e admite ter travado amizade com algumas das fontes. Sentiu empatia face a Laëtitia enquanto estava a escrever o livro?
Sim. Seria difícil negar a empatia, a ternura histórica por Laëtitia ou pelas suas “irmãs” nos séculos anteriores. Mas tenho de acrescentar que um historiador tem de procurar o equilíbrio entre empatia e distância. Não dá para escrever um livro tendo apenas a empatia enquanto guia, caso contrário seria um livro que nos faria chorar do início ao fim — já não seria ciências sociais. Mas demasiada distância e Laëtitia seria apenas uma criatura anónima que foi esmagada.

Pelo que escreveu sobre Laëtitia, talvez saiba mais sobre ela do que muita gente…
Provavelmente, até sei mais do que ela própria.

Então — e considerando que pode levantar várias hipóteses — acha que ela gostaria deste livro?
Essa é uma pergunta muito bonita e obrigada por tê-la colocado. Vou responder de uma forma pessimista: penso que o encontro entre mim e Laëtitia seria impossível durante a sua vida. Havia muitas diferenças entre mim e ela, a nível sociológico, histórico e intelectual. Infelizmente, o nosso encontro apenas foi possível na morte. Mas se pensarmos no que é a História… bem, a História é a reflexão dos vivos sobre aqueles que já morreram.

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