Reportagem em Barking, na zona leste de Londres

Por entre agarrões e empurrões, ouviu-se “Eu corto-te a cabeça fora“. Mais do que uma vez. Foi há uns meses, numa farmácia em Barking, o bairro de Londres onde viviam os terroristas que no sábado fizeram o atentado em London Bridge. Um cliente habitual da farmácia, toxicodependente, estava impaciente, à espera na fila, e desatou a gritar impropérios. Sam, funcionário da farmácia, tentou acalmá-lo mas houve alguém, com longas vestes muçulmanas, que o interrompeu, de forma tão assertiva que foi desconcertante: “Pára de dizer asneiras em frente à mulher“, exigiu, referindo-se a outra funcionária que ali estava.

Em poucos segundos, os dois clientes estavam engalfinhados numa luta física que não terá tido grande seguimento mas que, por momentos, pareceu capaz de correr mal. Só esta segunda-feira, quando foram divulgadas as fotos dos terroristas, é que Sam reconheceu o rosto de Khuram Butt — era ele o muçulmano das longas vestes que ameaçou “cortar a cabeça fora” ao outro cliente.

É Sam quem conta a história ao Observador. Lamentavelmente, diz, as imagens da câmara de segurança já foram eliminadas porque só são mantidos os registos dos últimos 30 dias e isto passou-se há mais tempo — caso contrário, já as teria enviado para a polícia. A memória de Sam, porém, conservou o registo de forma vívida — sobretudo porque, num bairro em que os muçulmanos são predominantes, aquele homem tinha uma “presença diferente, destacava-se”. Alguns meses depois, esse mesmo homem, que era conhecido das autoridades, foi morto pela polícia de Londres depois de atropelar e esfaquear, aleatoriamente, dezenas de pessoas na capital britânica.

Sam é o funcionário da farmácia que se cruzou com um dos terroristas de Londres

Ouça Sam a contar como tudo se passou (o registo está em inglês):

Sam, que trabalha na farmácia em Barking, conta como um dos terroristas de London Bridge se envolveu numa luta dentro do estabelecimento, há alguns meses, e ameaçou outro cliente: "Eu corto-te a cabeça fora"

O outro cliente, que originou a confusão, também era muçulmano. Foi, aliás, aí que a discussão verbal se transformou em confronto físico. Irado, o homem que Sam identifica como o terrorista Khuram Butt perguntou ao “paciente” (assim lhe chama Sam) se ele era muçulmano, como que a repreendê-lo ainda mais pela sua conduta. Alguns segundos de agarrões e empurrões e Sam teve de intervir, colocando-se no meio para tentar separá-los. Os dois homens acabaram por passar para o exterior do estabelecimento.

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Lá fora, havia alguns amigos do toxicodependente, o que terá ajudado a que o conflito tenha ficado por ali. Sam diz que, pelo que sabe, os homens separaram-se e seguiram, cada um, o seu caminho. No caminho de um deles, Khuram Butt, viria a estar um ato terrorista, este sábado. O funcionário não tem dúvidas, depois de analisar “em detalhe” a foto divulgada pelas autoridades, que era o mesmo homem.

Khuram Butt tinha 27 anos, tinha ascendência paquistanesa e vivia em Barking.

Sam também é muçulmano, tal como a sua colega — a mulher que Khuram Butt não queria que ouvisse impropérios. A colega de Sam na DayNight-Pharmacy, demasiado tímida para ser fotografada, chama-se Fatima. Nem Sam nem Fatima esqueceram aquele final de dia em que estiveram diante do homem que, veio-se a saber após o ataque, já era conhecido das autoridades mas não era visto como um risco iminente. Khuram já tinha mesmo aparecido num documentário do Channel 4 intitulado The Jihadi Next Door (“O Jihadi que vive na casa ao nosso lado”).

[Veja a fotogaleria abaixo, com imagens da zona onde cresceram e viviam os homens que fizeram o ataque.]

8 fotos

Quem tinha, literalmente, o jihadi a viver na casa ao lado era um português, Renato, que deixou Odivelas e emigrou para Londres há cerca de 15 anos. Renato conhecia Khuram Butt ali do bairro, ainda que não se recorde de alguma vez ter falado com ele além de um ou outro cumprimento — “Todos aqui somos imigrantes, temos aquela coisa de dizer olá. Mas nunca parei para falar com ele”. “Há alguns dias um amigo disse-me que ele andava ali com uns muçulmanos, mas eu achava que seria por causa do Ramadão. Nunca achei que ele andasse a preparar algo como isto”. Ficou, portanto surpreendido? Nem por isso: “Eu sempre soube que havia aqui pessoas um pouco radicais”.

[Veja as declarações de Renato nestes vídeos.]

Segundo Renato, é tudo uma questão de “ideologia” — Nem sequer têm que estar envolvidos em coisas do Estado Islâmico”.

Renato continua:

Khuram, de 27 anos, tinha a alcunha de Abz, no bairro de Barking. No perfil que a imprensa britânica lhe traçou, diz-se que tinha 12 anos quando foi atropelado à porta de casa. Nesse mesmo ano terá encontrado o pai morto, deitado na cama. Enquanto o irmão mais velho se voluntariou para o Exército Reserva do Reino Unido, Khuram radicalizou-se em 2013, juntando-se a um grupo islâmico ultra-conservador.

“Abz” acabou expulso do Centro Islâmico Jabir Bin Zayd por ter interrompido o pregador que estava a discursar sobre a importância de votar em consciência, na época das eleições britânicas. Khuram ter-se-á levantado irritado e aos gritos — e foi expulso.

Um homem traumatizado e o cúmplice mistério. A história dos dois terroristas confirmados de Londres

Uma vizinha do jihadista disse ao Telegraph que Khuram costumava esperar que as crianças saíssem da escola para lhes oferecer chocolates enquanto discursava durante horas sobre o Islão. A vizinha chegou a conversar com ele depois de o filho mais novo ter chegado a casa a dizer que queria ser muçulmano — tinha estado à conversa com Khuram.

Tendo como pano de fundo o carro da polícia que (ainda) está a guardar o edifício onde houve o raide policial no domingo, Renato diz que “muitos muçulmanos, mesmo os que vivem aqui, não se sentem ingleses” e, por isso, são facilmente radicalizados. Conhece muitas pessoas do bairro que “só não estão na Síria porque, porque…”.

Depois de ser invadido por jornalistas de todo o mundo na segunda-feira (após o raide policial e o anúncio da identidade de dois dos atacantes), o bairro de Barking, no leste de Londres, observou o minuto de silêncio que esta terça-feira, às 11h, por todo o Reino Unido, lembrou as vítimas do ataque de 3 de junho. Por causa do mau tempo que se fez sentir durante a manhã, o momento aconteceu dentro (e não fora) da câmara municipal de Barking. A uma só voz, representantes das mesquitas muçulmanas, da Igreja anglicana, do poder local e do parlamento britânico pediram o fim da violência.

Na câmara municipal de Barking, representantes de várias religiões pediram o fim da violência, após o minuto de silêncio observado em todo o país às 11h de terça-feira

Visivelmente emocionado, Mohammed Saleem, um advogado muçulmano que trabalha com mesquitas locais, lamentou que “alguns” tenham dado um mau nome ao Islão, a Barking e a Londres, “uma cidade linda onde nos amamos uns aos outros e vivemos em harmonia”. No discurso que fez após o minuto de silêncio, Saleem falou sobre a altura em que recebeu numa das mesquitas a primeira-ministra Theresa May (então ministra da Administração Interna de David Cameron). “Ela [May] ficou muito impressionada com o trabalho que fazemos, de intervenção na comunidade para fomentar a união entre as pessoas”, conta Saleem.

“Se estes homens fizeram isto a pensar que, nos termos da religião muçulmana, vão para o Céu, estão enganados. Vão para o Inferno por aquilo que fizeram“, afirma Saleem, congratulando-se pela decisão dos líderes religiosos islâmicos de se recusarem a rezar no funeral dos três homens mortos pela polícia no sábado. “Estamos em choque e estamos revoltados por isto ter acontecido, depois de todo o trabalho que temos feito nos últimos anos”, remata.

“A solução para isto? Sair deste país”

Apesar de todo esse “trabalho que tem sido feito”, o ar é pesado em Barking. Quem o diz é Deimante, uma jovem imigrante lituana que garante que só faz duas coisas naquele bairro: dormir à noite, depois de chegar do trabalho (noutra zona da cidade), e tomar um latte, todas as manhãs, num pequeno e charmoso café cujo interior nos transporta para um speakeasy nova-iorquino mas que, na realidade, fica numa pequena loja da confusa estação de comboios de Barking.

“Tomo um café em casa, antes de sair, mas acabo sempre por entrar aqui antes de apanhar o comboio e ir para o trabalho, não sei porquê”. Nós também não sabemos, até que percebemos que a empregada do café também é lituana — as duas trocam palavras na sua língua materna. Aí, a rotina matinal de Deimante começa a fazer algum sentido.

Deimante não esconde algum desencanto com a vida, por viver naquela zona. Mãe solteira, com dois filhos, tem um namorado muçulmano, de quem sente pena porque sabe que é vítima do preconceito e do racismo que cresce, a cada ataque. “Ó sim, basta ir às redes sociais e leio tanta coisa horrível…”, diz. Mas “é fácil perceber porque é que as pessoas estão com medo: é impossível saber o que o vizinho do lado andará a aprontar, no meio de tanta gente que ali vive no bairro”, nota.

E qual é a solução para o problema do extremismo? “A solução?“, pergunta Deimante, depois de espreitar por trás do ombro para ver se podia falar à vontade. “Sair deste país. Este país deu-lhes demasiada liberdade e eles tomaram conta de tudo“.