A palavra “sexismo” era esperada no decorrer da entrevista, “violação” nem por isso. Na passada quinta-feira, a premiada jornalista de gastronomia Maria Canabal esteve em Portugal para participar na palestra “Mulheres com Tomates”, onde também estiveram a chef Marlene Vieira, a jornalista Alexandra Prado Coelho e a presidente da Adega Mayor Rita Nabeiro, entre outras convidadas. Mas antes das oito mulheres — contando com a moderadora — se sentarem à mesa na Second Home, em Lisboa, o Observador esteve à conversa com Canabal.

Maria Canabal, que trabalha para publicações como Monocle e The World’s 50 Best, diz, sem rodeios, que existe sexismo nas cozinhas e garante conhecer casos de jovens mulheres que foram violadas em cozinhas francesas, país onde a gastronomia brilha mais alto. Aquela que foi eleita “a mulher mais influente da gastronomia” em 2015, pela Foundation Woman’s Week, conta ainda que as vítimas ficam em silêncio com medo de represálias, mesmo numa altura em que o “Efeito Harvey Weinstein” tem feito cair nomes poderosos.

A fundadora e criadora do Parabere Fórum, uma plataforma global e um evento anual criado para ajudar a valorizar o papel da mulher na gastronomia, deixa claro que não tem nada contra os homens e que apenas quer trazer equilíbrio a uma indústria que conhece muito bem e tentar emendar os excessos numa receita que deveria ser de sucesso.

Aos 50 anos, Maria Canabal vive e trabalha em Paris, Madrid e Copenhaga. @ Divulgação

Fundou e é presidente do Parabere Fórum e está em Portugal para participar na conferência “Mulheres com Tomates”. Porquê a necessidade de criar e participar neste tipo de eventos?
Porque hoje as mulheres são invisíveis na indústria da gastronomia. Há um sexismo muito grande na cozinha e é importante falar disto. A indústria da gastronomia tem de entender as enormes vantagens de ter homens e mulheres [na cozinha] — as equipas mistas são 40% mais criativas, são muito mais produtivas. Não é normal na cozinha que uma mulher ganhe menos 28% dos que os homens. Inaceitável.

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Disse sem rodeios que há sexismo. É uma coisa com a qual já lidou?
Pessoalmente, sim. Isto não acontece só na cozinha, mas é preciso pensar que em França 55% dos diplomas de cozinha pertencem a mulheres e, depois, não há chefs mulheres reconhecidas.

Como é que se envolveu nesta batalha pela igualdade de género na cozinha?
Sou jornalista de gastronomia. É quase impossível falar de mulheres nas revistas, os editores não querem. Só querem os chefs conhecidos, os homens. Estamos sempre a falar do mesmo e dos mesmos. É muito frustrante para mim, enquanto jornalista. O que é que vou perguntar ao René Redzepi? Já lhe fizeram todas as perguntas do mundo. Mais, os chefs Redzepi ou Alex Atala não precisam de nós. Considero que o meu trabalho é dar a conhecer aos leitores as pessoas que amanhã vão ser o futuro. Os meus editores não querem porque têm de vender o jornal ou a revista, então optam pela segurança. Olhando para o Congresso dos Cozinheiros [que se realiza este fim de semana], os chefs convidados são todos homens, não há uma mulher.

A mulher não vende tanto?
Não.

Onde é que começa o problema?
É um círculo vicioso. Elas não são convidadas para os eventos porque ninguém as conhece, mas ninguém as conhece porque não são convidadas. O nosso trabalho é ir dizer para os congressos que isto não é normal. No século XXI, um congresso com 100% de homens não é normal.

Qual é a base do problema? Às mulheres são dadas menos oportunidades?
O problema é que a mulher, no geral, não é educada como o homem. Esse é o primeiro problema. Os psicólogos chamam a isto de “good girl syndrome”. Temos o síndrome de Estocolmo, o síndrome de Stendhal e o síndrome da “good girl”. Somos educadas na escola para fazer muito bem o nosso trabalho e a não dizer nada. A mulher não está educada para falar e fazer publicidade de tudo o que fez, de tudo o que ganhou. Tem de ser modesta. Com o homem é ao contrário. Eles não precisam de ser modestos.

O segundo problema é que as mulheres [chefs] não encontram investidores porque não são conhecidas. Às vezes, ficam nas cozinhas a aguentar comportamentos absolutamente intoleráveis porque não podem ir para outro lugar, não podem abrir o próprio restaurante porque não têm investidores.

Há uma grande diferença entre a cozinha profissional, dominada por homens, e os clichés da sociedade, isto é, o facto de a mulher estar associada às lides da casa e à própria cozinha. Como vê isto?
Isso depende das culturas. Estamos a falar de uma cultura católica do sul da Europa, que é totalmente diferente da cultura escandinava, por exemplo. Não tem nada a haver com a cultura protestante, é totalmente distinta.

Mas como é que se vive com esta ironia?
Quando perguntamos porque há poucas mulheres nas cozinhas, eles e elas dão respostas diferentes. As mulheres dizem que é porque existe sexismo, uma mentalidade “boys club” e um sistema militar. Os homens vão dizer que é porque é muito duro. A cozinha exige muitas horas ao homem e à mulher. O problema é que a sociedade espera que a mulher se ocupe da casa e dos filhos. Acho importante parar de dizer às mulheres o que elas podem ou não fazer. Elas devem decidir sozinhas.

Está muito na ordem do dia a questão do assédio sexual por causa do “Efeito Harvey Weinstein”. Conhece casos de assédio sexual em cozinhas?
Sim, conheço muitos. Mas é uma pena que os média se interessem nas mulheres chefs [só] por causa disso. As mulheres chefs que conheço nunca tiveram tantos pedidos de entrevistas como agora.

Mas acha que falar sobre isso pode ser uma vantagem para as mulheres ou diminui o papel delas?
Acho que diminui. Acho importante mas, insisto, é uma pena que jornalistas que nunca na vida tenham ligado a mulheres chefs liguem agora.

Conhece casos de assédio graves, chocantes, enquanto jornalista da área?
Sim, há mulheres que são violadas. Mulheres a fazer estágios que são violadas. Não é uma invenção. Não estamos a falar de relatos sobre tocar no peito ou assim, elas são violadas.

E há queixas?
Elas não dizem nada. É muito difícil. Não querem dar a cara. O mundo é tão fechado e tão pequeno que, depois, elas ficam na lista negra. Esse é o problema. São castigadas. Estando na lista negra, não encontram mais trabalho.

Acha que um dia vai acontecer na restauração o que está a acontecer em Hollywood?
Sim, mas…

Não ia surtir efeito?
Em França não. França é o país da gastronomia, a gastronomia é uma coisa sagrada, não se pode dizer nada de mal. Isto tudo seria encoberto muito depressa porque vai fazer mal à gastronomia.

Esses casos que soube, de jovens mulheres violadas, aconteceram em que países?
Em França.

Fala abertamente sobre isso. Imagino que receba muitas críticas…
Sim, mas isso não é um problema. Nós queremos o equilíbrio. “Equilíbrio” é a palavra chave. Não tenho nada contra os homens, mas acho que nós, mulheres, somos a metade da humanidade.

Disse na entrevista que o trabalho que está a fazer agora é algo que ainda vai levar várias gerações a surtir efeito…
A ONU publicou um estudo há cerca de 15 dias a dizer que chegaremos à igualdade em 2234. Queremos mesmo esperar?