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O que é barato vai passar a ser nosso em Marselha

Há portugueses que percorrem mais de 100 quilómetros para "fazerem as compras do mês". O gerente só ali está há oito meses, onde já ouviu um tiroteio do outro lado da estrada. Mas está feliz da vida.

O almoço já lá canta. Está saciado, de barriga cheia, e o cigarro vai a meio caminho da beata quando se lembra da cadeira. Senta-se, encosta-se e cruza as pernas debaixo do assento. Fica à sombra, mesmo à porta de casa que divide propriedade com o trabalho, literalmente. Diz umas coisas, repete outras, não deixa que haja muitos intervalos de silêncio. “Olha, estás a ver ali, aquele prédio ao fundo?”, diz, mais indicação do que pergunta. Estou de costas, viro-me e acerto o olhar às coordenadas do seu braço direito. Não aponta para longe. O alvo é um bloco vertical que está do outro lado do viaduto que delimita a fronteira. Ambos o vemos sem problemas, rien, da mesma forma com que Paulo Antunes dispara logo a seguir.

Baixa o braço, abre a boca e, como se o tema fosse o pacote de batatas fritas que lhe deu parte da refeição, conta: “Há pouco tempo mataram ali uma pessoa, até se ouviram os tiros, ta, ta, ta, ta”. Diz isto sem que lhe trema qualquer feição na cara e com a voz mais tranquila possível, naquele parque de estacionamento, em Marselha. Há três meses Paulo ouviu, aí intranquilo, a réplica do que algum tempo antes já acontecera “ali atrás”, uns prédios mais longe. “No dia seguinte a polícia fecha a estrada. Mas são apenas ajustes de contas”, resume a pessoa que, mesmo assim, me garante que estamos numa cidade tranquila e acolhedora, de passeios ao domingo à tarde, “com a esposa”. O Google, as notícias, a Wikipédia e a internet dizem-me o contrário.

O caminho até encontrar Paulo dá-lhe razão. Percorro uma de duas linhas de metro de Marselha, a vermelha, tem dez paragens e passo por oito. Tudo tranquilo. Carruagens limpas, pessoas no ponto, lugares para sentar, nenhum perigo nem olhar ameaçador, nem um toque no bolso das calças ou um verificar da mochila por cair no erro de julgar alguém pelo aspeto. Saio em Bougainville e vou atrás do que vi pela janela da carruagem. Só que ali não é nada como a planta púrpura, bonita, descoberta pelo explorador Louis Antoine de Bougainville. Prédios, muitos, ruas cinzentas, selva de betão, autocarros e camiões a passarem e arrotarem poluição. Ando menos de cinco minutos, chego ao sítio, é impossível falhar o “Supermercado Barato”. A fachada é legível até para o mais analfabeto.

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O nome, mais que estranho, é inusitado. Só pode ser português, a certeza leva-me até ali e, ao entrar, um “boa tarde” atirado para o ar é como uma cana de pesca com um isco na ponta do anzol. Responde-me um senhor em bom português, fica a saber ao que vou, dribla e desmarca-me para uma rapariga. Está atrás do balcão da charcutaria e fala. Diz-me que sim, os donos são portugueses, mas que não pode falar. Tem que pedir ajuda ao telemóvel, ligar para o gerente que não está ali, mas nem dois minutos demora a aparecer. Aí está Paulo Valente.

Aparece como os mais de 30 graus de calor lhe impõem. Está de calções a cobrirem-lhe metade das pernas e com uns chinelos a encaixarem nos pés. Tem a marca do sol no pescoço, apertado por um fio, e nos braços, meio tapados pelas mangas de uma t-shirt pintada a um rosa forte. Tem 43 anos, o aspeto dá-lhe quase outros dez. Dá umas pistas sobre o supermercado, coisas gerais, antes de “a patroa” lhe atender o telemóvel, trocarem umas palavras e me passar o pedaço de tecnologia que me aproxima de quem está longe, em Lyon. Ou em “Lião”, como ele diz por várias vezes. Explico ao que vou, oiço perguntas, dou respostas, está tudo bem. Venha a conversa.

"De vez em quando aparecem uns franceses, os que vem cá adoram isto. São pessoas que passam ou já passaram férias em Portugal, conhecem a gastronomia e os produtos portugueses, vêm cá e já sabem o que querem. Os pastéis de nata, o polvo, o bacalhau. Até ao nível dos vinhos. Trabalhei 21 anos na Sonae e há alguns preços que estão mais baratos aqui do que em Portugal, já disse muitas vezes ao meu patrão."
Paulo Antunes

Entre o pisar França e por o pé neste supermercado não passou muito tempo. Paulo aterrou no país há oito meses. Cansado da vida em Portugal, aproveitou a irmã que tem em Lyon para tentar algo, dar uma chance à sorte de encontrar algo que lhe desse “um futuro melhor”. Nem um mês passou e veio até Marselha, já sem o currículo na mão, mas com uma oportunidade à espera do seu sim. “Fiquei um mês por lá, entreguei o meu currículo à patroa, fui chamado para uma entrevista e estou aqui até hoje. Propôs-me ficar à frente deste supermercado, mas tinha que o ver antes de dar uma resposta”, conta, altruísta nas palavras, generoso na vontade que mostra em traçar a sua história.

Parece que foi fácil, e foi, porque Paulo trabalhou durante 21 anos na Sonae, “sempre na área da alimentação”. Prateleiras, produtos, distribuição, armazenamento, gerir stocks, supermercados — “é mesmo isto que eu gosto de fazer”. Os olhos estão protegidos por óculos, mas o olhar brilha. Fala com orgulho das prateleiras que se enchem apenas com produtos portugueses. “Aqui não temos coisas com pouca qualidade”, assegura. De facto, as marcas, cores das embalagens, disposição dos produtos, tudo se assemelha a um qualquer supermercado de Portugal. O nome destoa, não se veria por lá. Supermercado Barato. “Esse nome já existe há sete anos, foi o primeiro proprietário que lhe deu. Mas o ‘Barato’ vai deixar de existir, vai passar a ser ‘O Nosso’. Faz todo o sentido”, revela. Tem na cara o ar mais seguro de Marselha.

O estilo de música que se ouve no interior do supermercado.

Ele “nem queria acreditar” quando ali chegou e a primeira vez o surpreendeu. Paulo não gere apenas um supermercado, trabalha num “ponto de encontro”. Vou ali a uma quarta-feira, uma meia hora antes das 12h45 ditarem um intervalo de almoço. Nem vinte pessoas aparecem entretanto. “À sexta, ao sábado e ao domingo, os portugueses juntam-se todos aqui. Durante a semana trabalham, não se veem, portanto, juntam-se aqui ao fim de semana. Em Marselha há muitos portugueses, muitos, muitos, muitos”, repete, acentuando a palavra, quer-me fazer acreditar. “Até diria que quase 100% dos clientes desta loja são portugueses”, acrescenta, frase de fácil aceitação. Basta olhar para o nome do sítio e o que preenche as prateleiras.

Paulo insiste, não deixa a conversa seguir, enquanto conduz uma visita guiada pelos corredores, pela cozinha improvisada à entrada e pelo armazém nas traseiras, ainda a ressacar do incêndio que o atacou há dois anos. “Não imagina a clientela que isto tem. Há pessoas que fazem 100 ou 120 quilómetros para virem aqui fazer as compras do mês. As sextas, os sábados e os domingos são uma coisa fora do normal. O parque é pequeno para tanto carro. Os clientes que cá vêm já vêm há muito, tratam os funcionários por tu, conhecem-se bem. Quando aqui vim pela primeira vez nunca imaginei que uma loja destas tivesse o movimento que tem”, confessa, antes de nos encaminhar para um contentor, estacionado à entrada do supermercado. Roda as trancas, abre a porta gigante e entra. Fica ao lado de caixas e mais caixas de vinho, às dezenas, até ao teto: “Se este contentor chegar cheio à segunda-feira é porque algo correu mal”.

Estamos a falar de algo grande, um supermercado procurado, prateleiras que escoam, a ponta não de um icebergue, mas de algo que já começa a estar gelado. O telemóvel de Paulo volta a tocar. É “a patroa” que quer falar. É Joana Falcão, que sai da reunião que a prende em Lyon e conta quem é antes do como foi ali parar. Há sete anos comprou, com o marido e outro sócio, a Monde Exporte, empresa que gere aquele supermercado e outros três — dois em Lyon, um em Toulouse. Mais dois estão a caminho, um em Mâcon, outro em Lille, enquanto já existem dois armazéns em “Lião”, como diz Paulo, e um em Paris, onde está concentrada “toda a capacidade logística”. Que não é pouca, já que são “oito ou nove camiões” a virem por semana de Portugal. “Fazemos o comércio todo, além de termos as nossas lojas, vendemos os produtos a profissionais. A gestão e distribuição de tudo isto é tremenda. O nosso objetivo é promover a excelência da gastronomia portuguesa”, diz-me quem está do outro lado da linha.

Joana tem 36 anos e apenas veio para França há três, apesar de este investimento ter aparecido em 2009. A típica história do emigrante fugido de Portugal em novo, à boleia dos pais, ou do já nascido além-fronteiras, que não se livra do sotaque mesclado, não existe. Joana e Paulo Valentim, o marido que tem 43 anos, são nados em Portugal e sempre foram lá vividos. “Surgiu a oportunidade de comprar este distribuidor e, basicamente, pegámos nas malas e viemos”, resume, a rir-se de quando em vez, porque também sabe como, na altura, todos trabalhavam na Unicer e estavam bem. E ri-se também pela aventura que hoje já assentou. Para o casal e para os três filhos, cuja vida também mudou. Nada a ver com Paulo, para quem “os patrões são cinco estrelas, nada a apontar”.

"Trabalhávamos em Portugal, temos três filhos. Surgiu a oportunidade de comprar estes distribuidor e, basicamente, pegámos nas malas e vimos. Nós viemos de vez para França há três anos. Antes trabalhámos os três na Unicer. Agora somos uma das maiores empresas de distribuição de produtos portugueses em França, investimos, fizemos as malas e viemos. O nosso objetivo é promover a excelência da gastronomia portuguesa."
Joana Falcão

Ele nasceu em França, viveu por lá “até aos 12, 13 anos”, altura em que os pais regressaram a Portugal. Foi a reboque. Passaram três décadas e, mesmo sem abrir o jogo (é a única coisa que não me explica), conta que decidiu retornar ao país onde nasceu. “Agora sinto-me em casa. Não sei porquê, se foi por ter nascido cá, ou não. À minha esposa custou mais um bocado, é portuguesa e nunca emigrou”, prossegue, passando à frente, chegando à parte difícil de estar ali. Deixou na fronteira com o Atlântico uma filha em Portugal com 16 anos, de quem mata saudades com a ajuda dos patrões, que “são sensíveis” e com quem “é fácil conciliar” as idas a Portugal. “Vou lá amiúde. Quero ver se acabo a carreira aqui, nesta empresa e em França. Sinto-me bem aqui. Só tenho pena de a minha filha não poder vir para cá. É nova, tem lá a vida dela, é boa aluna. É provável que na área que pretende seguir, que é pediatria, não tenha aqui as mesmas condições, e não fala francês”, lamenta.

A confiança ganhou-se, o falatório estendeu-se, a simpatia manteve-se. Entramos na hora de almoço, arrumo a mochila, começo a dar pistas para uma despedida. Paulo não deixa, pergunta-me o que pretendo comer, insiste em levar-me até ao balcão do supermercado para que lhe dizer o que quero. Digo-lhe. Imponho uma condição, a de que quero e vou pagar as garfadas que vêm com sabor português. Ele aceita, mas engana-me, percebo-o quando já estamos sentados, à mesa da pequena casa montada no parque de estacionamento do supermercado. É ali que Paulo vive com a mulher e com José Carlos, um rapaz que se junta à refeição. Fica ao meu lado. À frente tenho Leonardo. O primeiro é português, o segundo é guineense, ambos na fronteira entre os vinte e os trinta, os dois tímidos e envergonhados, normal para quem partilha almoço com um estranho surgido do nada.

Os minutos soltam-nos, apesar de responderem a pouco. Não insisto muito, respeito a hora de almoço que têm, eles são dois de nove funcionários que ali trabalham. “Todos portugueses”, concluiu Paulo, com orgulho alheio, enquanto lida com um frango assado, um copo de vinho e umas batatas fritas quando tem apenas duas mãos. Os três não me deixam fazer o que seja — não pago, não arrumo, não lavo a loiça, não mo permitem.

Os mais novos, finda a refeição, sentam-se lá fora, à beira de uma mesa, a jogarem uma cartada. Paulo senta-se na cadeira, onde fuma, relaxa, conversa e aponta para o prédio onde houve a morte e os tiros e o medo que não sente por viver ali. “Não sou de andar a passear, mas nunca me aconteceu nada. Outro dia fui a Vieux-Port com a minha esposa e tudo tranquilo”, assegura, ao falar do sítio mais central de Marselha, há umas tantas paragens de metro. O Supermercado Barato vai passar a ser O Nosso e, agora, concordo com Paulo. Mais do que portugueses, aquele é o ponto de encontro da simpatia e descontração. Ele tinha razão, faz todo o sentido.

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