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O homem que queria comprar todo o cacau do mundo e outras histórias

Um especulador tentou, em 2010, "encurralar" o mercado de cacau, como se diz na gíria. Comprar mais e mais, para fazer subir o preço e vender caro. O que ganhou? Apenas uma alcunha: "Chocfinger".

A estratégia é simples, mas muito arriscada e, claro, ilegal. Com bolsos suficientemente fundos e um conhecimento íntimo do mercado, o especulador escolhe uma mercadoria e lança-se numa missão: encontrar o momento certo, comprar mais e mais, até que o mercado sinta a escassez e os preços subam. Depois, é vender aos poucos, com astúcia, e lucrar. Na gíria dos mercados financeiros – e nenhuns são mais eufóricos do que os mercados de matérias-primas – chama-se a isto tentar “encurralar” o mercado. Vários tentaram. Um ficou para a História. Anthony Ward tentou “encurralar” o mercado do cacau em 2002 e em 2010. Na primeira vez, ganhou 40 milhões de libras. Na segunda, não correu tão bem e Anthony Ward perdeu (quase) tudo. Ganhou apenas um lugar na História dos mercados financeiros e uma alcunha: o “Chocfinger”.

Anthony Ward, um inglês de origens relativamente humildes, começou por trabalhar como estafeta antes de se tornar negociador de contratos de futuros sobre matérias-primas. O que são contratos futuros? São a base dos mercados de mercadorias e, como contratos complexos que são, permitem comprar e vender o direito a receber uma quantidade de uma dada matéria-prima numa data futura específica. Quando ouve, diariamente, as notícias sobre a evolução dos preços do petróleo, por exemplo, esse valor refere-se não ao preço do barril físico mas à cotação dos contratos futuros negociados diariamente nas bolsas de matérias-primas como a nova-iorquina NYMEX, a Chicago Mercantile Exchange ou a ICE de Londres. Alguém pode, muito facilmente, fazer uma carreira profissional inteira a negociar nos mercados de matérias-primas sem nunca estar defronte de um barril de petróleo ou de uma tonelada de cacau.

Os "traders" das bolsas de mercadorias podem fazer uma carreira inteira sem nunca estar defronte de um barril de petróleo ou de uma tonelada de cacau.

Getty Images

Não foi esse o caso de Ward. O inglês conhecia os mercados de cacau como poucos, tanto ao nível do mercado financeiro como, também, no terreno. Conviveu de perto com os agricultores do Gana e da Costa do Marfim, mas também com os grandes negociadores de matérias-primas e das empresas que todos os dias compram o produto para fazer o bem final: o imensamente popular chocolate. Chegou a presidente da Associação Europeia do Cacau e, em conjunto com um sócio, criou um veículo de investimento chamado Armajaro Asset Management. Como “hedge fund” que é, a Armajaro procura oportunidades de investimento de curto prazo para tentar realizar grandes lucros em “apostas” mais arriscadas.

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Em 2002, Anthony Ward beneficiou do clima desfavorável na África Ocidental e, sobretudo, da instabilidade política na Costa do Marfim para lucrar quase 40 milhões de libras – ao câmbio de então, quase 65 milhões de euros – com uma “aposta” certeira na evolução dos preços do cacau. Enquanto o fazia, Anthony Ward negava que estava a tentar encurralar o mercado, rejeitando até as insinuações de que era um especulador. A Armajaro queria afirmar-se não como um fundo especulador, mas como um dos maiores fornecedores mundiais de cacau, fazendo a ponte entre os agricultores na África Ocidental e “clientes [marcas] que todos os vossos leitores reconheceriam”, disse Anthony Ward, ao The Telegraph, em agosto de 2002. Com ou sem ilegalidade, o certo é que os preços subiram para os valores mais altos desde há vários anos e a Armajaro deu-se bem. Mas essa primeira grande investida serviu apenas para dar fôlego financeiro ao fundo e para permitir ao investidor comprar uma luxuosa mansão de quatro pisos em Mayfair, uma das zonas mais caras de Londres.

Em 2002, Anthony Ward beneficiou do clima adverso e, sobretudo, da instabilidade política na Costa do Marfim para lucrar quase 40 milhões de libras com uma “aposta” certeira na evolução dos preços do cacau. Foi uma primeira investida, de preparação do que viria em 2010.

Só oito anos depois Ward detetou uma nova oportunidade. Ou, pelo menos, achava ele. Em julho de 2010, a Armajaro pediu financiamentos para comprar contratos futuros de 204 toneladas de feijões de cacau, investindo o equivalente a mil milhões de dólares (750 milhões de euros ao câmbio da altura). Tamanha pressão de compra foi, claro, imediatamente notada nos mercados. Isso refletiu-se nos preços, mas de forma pouco notória numa primeira fase – o que jogou a favor de Anthony Ward já que o especulador conseguiu açambarcar os contratos que queria sem fazer subir os preços em demasia no mercado e, portanto, sem deixar o preço médio subir de forma a estragar as suas contas.

Anthony Ward conhecia os mercados de matérias-primas como poucos, não só graças à experiência como negociador bolsista mas também do contacto próximo com os agricultores na África Ocidental.

AFP/Getty Images

Os dias passaram e a Armajaro, sem nunca confirmar publicamente o investimento, tardava em voltar a vender os contratos no mercado, para garantir o lucro que conseguisse. É, afinal, isso que fazem os fundos de cobertura de risco. Na aproximação da data de vencimento dos contratos futuros, ou seja, o dia em que os contratos futuros se transformam em ordens de entrega da matéria-prima física, Ward mantinha as cartas próximas do peito e continuava a comprar. Chegou a deter cacau suficiente para produzir mais de cinco mil milhões de barras de chocolate. Sim, cinco mil milhões de tabletes de chocolate.

Quando a data de vencimento chegou, como estaria nos planos de Anthony Ward, a entrega foi feita. Aí, sim, os mercados de cacau começaram a ficar nervosos. O inglês passou, de um dia para o outro, a ser dono de 7% da produção global de cacau, uma mercadoria perecível e cuja conservação envolve custos significativos. Mas Ward, que nunca discutiu o episódio publicamente, estava preparado e tinha montado uma estrutura de armazéns na Grã-Bretanha e na Holanda. Esse era, aliás, um elemento essencial para que Anthony Ward se afirmasse como um legítimo fornecedor de matéria-prima e não como um especulador a tentar manipular os preços no mercado, o que implicaria graves problemas com as autoridades.

Anthony Ward chegou a deter cacau suficiente para produzir mais de cinco mil milhões de tabletes de chocolate. O inglês passou, de um dia para o outro, a ser dono de 7% da produção global de cacau.

No mercado, que já vinha sendo perturbado pelas colheitas desfavoráveis, os preços subiram para os níveis mais elevados em quatro décadas. 7% pode não parecer muito, mas poderia ser mais do que suficiente para perturbar o equilíbrio entre oferta e procura que, nos anos anteriores, já se vinha mostrando precário. Daí a oportunidade identificada por Anthony Ward. “Gigantes” multinacionais como a britânica Cadbury e a suíça Nestlé sentiram, subitamente, dificuldades em manter o fluxo de matéria-prima para manter a produção. Estas empresas tendem, contudo, a usar mecanismos sofisticados para se protegerem das oscilações dos preços do mercado, como fazem, por exemplo, as transportadoras aéreas com os combustíveis.

Em piores lençóis ficaram os outros operadores do mercado, envolvidos em operações complexas de contratos de futuros e contratos de opções e, agora, apanhados em contrapé, incapazes de fechar as respetivas posições. Só esse facto, por si, poderia levar a uma subida abrupta dos preços, já que alguns especuladores poderiam sentir-se tentados a entrar no mercado para tentar aproveitar a escassez gerada pela compra alvoraçada dos outros investidores e, claro, pela investida de Anthony Ward. Ward que, tanto quanto os outros investidores sabiam, poderia muito bem ter planos de comprar todo o cacau do mundo: o melhor era comprar enquanto era tempo.

Anthony Ward recusou, em 2012, ser o mais poderoso participante no mercado de cacau. "O mais poderoso é o tempo", disse, numa entrevista durante uma edição do St. Gallen Symposium.

Anthony Ward, um apaixonado por corridas de rali e um fã da boa mesa e de bons vinhos, chegou a ser tema de capa do New York Times, numa fase em que todos se questionavam sobre o que ia acontecer ao mercado de cacau e se as fabricantes de chocolate teriam de subir os preços. Todos os participantes no mercado da Euronext Liffe sabiam que o inglês, na altura com 50 anos, era o único suficientemente audaz e com capacidade para albergar tal quantidade de cacau. Ficou, então, conhecido no mercado como o “Chocfinger”, uma adaptação do nome do vilão Auric Goldfinger, criado pela pena de Ian Fleming, o autor dos livros que deram origem à saga de filmes de James Bond. A personagem de Auric Goldfinger terá sido inspirada – acredita-se – em alguém que existiu na realidade: o excêntrico magnata Charles W. Engelhard, Jr., que morreu, em 1971, depois de acumular uma imensa fortuna graças à exploração e negociação de ouro.

Na longa-metragem que estreou em 1964, o vilão Goldfinger estava a acumular uma matéria-prima – no caso, o ouro. O plano passava, depois, por ampliar o valor do ouro que Goldfinger havia contrabandeado. Como? Através da contaminação radioativa das reservas norte-americanas guardadas em Fort Knox. Coube, claro, ao agente “007”, desempenhado por Sean Connery, salvar a economia mundial do abismo. Alerta de “spoilers” para o leitor que não tenha visto o filme: James Bond consegue travar os planos de Goldfinger e, no final, abandonar em segurança um avião atacado pelo vilão, num último esforço de vingança contra o “007”. A personagem de Sean Connery salta do avião de pára-quedas, em segurança, bem acompanhado pela “bond girl” Pussy Galore.

Os planos do vilão Auric Goldfinger, representado pelo ator alemão Gert Fröbe, são travados por James Bond. (Foto: Metro Goldwyn Mayer)

Não consta que tenha havido um espião “ao serviço de Sua Majestade” envolvido, mas também os planos de Anthony Ward, o “Chocfinger”, saíram furados ao cabo de alguns meses. Perante a pressão crescente das autoridades, da imprensa e de algumas associações do setor, alguns investidores no fundo de Anthony Ward bateram em retirada. Além disso, a melhoria inesperada das colheitas em algumas regiões produtoras conteve a subida dos preços com que “Chocfinger” estava a contar. Mas, acima de tudo, foram os custos associados à conservação do cacau nos armazéns nos arredores de Londres e na Holanda que fizeram desabar o plano. Estes custos ascendiam, estima-se, a 10 milhões de dólares por mês, o que rapidamente colocou Anthony Ward no “vermelho”.

Foram os custos associados à conservação do cacau nos armazéns nos arredores de Londres e na Holanda que fizeram desabar o plano. Estes custos ascendiam, estima-se, a 10 milhões de dólares por mês, o que rapidamente colocou Anthony Ward no "vermelho".

O Observador tentou falar com Anthony Ward, mas a Armajaro não se dispôs a organizar a conversa porque Anthony Ward está “muito ocupado neste momento”. O investidor continua na Armajaro, o fundo que criou em conjunto com o sócio Richard Gower em 1998 e cujo nome é um amálgama dos nomes dos quatro filhos que os dois têm, no seu conjunto. Nunca refeita do impacto dessa investida mal-sucedida no mercado de cacau, a Armajaro não teve alternativa a ser vendida a uma firma rival suíça, a Ecom Agroindustrial, no final de 2013. O preço da transação? Um dólar. O preço de uma tablete de chocolate, como nota o Financial Times.

A Armajaro Asset Management foi vendida, mas “Chocfinger” continua no ativo. Em 2011, já depois do desaire, Anthony Ward deu uma das suas raras entrevistas, durante uma conferência da St. Gallen. “É um exagero” dizer que Anthony Ward tem poder para influenciar os preços do cacau com os seus negócios, garante o próprio, entre risos, depois de o entrevistador o apresentar como o negociante mais poderoso no mercado de cacau. O que é que influencia os preços? “O clima é o mais importante”, responde Anthony Ward, que montou o seu próprio sistema de previsão meteorológica em Londres, para encontrar “oportunidades para fazer negócio. O clima é um tema fascinante”, diz.

“Chocfinger” – da alcunha não se livra – não se considera um especulador. “Ajudamos agricultores em todo o lado, construímos uma operação sustentável. Acreditamos que estamos a ajudar os países em desenvolvimento, especialmente em África”. A Armajaro Trading tem um vídeo que mostra a presença no Gana e a forma como a empresa está a investir em infraestruturas e equipamentos sociais naquele país.

Anthony Ward – que, recorde-se, não admite que tentou “encurralar” o mercado – não foi o único a tentar aproveitar a vulnerabilidade dos mercados de matérias-primas. Uma vulnerabilidade que ainda nesta semana foi apontada pelo Senado norte-americano e que permite que grandes bancos ganhem uma influência perigosa nos mercados de mercadorias – perigosas para os próprios mercados e para a estabilidade do sistema financeiro.

Em 1996, Yasuo Hamanaka ganhou a alcunha “Mr. Copper” depois de ter, ao longo de mais de uma década, comprado um milhão de toneladas de cobre para manter os preços em alta. Chegou a ter nas mãos 5% da produção anual global de cobre. Para isso, usou fundos da firma para a qual trabalhava, a Sumitomo Corporation, sem reportar essa negociação e fazendo avolumar os prejuízos que, segundo o The Telegraph, ascenderam a 2,6 mil milhões de dólares. Confessou o crime e passou oito anos na cadeia.

Há mais casos. E mais antigos. Na década de 1860, Jay Gould e James Fisk tentaram “encurralar” o mercado de ouro em Nova Iorque. Quando soube do plano, o Presidente Ulysses Grant autorizou o Tesouro a despejar um pouco de ouro no mercado, o suficiente para “encurralar” Jay Gould e James Fisk na sua tentativa de fazer os preços subirem. Mais de cem anos depois, um outro duo de especuladores – Nelson Bunker Hunt e o seu irmão William Herbert Hunt – tentaram “encurralar” o mercado da prata, e conseguiram, em 1979, fazer os preços subirem de seis dólares por onça para quase 50 dólares por onça. O investimento era altamente alavancado (potenciado através de dívida) e quando os preços inverteram, caíram mais de 50% em quatro dias, lançando o pânico nos mercados. Após um longo processo judicial, os irmãos reconheceram que tentaram “encurralar” o mercado, pagaram uma multa e ficaram proibidos de alguma vez mais intervirem no mercado de matérias-primas.

Anthony Ward não foi o único a tentar aproveitar a vulnerabilidade dos mercados de matérias-primas. Uma vulnerabilidade que ainda nesta semana foi apontada pelo Senado norte-americano e que permite que grandes bancos ganhem uma influência perigosa nos mercados de mercadorias – perigosas para os próprios mercados e para a estabilidade do sistema financeiro.

Anthony Ward, que não teve quaisquer problemas com a lei, continua atento ao mercado e a gerir um fundo de investimento especializado em cacau e café, o CC+ da Armajaro. Apesar de ter sido escaldado pela investida mal-sucedida, é provável que continue a acreditar que estes mercados tenham potencial para continuar a subir. “A população global está a crescer a um ritmo muito rápido, os produtos alimentares e também a água são bens que irão escassear no futuro“, dizia “Chocfinger” em 2009.

Como o Observador escreveu na segunda-feira, o mercado de cacau está em grande desequilíbrio, com um défice de produção que caminha para os níveis mais negativos dos últimos 50 anos. Os produtores de cacau não estão a conseguir acompanhar o aumento do consumo mundial de chocolate, sobretudo perante a subida da procura pela matéria-prima na Ásia e nos mercados emergentes, e os preços estão a subir cerca de 25% este ano nos mercados internacionais. Estará “Chocfinger” tentado a fazer uma nova investida?

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