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Marco Orelhas, o jogador mais temido do Canelas que já foi benfiquista ferrenho

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Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Marco Orelhas, do Canelas FC, chocou o mundo ao partir o nariz a um árbitro. Começou num bairro difícil e aprendeu a jogar no duro. Relatos dos tempos em que este Super Dragão sofria pelo Benfica.

“Futebol de bairro é mesmo assim, caralho! Se é para ir, é para ir com tudo!”

São estas as palavras que Carlos Boa Nova, 38 anos, usa para definir a grande paixão que partilha com Marco Gonçalves, também conhecido como Orelhas. Fala, claro, de futebol. Em particular daquele que os dois amigos aprenderam a jogar desde novos. Ou seja, o futebol do até-ao-pescoço-é-canela, do só-é-falta-se-fizer-sangue, o futebol jogado no pátio do bairro, o futebol que se arrasta horas e horas até a mãe gritar pela janela de casa “olha que a sopa já está fria!”. E, também, o futebol que se jogava no Futebol Clube Cerco do Porto, o antigo clube (terminou em 2012) de um dos bairros mais problemáticos do concelho portuense. Foi ali, naquele relvado à porta do bairro, que Marco Gonçalves jogou grande parte da sua carreira, desde os escalões de formação aos anos de sénior.

É desses tempos que Carlos Boa Nova e Marco Gonçalves, antigos vizinhos no bairro do Cerco, no Porto, se conhecem. O facto de Carlos Boa Nova ter mais quatro anos do que o jogador do Canelas, que ficou mundialmente conhecido por agredir um árbitro de forma brutal, não impediu que fossem amigos. E, já agora, não é o facto de o número 10 do clube de distrital ser o jogador mais temido do futebol português que os impede de continuarem amigos.

Apesar de ter ficado mundialmente conhecido por aquilo que fez com a camisola do Canelas FC 2010, Marco Gonçalves jogou grande parte da sua carreira futebolística no Futebol Clube Cerco do Porto, no bairro onde nasceu. Fomos conhecer o seu percurso no clube que o viu nascer.

Toda a gente neste largo, que é um dos mais frequentados deste bairro de má fama e que fica mesmo em frente do local onde Carlos Boa Nova e Marco Gonçalves cresceram, viu o vídeo de Orelhas a bater num árbitro. Tudo se passou num jogo entre o Rio Tinto e o Canelas FC 2010. Se o Rio Tinto se assemelha a tantas outras equipas de bairro, o mesmo não se pode dizer do Canelas FC 2010. Aqui, o 11 inicial é praticamente composto na sua totalidade por membros da claque do Futebol Clube do Porto, os Super Dragões. O seu estilo violento, tanto em lances como em escaramuças que se arrastam ao longo das partidas, tornou-os na equipa mais temida do futebol distrital. A fama, que pode ser atestada em vários vídeos, levou a que as equipas rivais deixassem de comparecer aos jogos com o Canelas — alegando que preferiam perder e pagar multas por falta de comparência do que ter de enfrentar aquela equipa. Entre os seus jogadores mais conhecidos está Fernando Madureira, mais conhecido por Macaco, líder da claque e capitão da equipa. E, claro, Marco Gonçalves, ou Orelhas, atualmente o número dois na claque.

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É dele que se fala e a crueza dos seus gestos dispensa adjetivos e não merece mais do que uma descrição simples. Do bairro do Cerco à Turquia, do distrito do Porto à imprensa brasileira, todos viram o que se passou.

Depois de ter agredido um adversário durante um lance, Marco levou um cartão vermelho direto ao segundo minuto de jogo. Insatisfeito com a decisão do árbitro, agarrou-lhe na cabeça, vergou-o à altura da sua cintura e depois deu-lhe uma joelhada em cheio no nariz, que ficou partido em três partes. No final, o número 10 do Canelas FC 2010 foi levado pela polícia para fora do campo. No dia seguinte, foi a tribunal e o juiz deixou-o com termo de identidade e residência. Numa tentativa de gestão de danos, o Canelas FC 2010 expulsou-o do plantel.

“O que ele fez não tem desculpa”, começa por dizer Carlos Boa Nova. “Não se pode fazer aquilo, é indesculpável.”

Ainda assim, pouco depois de dizer estas palavras, Carlos Boa Nova não deixa de demonstrar que é amigo de Marco Gonçalves. E, como os amigos por vezes fazem com aqueles de quem mais gostam, acaba por desculpar o indesculpável. O amigo de Orelhas aponta malícia ao árbitro, “que já estava feito para expulsá-lo”. Depois, aponta suspeitas para o defesa central do Rio Tinto, que agrediu “de certeza porque foi provocado”. Por fim, passa as culpas para “a comunicação social, que só quer é humilhar o Marco e fazer dele um bode expiatório”.

Porém, a desculpa principal que Carlos Boa Nova evoca para justificar o ato do seu amigo e antigo vizinho é aquela que remete para o início deste texto e para os anos de infância neste pátio e outros campos: “Futebol de bairro é mesmo assim, caralho! Se é para ir, é para ir com tudo!”.

Pedro "Chinita" Nascimento e Carlos Boa Nova são amigos de infância de Marco "Orelhas" Gonçalves — e acreditam que ele é vítima de discriminação

Carlos Boa Nova explica a ideia de forma simples: “Num bairro como o nosso, um gajo tem de ser agressivo para ser respeitado”. Esta é uma máxima que se aplica tanto dentro das quatro linhas como fora delas. “Aqui só consegues as coisas assim, tens de ser mais agressivo do que os outros, tens de saber desenrascar tudo”, diz, com a voz alta. “Nós somos obrigados a fazer mais pelas coisas do que as outras pessoas que não têm este modo de vida”, garante. “E a maneira como nós vivemos a vida acaba por ser a maneira como vivemos o futebol.”

O tom alto de Carlos Boa Nova permite que este seja ouvido por vários dos convivas desta tarde soalheira, que abanam a cabeça em consentimento. Um deles é Pedro Nascimento, mais conhecido por Chinita, que tem 38 anos. Também ele jura a pés juntos que o número 10 do Canelas, também seu amigo de infância, “não faz mal a ninguém”. Ao Observador, garante que o vídeo que mostra a sua agressão ao árbitro “não conta a história toda”. “Como é que a gente sabe o que é que o defesa-central [do Rio Tinto] lhe disse? E o árbitro é um anjinho?”, questionou.

Chinita tem a certeza: alguma coisa terão dito a Marco Gonçalves para ele reagir daquela maneira. E, na sua perspetiva, um “filho da puta” ou “vai para a puta que te pariu” basta para explicar aquela reação. Também isto, garante, se explica com a vivência do bairro. “A minha mãe matou-se a trabalhar para dar comida a todos nós, depois de o meu pai ter desaparecido”, conta, com voz alta de orgulho na progenitora. “Ela teve nove filhos! Nove! E às vezes ainda iam lá comer mais pessoas. Quando havia para todos, era porque ela se matava para haver. Quando falhava, era porque não tinha mesmo como dar”, conta. “Como é que eu posso ter passado por isto e depois admitir que alguém me chame filho da puta? Mãe há só uma e se tocam na minha levam. Se alguém me disser para ir para a puta que me pariu de certeza que sai daqui numa ambulância e fica a comer papas durante três meses.”

Também ele é amigo de infância de Marco Gonçalves — e também ele acredita que ser do bairro do Cerco é uma cruz que carregam sempre que saem de lá. Um caso flagrante disso, recorda Chinita, foi a dificuldade com que encontrou trabalho.

Ao todo, garante, foram quatro anos de procura incessante mas infrutífera. Apesar de ter carta de ligeiros e também de pesados, os empregadores acabavam sempre por não o chamar. “Há uma vez de que eu nunca me esqueço, em que eu fui a uma entrevista de emprego, falei com eles, eles gostaram da minha conversa e correu tudo bem. Disseram que me ligavam na semana seguinte”, resume. Mas a história continua: “Depois saí de lá e, quando ainda não tinha sequer chegado a casa, ligaram-me logo”. Do outro lado do telefone, disseram-lhe que “afinal já houve outra pessoa que ficou com o lugar”. Chinita não tem dúvidas: o facto de ter colocado “Bairro do Cerco” na morada foi determinante para aquele fracasso. Ficou ainda mais convicto dessa discriminação quando, na entrevista de emprego seguinte, colocou apenas a rua, o número do bloco e da porta. Dessa vez, “Bairro do Cerco” foi coisa que não escreveu — e no final lá lhe ligaram a dizer que estava contratado.

“Eu sou cinco ou seis vezes pior do que o Marco!”

Márcio Felício entra pelo pátio, em frente ao bloco que viu Marco Gonçalves crescer, totalmente vestido de azul. As calças de trabalho são exatamente do mesmo tom da camisola de mangas compridas do Futebol Clube do Porto. Márcio, de 33 anos, acaba de chegar do trabalho. A montagem de andaimes enche-lhe o prato — mas o futebol é que lhe enche a alma. Desde novo, jogou lado a lado com Orelhas. Márcio e Marco eram uma boa dupla, não só pela aproximação fonética dos seus nomes. Márcio jogava a médio avançado, com a função de distribuir jogo. Marco, ponta-de-lança, recebia as bolas de Márcio e chutava para dentro.

Do seu colega Marco Gonçalves, destaca um jogador “muito rápido”, um lutador que “nunca desistia de um lance”. Em termos de atitude, fala de um “jogador calmo” e “responsável”. Outro amigo, Rui Maia, tatuador de 34 anos, foi seu adversário. Era guarda-redes e mesmo quando tinha um rapaz de 12 anos pela frente, sentia que os chutos eram de um homem feito. “Ele rematava cá com uma força!”, recorda o seu antigo adversário. “Mas fomos sempre amigos.”

Para defender o amigo e antigo colega de equipa, Márcio rebaixa-se a si próprio. “Eu sou cinco ou seis vezes pior do que o Marco!”, garante. “O meu jogo é pior, é bem pior do que o jogo dele. Aquilo não é nada.”

Márcio joga numa equipa amadora, que faz parte de uma divisão inferior à do Canelas. Ali, garante, é que o futebol é verdadeiramente agressivo. O alvo é sempre o mesmo e Márcio di-lo sem reservas: “Os filhos da puta dos árbitros”. A prática é mais ou menos esta: “Nós passamos o jogo a pressionar o árbitro, damos-lhe pontapés, se for preciso fodemos-lhes o focinho todo”.

"Eu sou cinco ou seis vezes pior do que o Marco! O meu jogo é pior, é bem pior do que o jogo dele. Aquilo não é nada."
Márcio Felício, 33 anos, amigo e antigo colega de equipa de Marco Gonçalves

As palavras de Márcio não são em vão: recentemente, esteve suspenso durante um ano e meio. O caso deu-se durante um jogo em que, dirigindo-se para um apoiante da sua própria equipa que estava a barafustar contra o árbitro, se virou para a bancada e disse: “Deixem-nos jogar em paz”. Segundo conta Márcio, o árbitro deu-lhe imediatamente amarelo, por se dirigir para o público. E ele não gostou. “Então eu quis ajudá-lo e ele dá-me amarelo?!”, questiona, ainda com a ferida por sarar. “Mandei-lhe logo um pontapé nas pernas, ele caiu ao chão e depois deu-me vermelho.”

Márcio detesta árbitros. Diz que alguns têm “sorrisos maléficos” para os jogadores. Acredita que eles “decidem os jogos” e que “sabem muito bem como é que podem queimar um jogador”. Em suma, não respeitam os atletas. “Então a gente está ali a dar o nosso coração e o nosso esforço e eles vão ali para roubar?!”, pergunta.

Sobre a agressão de Marco Gonçalves ao árbitro no jogo do Canelas FC 2010 com o Rio Tinto, Márcio admite que “aquilo não se deve fazer”. Mas também está convencido de que o seu amigo está a ser “vítima de uma conspiração”. Além dos árbitros, acredita que é a comunicação social que está por trás de toda esta história. “Eu lembro-me de o João Pinto ter mandado um murro a um árbitro no mundial e ninguém fez nada com ele!”, queixa-se. “E ele hoje está na Federação [Portuguesa de Futebol]!”

Marco Gonçalves, também conhecido como Orelhas, num treino do Canelas FC 2010 em novembro de 2016 (Ricardo Castelo / Observador)

Ricardo Castelo/Observador

O maior desagrado em relação aos media vai para o Correio da Manhã, que escreveu na edição de 5 de abril que Marco Gonçalves é “filho de uma conhecida traficante de droga do bairro do Cerco que está a cumprir nove anos de cadeia”. Segundo os vários contactos que o Observador fez naquele bairro, a mãe de Marco esteve presa por tráfico de droga durante a adolescência do filho. Porém, atualmente encontra-se em casa, doente com um cancro.

Márcio conta que “infelizmente ela está mais para lá do que para cá”. “E se lhe acontecer alguma coisa, se ela ficar com o coração acelerado por tudo o que estão a fazer ao filho dela, então vão ter de assumir responsabilidades”, garante.

Também o mesmo jornal refere que, em 1999, quando Marco Gonçalves teria 17 anos, foi apanhado com 0,65 gramas de haxixe. Para os seus amigos, isto é um facto que merece apenas risos de desprezo. “Isso não é nada! Falam disso como se fosse grande coisa mas não é. Isso é um finex!”, garante Chinita, que se levanta e aponta em redor. “Se a polícia viesse aqui e quisesse prender todas as pessoas com uma dose dessas, então toda a gente que está aqui ia presa!”, diz. Ri-se Chinita e ri-se Carlos Boa Nova, que explica o contexto do bairro do Cerco: “Eu por acaso até não fumo, mas isso aqui é normal. Nós fumamos ganza como as pessoas da Foz bebem um café!”.

Além disso, foi noticiado que também participou num tiroteio no bairro do Cerco em 2004 — Carlos Boa Nova conta outra história e diz que dispararam contra o seu amigo, sem acertar nele, e que este se limitou a esconder-se — e também que este tinha trabalhado para a SPDE, a empresa de serviços de segurança privada que operava sem licença e que o Ministério Público apurou na Operação Fénix ter ligações aos Super Dragões e a membros do Futebol Clube do Porto.

De uma maneira ou de outra, os amigos de Marco Gonçalves acreditam que ele está a ser tramado. “O árbitro não é santo e o vídeo não conta a história toda!”, resume Márcio.

Um jogador “maldoso” que era “benfiquista ferrenho”

Para Américo Nogueira, a história já estava toda contada. Aos 65 anos, este operário da construção civil na reforma guarda o tempo para as duas causas que mais o fizeram mexer durante a vida: as associações de moradores e o futebol. É no bar da Associação de Moradores de Tirares que o encontramos, atrás do balcão. Alto e de ombros largos, foi em tempo guarda-redes de vários clubes, com destaque para o Leixões. Hoje em dia, é treinador dos guarda-redes do Pedrouços.

Antes de se dedicar apenas ao treino da posição mais recuada no campo, chegou a treinar a equipa inteira. Foi isso que fez no Futebol Clube Cerco do Porto — e foi lá, naquele clube de azul e branco e filial do maior clube da cidade, que teve de lidar com Marco Gonçalves.

Américo Nogueira cruzou-se duas vezes com Marco Gonçalves. Na primeira, era seu treinador e expulsou-o. Na segunda, era seu adversário e temia-o.

Não guarda boas memórias dele e dos anos em que o treinou, no escalão dos juvenis. “O Marco era um jogador muito agressivo, que nunca foi grande coisa tecnicamente”, assegura. “Tudo bem que era valente, era um tipo valente que era capaz de meter a cabeça onde os outros metiam os pés”, contrapõe. Mas isso de nada lhe servia, garante: “Ele nunca soube controlar a agressividade que tinha ou pelo menos usá-la de uma maneira mais positiva. Foi sempre um jogador maldoso”.

Marco Gonçalves acabou por estar apenas um par de meses na equipa de Américo Nogueira. O corte deu-se num jogo contra o Futebol Clube do Porto, no Campo da Constituição. Segundo recorda o seu antigo treinador, ele estava particularmente agressivo nesse jogo. Apesar de ser ponta-de-lança, quando lhe competia defender fazia-o de forma desmedida, com “entradas à margem das regras”. Além disso, “insultava tudo e todos”, à exceção dos colegas de equipa. Marco viu um amarelo e o treinador tirou-o do jogo ainda antes do intervalo.

"O Marco era um jogador muito agressivo, que nunca foi grande coisa tecnicamente. Tudo bem que era valente, era um tipo valente que era capaz de meter a cabeça onde os outros metiam os pés. Só que ele nunca soube controlar a agressividade que tinha ou pelo menos usá-la de uma maneira mais positiva. Foi sempre um jogador maldoso."
Américo Nogueira, ex-treinador de Marco Gonçalves no Futebol Clube Cerco do Porto

O jovem deveria ter cerca de 16 anos. Era um rapaz que alguns descrevem como “revoltado”. Além de ter a mãe atrás das grades, o pai já tinha morrido há anos. Em casa, era criado pelas irmãs, todas mais velhas. A maior parte da educação, asseguram aqueles que o conheciam então, era feita na rua, com o resto dos rapazes. Nalgumas ocasiões, essa “revolta” falava mais alto. E assim foi, com Marco já no banco. Incapaz de atacar os da própria equipa, lançou-se numa chuva de insultos a um dirigente do Futebol Clube do Porto, a equipa rival. “Chamou-lhe de tudo”, lembra-se Américo Nogueira. “Foi nome atrás de nome, era muito revoltado.”

Américo Nogueira expulsou Marco Gonçalves da sua equipa. Não era a primeira vez que o fazia a um jogador. Outros a quem aconteceu o mesmo chegavam a ir a casa do treinador, em lágrimas. “Vinham chorar para a minha beira, pediam desculpa e eu lá os deixava voltar”, recorda. Com Marco Gonçalves, não houve sequer oportunidade para isso acontecer. O clube, sabendo que ele estava a meses de se tornar júnior, deu-lhe a oportunidade de se juntar ao escalão superior antecipadamente. “Eu fiquei chateado com essa decisão na altura, porque achava que o estavam a premiar quando ele devia era ser castigado”, recorda Américo Nogueira. Pouco tempo depois, deram-lhe razão: o treinador dos júniores afastou-o da equipa por mau comportamento em campo.

Mas há aqui ainda um outro elemento, que causa surpresa em quem o ouve e algum gozo em quem o revela, que também pode ajudar a explicar o tom então usado por aquele adolescente para falar com o dirigente azul e branco no Campo da Constituição: é que Marco Gonçalves, que hoje em dia é o número dois dos Super Dragões, era na altura um “adepto ferrenho” do Benfica.

Quem conta esta história não são os amigos de Orelhas, mas sim os antigos treinadores de Marco e outras pessoas do bairro que se recordam dos seus anos mais distantes. “Ele era doente pelo Benfica”, recorda Elvino Monteiro, que treinou Marco nos iniciados. “Hoje em dia, se alguém lhe disser que ele era do Benfica ele manda-se aí pelo ar, mas era mesmo!”, garante.

Elvino Monteiro, antigo treinador de Marco Gonçalves, diz que até perto da idade adulta “ele era doente pelo Benfica”

A mesma história é confirmada por António Figueiredo, antigo dirigente desportivo do Futebol Clube Cerco do Porto. “Ele andava aí com a camisola do Benfica pelo bairro”, assegura. “Metia-se com os outros, defendia o Benfica, era ferrenho!”

Américo Nogueira acredita que a mudança de clube se fez “lá para os 17 ou 18 anos”. “Foi quando ele começou a conhecer os tipos dos Super Dragões e então começou a perceber que podia tirar dali alguma coisa”, garante, num dos poucos momentos em que ri durante a conversa sobre um jogador que recorda como “problemático”.

Também Elvino Monteiro fala de alguns problemas, embora os recorde com maior ligeireza. Um dia, já depois do jogo, recorda-se de que o massagista chegou a correr ao balneário. “Os miúdos deram cabo da carrinha!”, dizia-lhe, muito alarmado. Quando saiu porta fora, Elvino Monteiro viu a carrinha do clube estampada contra um muro. Lá dentro, estava Marco Gonçalves e outros dois colegas da equipa. “Era dos mais mal comportados”, diz. Tanto quanto o antigo treinador se lembra, a carrinha ficou amolgada — e a brincadeira só não acabou da pior forma porque o muro era robusto o suficiente para não ceder ao impacto da carrinha, que desceu quatro metros até ao impacto. “Se calhasse o muro ser mais fracote, a carrinha tinha caído por uma ravina abaixo”, diz.

Na altura, Elvino Monteiro dava-lhe um desconto proporcional à idade de iniciado — 13 e 14 anos. Mas, agora, acredita que o que se via naqueles anos — não raras vezes, já naquela idade, Marco Gonçalves perdia a paciência com os árbitros e agredia adversários — foi apenas o preâmbulo para o que hoje é o número 10 do Canelas FC 2010. “Ele era malandro, era! E continua a ser. Tanto que deu nisto.”

“Antes de jogar com o Canelas, passámos a semana todos cagadinhos”

Anos depois de ter expulsado Marco Gonçaves da sua equipa, o seu antigo treinador de juvenis teve um novo encontro com ele. Desta vez, Marco alinhava já pelo Canelas FC 2010 e Américo Nogueira orientava os guarda-redes do Pedrouços. Ao longo desses anos, houve coisas que não mudaram: Américo Nogueira continuava a reconhecer em Marco a rebeldia e agressividade do rapaz adolescente de outrora. Ainda assim, uma coisa tinha mudado obviamente: o corpo de rapaz alto e franzino deu lugar a um homem robusto, altamente musculado, ostentando uns ombros que farão qualquer um pensar duas vezes dentro de campo.

O último jogo entre o Pedrouços e o Canelas FC 2010 deu-se em outubro de 2016 — foi a penúltima partida até todas as equipas daquela competição decidirem boicotar os jogos com o clube capitaneado pelo líder dos Super Dragões. Antes desse jogo, o clima no balneário do Pedrouços era de ansiedade. “A equipa deles é feita de homens que fazem a vida na noite, enquanto os nossos jogadores são chefes de família que fazem do futebol um hobby“, explica. “Antes de jogarmos com o Canelas, passámos a semana todos cagadinhos. Não era medo que tínhamos, mas era receio de que as coisas pudessem descambar.”

E descambaram. O resumo do jogo, disponível no Youtube, é uma sucessão de casos de violência e intimidação dentro e fora de campo. Marco Gonçalves faz parte de um desses momentos, como pode ser visto a partir do minuto 1:35 — depois de um fora de jogo questionável, o número 10 do Canelas FC 2010 corre de forma intimidatória para o fiscal de linha, ladeado por dois colegas de equipa. Ao minuto 2:30, na sequência de uma discussão entre um jogador do Canelas FC 2010 com um elemento da equipa técnica do Pedrouços, os adeptos do clube dos Super Dragões foram em massa para trás do banco da equipa adversária. Perante o olhar passivo da polícia, em minoria, insultam e ameaçam os elementos do Pedrouços. Alguns, chegam a esmurrar o banco desta equipa. Ao minuto 7:30, depois de sofrer uma falta dura, um jogador do Canelas FC 2010 pontapeia o jogador que o rasteirou.

Além disso, Américo Nogueira dá conta de outro incidente que as câmaras não mostram. Marco Gonçalves foi substituído ao intervalo — curiosamente, tal como tinha acontecido no jogo em que foi expulso dos juvenis do Futebol Clube Cerco do Porto — e não gostou da opção do treinador. Como já era seu hábito de jovem, acabou por canalizar essa raiva para os árbitros e para a equipa adversária. “Andou a provocar tudo e todos, gritava coisas para o nosso lado”, recorda. “Fartou-se de bater na parede do banco, que é de fibra. Acho que até chegou a partir aquilo.”

Américo Nogueira conhece bem os meandros do futebol distrital do Porto. Aqui, bairrismo e futebol caminham lado a lado. Por isso, o treinador reconhece alguma razão nas palavras dos amigos de Marco Gonçalves quando dizem que a dureza do futebol no Cerco é para ser igual à dureza da vida naquele bairro. Carlos Boa Nova, recorde-se, dizia que no “futebol de bairro (…) é para ir com tudo”. Ainda assim, Américo Nogueira não quer ir tão longe quanto isso.

“É verdade que é um pouco mais agressivo e que isso faz parte”, concede. “Mas a essência do futebol não é isso. Eles é que trouxeram essa agressividade muito grande para um jogo que assim deixa de fazer sentido.”

Enquanto treinador dos juvenis do Futebol Clube Cerco do Porto, tentava incutir um conjunto de valores aos jogadores do bairro. “Havia sempre miúdos com uma situação complicada”, reconhece. “Miúdos que não tinham a educação necessária em casa e que nós tínhamos de fazer de treinador e de pais.” Nas conversas que tinha com os jovens que iam para lá das quatro linhas, tentava dar-lhes pistas para a vida adulta. “Demonstrávamos que havia caminhos de vida bons e que há maneiras dignas de viver a vida”, explica.

“Nós conseguimos demonstrar isso a 90% deles. Com 90%, tivemos sucesso”, diz. “Depois há os 10%. O Marco faz parte deles.”

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