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Vamos primeiro ao fim. O debate caótico acabou com Marine Le Pen aparentemente a dançar nas águas internacionais onde Macron alegadamente mantém contas offshore. Houve quem pedisse um exame mais minucioso às alegações feitas por Le Pen no final do único frente a frente entre os dois candidatos à Presidência francesa, na quarta-feira à noite. Será difamação? Não interessa porque de onde vieram essas insinuações chegaram muitas, de ambos os lados, ao longo de duas longas, mas raramente enfadonhas, horas.

Agora poisemos de novo os pés em terreno mais sólido e façamos uma análise sobre o que está em causa, além do mais óbvio que é a chave do Palácio do Eliseu.

Os eleitorados de Le Pen e Macron são em quase tudo diferentes: até pela distribuição geográfica do voto na primeira volta se vê que um e outro parecem temer o contágio. Olhando para o mapa fica claro o que escapou às manchetes aliviadas da manhã depois da primeira volta. Emmanuel Macron ficou de facto em primeiro lugar, 8,53 milhões de franceses a escolher confiar no “estagiário” da política francesa mas em Marine Le Pen votaram 7,66 milhões. Não estamos perante a fossa das Marianas.

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Será que o primeiro e último debate da 2.ª volta fará com que essa diferença de um milhão de votos desapareça? Ou, por outro lado, aumente?

Uhh… arriscado perceber qual será a tendência, mas foi um belo combate de esgrima. Le Pen começou de espada em riste a desenhar no ar sempre as mesmas acusações a Macron: “menino querido do sistema”, “anti-França”, “banqueiro”.

Ficou logo claro de início por que trilhos iam caminhar os dois candidatos:

  • Le Pen o mais fora dele possível, colocando Macron bem no meio do “sistema” que diz querer combater;
  • E o próprio Macron, calmo mas assertivo, enfiado numa espécie de camisa de forças feita de racionalidade para evitar um duelo sangrento.

Durante os primeiros minutos Le Pen não saiu da linha: “O senhor é parte do problema, da banca, que defende os ricos”, disse Le Pen, acusando Macron de não criar empregos quando foi ministro da Economia de François Hollande.

(O desemprego continua, teimoso, nos 10% apesar de Hollande ter colocado na sua redução o peso de todo o seu sucesso, ou fracasso, na Presidência).

“O senhor fez a única coisa que sabe fazer: ajudou as multinacionais, não tem nenhum espírito nacional, apenas apoia interesses estrangeiros”, atirou ainda Le Pen a Macron, que fez carreira no banco privado Rothschild.

Mas as acusações de ser “de dentro do sistema” também se viraram contra ela: Macron disse que tem uma carreira política bastante curta. Quem é “herdeira” política é ela, filha de Jean-Marie Le Pen, o líder histórico da Frente Nacional. “Uma parasita”, criticou.

Portanto, acusações foram disparadas dos dois lados.

Entre muitas interrupções — “Deixe-me falar!”, “Eu não estou a falar tanto quanto ela!” — Macron foi o primeiro a virar-se contra os próprios moderadores: “Eu já vou responder mas vou primeiro refutar as estupidezes dela!”

E propostas concretas? Macron diz que irá criar poupanças orçamentais de 60 mil milhões para que a França possa respeitar o Procedimento por Défice Excessivo da União Europeia (máximo de 3%). Promete investimentos públicos nos próximos cinco anos: 50 mil milhões de euros para medidas ambientais, inovação digital e infrastruturas públicas.

Le Pen por seu lado voltou à carga com o seu soundbite preferido: “proteccionismo inteligente”. E o que é isso? É taxar as importações, dar prioridade às empresas francesas na adjudicação de projetos públicos, sair da Europa para que os agricultores possam produzir à vontade. Criar emprego como? — pergunta Macron. E Le Pen responde com uma nova acusação: “O senhor só vai ajudar empresas estrangeiras”. Já tínhamos ouvido isto e Macron defendeu-se pedindo a Le Pen: “Senhora Le Pen fale do seu programa, não do meu”.

A segurança e o terrorismo: duas visões, dois mundos

As acusações mútuas continuam — e pioram — quando abrimos a pasta terrorismo e imigração. O deck de cartas de Le Pen nunca mais acaba, é uma lição estudada. “O terrorismo está completamente ausente do [seu] programa”, acusou Le Pen. Mais: o candidato do “Em Marcha!” tem sido “complacente com o terrorismo islâmico”, acusou. Para Le Pen é preciso “fechar as mesquitas salafistas”, “expulsar imediatamente os estrangeiros nas listas de vigilância” e “tratar a radicalização dentro do sistema judicial”. Fechar as fronteiras “imediatamente”, para impedir que a França, a sua cultura e sua segurança, estejam em risco.

Mas Macron tem resposta na ponta da língua — e é uma que o afasta muito Le Pen. Correu o risco de dizer que a responsabilidade pela radicalização dos jovens que “muitas vezes nasceram em França” também “é responsabilidade da França porque “hoje em dia a [nossa] economia não dá lugar a todos os jovens” e é “preciso examinarmos as [nossas] consciências”. O que encoraja os terroristas, disse ainda Macron, “é insultar os franceses e tentar dividi-los”.

A palavra mais repetida neste segmento foi “prevenção”, a solução preferida por Macron que pode parecer um pouco “de menos” sendo que o terrorismo se tornou uma das principais preocupações dos franceses, a par com o desemprego. Fechar as fronteiras, no entender de Macron é “absurdo”. O candidato diz que quer criar uma força de cinco mil guardas fronteiriços, tornar a fluência em francês na principal qualificação para obter nacionalidade e e oferecer aos líderes e associações religiosas mais informação sobre os valores seculares franceses.

Num dos momentos mais crispados do debate, a candidata da Frente Nacional tentou contaminar a candidatura de Macron com as ligações ao “fundamentalismo islâmico”, isto porque o candidato recebeu o apoio da UOIF (Union des Organisations Islamiques de France). No entender de Marine Le Pen, Emmanuel Macron está “apenas à espera do próximo ataque”.

Um parêntesis de Le Pen, fará vários ao longo do debate, para chamar a Macron “Hollande Junior”. Macron está irritado com este rótulo, Le Pen ri-se com vontade perante o ar sisudo do candidato centrista que, de facto, desertou do Governo de Hollande para seguir o seu próprio caminho, apesar de o ainda presidente francês ter dito várias vezes que o via como um aliado seguro. “Macron c’est moi”, chegou mesmo a dizer, dando, possivelmente sem antever este frente a frente, armas a Le Pen. Tipo um Gustave Flaubert e sua Madame Bovary.

Europa, o Euro e a zona escorregadia para Le Pen

Se o seu fulgor nacionalista e sua facilidade em colocar-se como a única pessoa preocupada o suficiente com a França para abandonar o “políticamente correto” deixaram Macron um pouco apagado neste capítulo da segurança e do terrorismo, já a questão do euro permitiu ao ex-ministro da Economia brilhar um bocadinho.

“Quer tirar-nos do euro ou não?”, questionou o candidato perante a hesitação de Le Pen. A resposta voltou a entroncar no discurso de sempre da candidata nacionalista: “o euro é a moeda dos bancos. O franco é a moeda do povo”, disse Le Pen. No entanto, Marine Le Pen falou da manutenção de uma “moeda comum” — sem explicar de forma clara se defendia o regresso da moeda nacional francesa (o franco) e a co-existência desta com o euro durante um período de transição.

Macron, por seu lado, explorou esta falta de clareza e afirmou que a moeda nacional francesa, caso a medida proposta por Le Pen avançasse, perderia 20% do seu valor.

Macron continuou a pressionar Le Pen: “Um agricultor compra a mercadoria em euros e paga aos seus trabalhadores em francos? Como é que isso se faz? É que os outros países vão continuar com o euro”. Le Pen responde dizendo que todos os outros países também voltariam a ter uma moeda própria para choque de Macron que, como se tivesse deixado de ser capaz de pestanejar, lhe pergunta: “Vai decidir pelos outros dezanove países da zona euro?”. Le Pen não desarma: “Será esse o objetivo da minha negociação”.

Um saltinho do ecrã da tv para o do computador e para as redes sociais permite perceber a reação de muitos dos utilizadores que seguiam o debate: “ainda bem que as crianças já foram para cama”, resumiu um jornalista do Politico Europe.

Depois de prometer um referendo à União Europeia, finalmente acenado com o “Frexit”, Le Pen inventa um novo insulto: o de extremista europeísta. Mais um carimbo em Macron para utilizar mais vezes.

A postura combativa de Le Pen levou o Le Monde a titular já depois do debate: “A fraqueza do favorito”, enquanto o Libération escrevia “Frente baixa”. Os constantes ataques de Le Pen a Macron também provocaram alguns comentários aos artigos dos vários jornais europeus onde se falava da falta de “cariz governativo” da Frente Nacional e da sua líder — que suspendeu o seu papel de presidente até ao fim das eleições.

No fim da secção “euro”, Le Pen assina uma das frases mais marcantes da noite: “A França será governada por uma mulher de qualquer forma, ou eu ou Angela Merkel”. Macron preferiu utilizar mais uma oportunidade para mostrar que não cai nas armadilhas de Le Pen e disse que a Chanceler alemã era uma líder visionária. Lá bem-educado ele é, resta saber se é de boas maneiras que os eleitores franceses se sentem em falta.

Tempo ainda, claro, para os russos e para Donald Trump

Macron vai colaborar com os Estados Unidos de Trump mas “quando o assunto é Putin” tenta utilizar a pista russa contra Marine Le Pen. “É preciso respeitar o processo [das sanções] na Ucrânia”, começa por dizer. E promete que não será “subserviente” a Putin. “É essa a maior diferença entre eu e Marine Le Pen”, acusou, referindo-se ainda aos polémicos empréstimos que Le Pen terá pedido a bancos com ligações ao Kremlin.

Le Pen assumiu as suas preferências: “Num mundo em mudança, que está a tomar decisões que são muito diferentes das suas, estou em melhor posição ao lado da India de Modi, dos Estados Unidos de Trump ou da Rússia de Putin”, disse Le Pen. A candidata fez ainda referência a “Les Uns et les Autres”, sem se alongar. Será porque o sucesso de Karl Kremer como pianista só se consolida com os elogios de Hitler e que isso o atormenta para a vida toda?

Nas alegações finais, Le Pen voltou a tentar colar Macron ao islamismo e Macron voltou a pedir para ela parar com os ataques e apresentar um programa. Lembrando que “a França foi um dia a Luz do mundo”, Macron disse que recusa a visão obscurantista do futuro que, no seu entender, é o que partido de Le Pen propõe. Enquanto ele falava, Le Pen ia atirando, bem alto, frases como “Sim, claro, e tudo isso feito com socialistas!”, “Muitos socialistas, todos os deputados socialistas!”.

Da mesma forma como apareceu, depois de uma tempestade perfeita que engoliu os candidatos favoritos do sistema centro-direita François Fillon e Alain Juppé, Macron também pode desaparecer debaixo do peso de uma revolta que a Europa teima em menosprezar. Assim foi com o Brexit e com Donald Trump. Apesar da cacofonia contra Le Pen que se apoderou das ondas da rádio em França, a subida das opções nos extremos — Mélenchon também é um extremo e teve uns surpreendentes 20% dos votos na primeira volta — são uma realidade por toda a Europa.