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O que está errado em “Walking Dead”?

É uma grande série? É. Já mudava? Já. Continuamos a gostar de ver Rick e os amigos contra os mortos-vivos. Mas vem aí uma nova temporada, a sétima. E isto, se fôssemos nós a mandar, era o que mudava.

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Convenhamos que o tema se põe a jeito das piadinhas fáceis: o nosso interesse por “The Walking Dead” não morreu, mas digamos que já esteve mais vivo. Não é geral – a série mantém níveis de audiência incríveis e é, no somatório das temporadas, a mais vista da história da televisão por cabo nos Estados Unidos – mas, a julgar pela quantidade de memes e piadas que circulam por essa internet afora, não estamos certamente sozinhos. “Walking Dead” começou com uma grande promessa que tarda em cumprir. Alguma vez cumprirá? Vem aí a temporada 7 (o primeiro episódio estreia-se na madrugada desta segunda feira, às 02h40, e repete segunda à noite às 22h15).

Mesmo quem não vê, já conhece mais ou menos a história. “Walking Dead” (deixemos cair, por comodidade, o artigo) é uma série de zombies em que os zombies pouco importam. O que interessa são os vivos, as pessoas, o drama e os conflitos entre elas, numa micro-sociedade de sobreviventes que perdeu todas as referências que a construíram e pelas quais se norteou até aqui. No mundo de “Walking Dead”, houve um apocalipse nunca explicado que espalhou um vírus que se tornou numa epidemia zombie. E agora não há lei, não há autoridade, não há ordem, não há estado, não há governantes, não há instituições para a recompensa ou o castigo, não há tribunais, nem escolas, nem imprensa, nem qualquer espécie de promessa de amanhã. As consequências, em princípio, importam pouco ou nada.

É nesse mundo que o protagonista Rick Grimes (Andrew Lincoln) desperta no primeiro episódio, depois de um coma, e nós com ele. Tal como Rick, não fazemos ideia do que aconteceu; limitamo-nos a lidar com a realidade. Neste novo mundo, continuamos, por instinto e passe o pleonasmo, a querer continuar. A querer viver. Nós e os nossos. Os corações continuam a bater, o olhar do outro continua lá e, com ele, a vaidade ou a vergonha, o medo ou a vontade de poder, a empatia ou a indiferença, o amor ou o ódio, a dignidade ou o desprezo. E há crianças para educar – ainda que não saibamos exactamente para que futuro ou para que sonhos. Fazemo-lo porque temos de o fazer, porque não sabemos ser de outra maneira. Numa vida que perdeu todo e qualquer sentido, o impulso da consciência humana é reconstruí-lo, reencontrá-lo ou traçar um novo. Porque não conseguimos viver perante o absurdo. Perante o absurdo, seríamos apenas animais irracionais. Apenas nós e a nossa sobrevivência. Ou será que conseguimos? Durante quanto tempo resistem os nossos padrões morais? De que nos vale, numa selva de matar ou morrer, o imperativo categórico kantiano vulgarmente traduzido pelo célebre “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”?

Foi prometendo esta reflexão filosófica que “Walking Dead” se implantou entre nós. Minimal, decerto, gerida a conta-gotas e escondida atrás das sequências de acção e muito gore, mas como alma colocada dentro da máquina. Vacinados por muitos anos de séries, cedo percebemos que o que importava não era a investigação, a descoberta do que provocara a doença zombie ou sequer a busca por uma cura, um mundo ainda não contaminado, uma qualquer espécie de salvação. O que importava era viver nesta desesperança de não ir para lado algum, de apenas nos mantermos vivos dia após dia, mas ainda assim tendo de construir uma forma de organização social, com novas regras, novas leis, novas hierarquias, com lugar para a discussão do direito natural, a importância do carisma e a aparição dos valores verdadeiramente humanos.

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Mas depois aquilo foi saindo tudo um bocado mortiço.

Os zombies chegaram à sala dos guionistas

Os episódios de “Walking Dead” têm a seguinte estrutura: duas personagens conversam longamente sobre um assunto quotidiano chato, corta para duas personagens que conversam sobre outro assunto quotidiano chato, corta para um grupo de personagens que vai sair em busca de gasolina e medicamentos e que pergunta se ninguém precisa de mais nada, não?, então tchau. Fim do I Acto. Cena com duas personagens a falar, cena com outras duas personagens a falar, cena do grupo de personagens a encontrar uma loja de conveniência que ainda tem imensos medicamentos, gasolina e latas de comida, grande sorte. Sorte? Não. Os zombies deram com eles. Corta para grande ataque zombie, ai, ai, ai, tu queres ver que é desta? Fim do II Acto. As personagens matam todos os zombies, ufa que foi por pouco. Pode dar-se o caso de ter morrido uma delas pelo caminho, mas, enquanto não for o Rick, o filho, a Maggie, o chinês ou o gajo do arco, é na boa. Voltam a casa e reencontram-se com as personagens que estiveram todo o episódio a falar. Descobrimos que uma delas amuou – normalmente, ou é Rick ou é por causa de Rick – e foi sozinha para um sítio qualquer, subitamente abstraída do facto de viver num mundo onde há 25 zombies em cada esquina, todos doidinhos para nos dar uma trinca.

Em resumo: conversa, conversa, conversa, ataque zombie. Conversa, conversa, conversa, ataque zombie. Conversa, conversa, conversa, ataque zombie. Às vezes, temos dúvidas se os guiões foram escritos em inglês ou em código morse: traço, traço, traço, ponto; traço, traço, traço, ponto; traço, traço, traço…

Ao fim de muito episódio, percebemos que uma pessoa só corre perigo quando, depois de matar uns 50, se distraiu a fazer olhinhos à única miúda viva num raio de quilómetros, e não reparou no zombie sem pernas que veio a arrastar-se pelo chão e acaba de nos agarrar uma canela. Aí, a coisa torna-se chata.

Sim, a nossa sugestão vai para que a sétima série mude isto. Aguentou-se umas temporadas porque os ataques zombies foram ficando cada vez mais espectaculares, mas há um limite para o número de ataques zombie que uma pessoa consegue ver sem bocejar. E, depois, há outra coisa: a estrutura das temporadas em si:

Rick e companheiros caminham em busca de qualquer sítio onde viver;
Descobrem aparente oásis onde vive outro grupo;
Grupo de Rick descobre que o outro grupo não é flor que se cheire;
Grupo de Rick e o outro grupo entram em conflito aberto;
Oásis vai com o cacete;
Grupo de Rick volta à estrada, cada vez mais desumano, eventualmente com menos uns elementos que quinaram, mas compensado por uns novos que estavam no oásis e que até não é má gente;
O público volta a lembrar-se de qual é a moral da história em “Walking Dead”: os mortos-vivos ainda se aturam; os vivos é que Deus me livre.

Mortos-vivos mais mortos que vivos

Após três ou quatro temporadas, começamos a suspeitar disto: que o nosso narrador foi apanhado. Catado. Chupadinho. Já virou o boneco. Transformou-se em zombie. É o que o ritmo e o sentido da série parecem denunciar: qual “walker”, também nós vamos andando, andando, andando, sem saber para onde, até que, de repente, nos passa um bocadinho de carne fresca à frente e, ai que emoção, lá vamos nós atrás dela a ver aonde é que isto vai dar.

O que nos leva a outra questão: os zombies propriamente ditos. Lá está: não é que não percebamos que o ponto não são eles, OK? Mas é capaz de ser importante garantir que eles inspiram mais terror do que uma matilha de dobermanns. É que, senão, não era preciso isto tudo. Não era preciso apocalipse, epidemia, efeitos especiais, a trabalheira que é caracterizar aquela gente toda de zombie. Soltava-se umas matilhas de cães e punha-se o Rick e os amigos a fugir na mesma. Não sei quanto ao amigo leitor – eu teria mais medo.

É que, nos mortos-vivos de “Walking Dead”, a coisa não ficou exactamente 50/50; é mais 95/5: 95% mortos, 5% vivos. Vivos como quem ainda tem pilha, não mais. A máquina ainda está ligada à corrente. É imaginar um talho onde as peças de carne penduradas no tecto têm bracinhos e gemem. Ao fim de muito episódio, percebemos que uma pessoa só corre perigo quando, depois de matar uns 50, se distraiu a fazer olhinhos à única miúda viva num raio de quilómetros, e não reparou no zombie sem pernas que veio a arrastar-se pelo chão e acaba de nos agarrar uma canela. Aí, a coisa torna-se chata. No resto, é um bando de moscas super-desenvolvidas. É preciso sacudi-los, aborrecem, ninguém os quer na sala, mas continuam a ser um bando de moscas. E já deixavam de ser. Já nos obrigavam a pôr questões mais interessantes. Já apareciam graus de “zombiismo”. Organização, hierarquia, memórias, identidades, sinais, sintomas, qualquer coisa que fizesse o plot adensar-se.

Vivos sem vida própria

Só que os vivos não estão muito melhor. Ao fim de seis temporadas e oitenta e tal episódios, essencialmente character driven, Robert Kirkman e equipa de argumentistas já tinham tido tempo de desenvolver personagens mais interessantes. Quem é Carol? Maggie? Glenn (ou: as personagens respectivamente interpretadas por Melissa McBride, Lauren Cohan e Steven Yeun)? Que sabemos sobre eles? Que contradições têm? Que medos, ansiedades, angústias, recordações, projectos, tiques, manias, defeitos, traumas? O que queriam ser? Onde deviam estar? De que sentem falta? Como ultrapassam essa falta? E de que forma todas essas pessoas que deveriam ser têm mudado ao longo de seis anos de trama?

Para já não falar de todos os que ficaram pelo caminho. O melhor exemplo de como “Walking Dead” trata mal as personagens é a forma como se desembaraça delas: inventa-as e descarta-as de seguida. Os batalhões de vivos em que a história de vez em quando esbarra têm pouco mais vida própria do que os batalhões de zombies. Vão, simplesmente, desaparecendo, às vezes sem que sequer tivessem chegado a ter um nome. Lembremo-nos de Woodbury, a cidade aparentemente perfeita do Governador, ou das personagens que estavam na prisão quando chegam Rick e demais, ou em Terminus, os grupos de sobreviventes com quem se cruzam no caminho – quase todos, quase sempre, para despachar, morrer, e tentar que, por sorte, nos envolvamos emocionalmente com essas mortes (impossível, já que não nos envolvemos emocionalmente com as vidas).

Para esta temporada, o que pedimos ao Pai Natal dos zombies é, pois, que dê mais vida aos vivos. Mais história. Mais humanidade. É que, à medida que Frank Darabont deixou de ser o showrunner e foi perdendo importância na série, e alguém como Greg Nicotero, que era o chefe da caracterização, a foi ganhando, até se tornar produtor e realizador, os mortos-vivos tornaram-se, realmente, mais horrendos e as sequências de perseguição e luta contra eles mais espectaculares, mas os vivos ficaram ainda mais quadrados, mais rasos, mais esquemáticos. Boas personagens como Merle (Michael Rooker), Hershel (Scott Wilson) ou o Governador (David Morrissey), foram morrendo; restam Daryl (Norman Reedus) ou Michonne (Danai Gurira), mas falta o drama. Aquela máquina shakespeareana de traição, engano e tragédia entre Rick, a mulher e o amigo Shane que alimentou as duas primeiras temporadas e que nunca foi devidamente substituída.

E os jardins? Nunca ninguém reparou nos jardins?

Já falámos da história e das personagens, da acção e do conflito; falta falar do embrulho.

OK. Estamos, portanto, num mundo onde nada funciona, certo? Nada. O apocalipse zombie, pura e simplesmente, suspendeu a civilização. Não há electricidade nem gás nem companhias da água. Não há internet nem serviços noticiosos. Não há agricultura, nem indústria, nem pescas, só a nível doméstico, não há barcos nem aviões nem comboios para transportar mercadorias para cá e para lá. Não há um ferro de engomar. Não há um canalizador. Não há quem reponha o stock de papel higiénico no supermercado porque nem sequer há supermercado. Estão a ver a ideia? Este é o mundo de “Walking Dead” e é isto que lhe dá interesse: como vão sobreviver estas personagens neste mundo? Aqui deve residir toda a arte dos responsáveis pela série.

Nestas coisas, já se sabe que há sempre um pacto entre o ecrã e o público: a célebre suspensão da descrença. Se o ecrã nos der algumas coisas que pareçam mesmo verdade, ou se pelo menos contar muito bem a mentira principal, nós fingimos que acreditamos no resto.

Damos de barato que lá vão arranjando maneira de tomar banho, talvez com um balde ou num riacho, e encontrando forma de não se transformarem em neandertais. Enfim, cedemos numa série de coisas, mas, pessoal, ajudem lá: isto é o apocalipse zombie. Não é suposto os jardins em frente às casas estarem todos arranjadinhos.

Pois bem. Em “Walking Dead”, percebemos que, de vez em quando, as personagens têm de mudar de roupa, mesmo que não se saiba onde a foram arranjar. Que é importante para a telegenia do produto que mantenham os cabelos cortados, as barbas feitas no caso dos homens, a depilação no das senhoras, e que não entrem em subnutrição ou arranjem problemas de pele ou de sangue ou de fígado com a porcaria de alimentação que fazem, baseada nuns poucos vegetais que às vezes os vemos plantar e os pacotes de amendoins que vão trazendo da última loja de conveniência e, portanto, do último recontro com um rebanho zombie. Damos de barato que lá vão arranjando maneira de tomar banho, talvez com um balde ou num riacho, e encontrando forma de não se transformarem em neandertais. Enfim, cedemos numa série de coisas, mas, pessoal, ajudem lá: isto é o apocalipse zombie. Não é suposto os jardins em frente às casas estarem todos arranjadinhos.

Não é preciso muito. Quem já teve um vaso, sabe o que estamos a dizer. No Outono ou no Inverno, as coisas ainda se aguentam, mas, na Primavera ou no Verão, bastam 15 dias sem tomar conta do canteiro que lá temos nas traseiras para aquilo se transformar numa floresta virgem. Visualmente, poderia e deveria ser um dos aspectos mais fortes e eloquentes da série: a natureza a tomar conta da civilização que – recordamos – JÁ NÃO EXISTE, mas não é o que sucede. Os jardins diante dos pacatos bairros burgueses mantêm-se impecavelmente aparados e a vegetação prudentemente longe da berma das estradas. Alguém anda a cortar a relva em “Walking Dead”, amigos. E esse mistério nós vamos querer ver respondido.

E nisto voltamos às nossas amadas lojas de conveniência. Verdadeiramente de “conveniência” em “Walking Dead”. Há sempre uma, algures, no fim do mundo, que ainda tem umas latas de comida e todos os medicamentos de que Rick e companhia precisam. Há sempre uma bomba de gasolina que ainda tem combustível. Há sempre mais umas armas e umas munições aqui ou acolá.

Não é um preciosismo; importa ao conceito da série. O mundo parece no mesmo ponto desde a primeira temporada: vazio como qualquer coisa que se abandonou há uma semana, não há seis anos. E temos boa forma de saber que se passaram anos: é olhar para Carl (Chandler Riggs), o filho de Rick, que está a crescer em tempo real.

É a essa escalada que gostaríamos de assistir. Esse avançar na desumanização. Fazer dos vivos cada vez mais zombies.

“Walking Dead” volta na madrugada de domingo para segunda. Há-de haver quem esteja mortinho por ver (tão fácil…). Nós por cá assim-assim.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).

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