Fernanda Laranjeiro, 52 anos, nunca tinha visto tanta gente a entrar daquela maneira na estação de serviço de Vouzela, da A25. Nos dias normais, as pessoas entram aos poucos, a maior parte para beber café. Por vezes, lá vem uma excursão que enche a loja. Mas isto era outra coisa: era uma multidão que, com as estradas fechadas por causa do incêndio, ali esperava, sem saber se dali saía viva.
“De repente começou gente a entrar, a entrar, a entrar”, recorda Fernanda, de folga, sentada na cozinha da sua casa, quando ainda não passaram nem 48 horas do incêndio. “Eu disse logo à minha colega: ‘Prepara-te que isto vai ser à grande’.” A colega, Lúcia Ferreira, 32 anos, apressou-se e foi para a cozinha. Num instante, começou a cozer pão e a fritar salgados. “Foi automático, nem tivemos tempo de pensar”, conta, também sentada na sua cozinha.
No domingo, o pior dia de incêndios florestais do ano que levou à morte de pelo menos 41 pessoas em todo o país, todos os condutores que circulavam naquela zona na A25 em direção a Aveiro foram obrigados pelas autoridades a parar na estação de serviço, para onde foram reencaminhados a partir do meio da tarde. Também aqueles que passavam pelo IP3, que foi cortado, foram desviados até ali. Muitos chegaram em sentido contrário, depois de serem mandados para trás. Foi nessas condições que morreram duas pessoas, entre elas uma mulher grávida de 19 anos que seguia em sentido oposta ao trânsito, depois de um choque frontal.
Pouco demorou até à fila ir desde o balcão até à porta — ou seja, uma fila de mais de 20 metros — e até todas as mesas estarem cheias. Além disso, muitas pessoas amontoavam-se em frente à televisão, de onde surgiam notícias que davam conta de um país mergulhado no fogo. O concelho por onde todos passavam, Vouzela, era um dos epicentros da crise. Atrás do balcão, Fernanda vendeu-lhes sobretudo águas e sandes. “Queriam todos coisas rápidas, que desse para agarrar e fugir dali”, dizia. “Mas eles não tinham para onde ir, não podiam sair dali para lado nenhum.”
Já Fernanda estava cheia de vontade de sair. A partir da máquina registadora da estação de serviço, consegue ver a sua casa, na aldeia de Cercosa, com grande destaque para o jardim onde tem alguns cultivos, do milho às hortaliças. Quando entrou no trabalho eram 15h00 e do fogo apenas se fazia sentir uma neblina densa e espessa de fumo. Depois, já por volta das 18h00, à medida que via os clientes a chegar a um ritmo imparável, o monte por detrás da sua casa apresentava uma aura vermelha. Era o clarão das chamas. Já por volta das 20h00, Fernanda viu aquilo que temia: do lado de lá da auto-estrada, a sua casa estava já cercada pelo fogo.
Ficou nervosa? “Eu não tive tempo para isso, os clientes estavam sempre a chegar”, disse. Porém, fez uma pausa rápida, para tentar falar com os filhos e com o marido. Mas a rede já tinha caído. Da televisão, também já não surgia nada. “Às tantas aquilo deixou de ter sinal e só se começou assim a ver grainha, não se percebia nada, então desligámos tudo”, disse. “Ficámos sem saber de nada, ficámos completamente ao abandono.”
“Temos de sair daqui!”
Enquanto isso, as pessoas aguardavam ansiosamente um pouco por toda a estação de serviço. “Estavam nervosos, claro que estavam”, recorda Fernanda. Alguns clientes pediram-lhe que molhasse o alcatrão em frente à estação de serviço com as mangueiras de serviço. “Olhe que isto arde tudo!”, diziam-lhe. “Eu sei lá se vou precisar da água depois, não vou gastá-la com alcatrão”, respondeu-lhes.
Entre os clientes, havia alguns que queriam sair dali, que era o mais seguro. “Temos de sair daqui!”, diziam. Outras, por sua vez, respondiam-nos que não havia outra escolha senão ficar. Provavelmente, diziam-no com a memória fixa na tragédia a Estrada Nacional 236-1, entre Pedrógão Grande e Castanheira de Pêra, onde morreu grande parte das 65 vítimas daquele incêndio.
Já Lúcia não se lembra de ter pensado em nada disso. “Eu não tive tempo para pensar em nada”, diz agora. “Uma pessoa vai lá pensar quando tem uma fila cheia de clientes ao mesmo tempo que olha para fora da porta e só vê chamas?”, explica. Houve uma altura, porém, que tentou convencer Fernanda a fechar as portas e sair dali para fora — Lúcia, que vive em Olivera de Frades, não sabia nada da família nem dos seus pertences. “Eu só queria fechar aquilo, queria sair dali, mas a Fernanda disse logo que não tínhamos ordens para fechar a loja”, recorda Lúcia. Pouco depois, receberam um telefonema do restaurante da estação de serviço do outro lado da autoestrada, no sentido de Aveiro para Viseu. Daquela banda, diziam-lhes que iam fechar, porque não havia clientes. “E nós não fechamos também?”, pensou Lúcia.
Nessa altura, Fernanda ligou ao patrão, à espera de receber instruções. Mas a chamada não passou. E, então decidiu. “Não, senhor. Eu não vou fechar isto quando tenho aqui a casa cheia de gente, sem poderem ir para nenhum lado”, disse na altura, à medida que, do outro lado da autoestrada, via as chamas dançavam em redor da sua casa. “Isto é uma responsabilidade muito grande”, disse à altura. Lúcia acabou por concordar com a colega.
Nunca o tempo tinha passado tão lentamente para cada uma daquelas mulheres. À medida que despachavam sandes e garrafas de água — tantas que, a meio da noite, Lúcia teve de ir ao armazém buscar mais —, os segundos que tinham para descansar eram passados a pensar na família. Cada uma tentava ligar-lhes, mas em vão. “E eu a ver as chamas ali ao pé da minha casa, sem poder fazer nada, sem saber do meu marido e dos meus filhos”, conta Fernanda. “Isto parecia que ia continuar para sempre.”
Não durou. Quando o relógio já estava mais perto das 22h00, chegaram à estação de serviço membros da Proteção Civil. Naquela altura, já tinham evacuado o restaurante e a bomba de gasolina do lado oposto da autoestrada. Ali mesmo ao lado, também a bomba de gasolina tinha sido evacuada — horas depois de um dos funcionários, que por decisão da gerência o Observador não pôde contactar, ter convencido os automobilistas a não se fazerem à estrada.
Com ordens para sair imediatamente da estação de serviço, mal sobrou tempo para Fernanda e Lúcia fazerem o essencial. À pressa, a mais velha tirou o dinheiro da caixa registadora e guardou-o no cofre. Lúcia ainda quis deixar o alarme de segurança ligado, mas não teve tempo. “Ó, minha senhora, deixe estar isso agora, temos de sair já”, disse-lhe um elemento da Proteção Civil.
As últimas a sair
Quando cada uma destas mulheres chegou a casa, suspirou de alívio por ver que tudo estava intacto. Fernanda, que passou a noite a assistir com impotência às chamas a avolumarem-se em torno da sua casa, chegou e viu que ela tinha escapado. Foi lá que encontrou o marido, são e salvo, onde garantira que a casa também se mantinha. Depois, ficou a saber também que estava tudo bem com os filhos — mesmo que, enquanto tentava ajudar a apagar um fogo numa vacaria, um deles tivesse ficado encurralado pelas chamas durante momentos.
Também Lúcia percebeu que estava tudo bem com a família e com a casa onde vivem, em Oliveira de Frades. Perderam, porém, grande parte da produção agrícola que tinham. A prova disso são as castanhas que Lúcia apanhou no terreno da família horas depois de falar com o Observador. Se nos outros anos chegavam a ser 100 quilos, desta vez a colheita resume-me a três. O resto, está tudo queimado.
Tanto Fernanda como Lúcia desvalorizam o episódio da autoestrada e da estação de serviço. “Nós só estávamos ali a trabalhar, mais nada, não sabemos fazer outra coisa”, sublinha Fernanda. Mas há um detalhe que demonstra que na verdade, mesmo que subconscientemente, sabiam bem o que estavam a fazer. Na hora de ir embora, como é próprio dos bons capitães, o carro onde Lúcia seguia ao volante e com Fernanda no lugar de passageiro foi o último a abandonar a estação de serviço.