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O rock mata?

É sensacionalismo ou há uma relação entre violência e rock/heavy metal? O bom senso apontaria para a primeira, mas, como se explica, a resposta é mais complexa do que se esperaria.

“Acredita ou não em coincidências? Quem estuda esta temática do terrorismo internacional sabe que, alegadamente, os EUA interrogavam os terroristas islâmicos (…) com música heavy metal em alto som. (…) A banda que hoje estava no Bataclan, norte-americana, tocava heavy metal. É só uma coincidência? É um pormenor que nos ajuda a explicar o que se passou em Paris?”

A pergunta foi lançada por um jornalista da TVI ao seu convidado, numa daquelas longas horas de emissão contínua logo após os atentados terroristas de 13 de Novembro, em Paris. Não nos prendamos ao óbvio – a ignorância sobre o terrorismo jihadista e a preguiça do jornalista em gastar um minuto para descobrir que Eagles of Death Metal é, afinal, uma banda de rock. É que, na pergunta, há algo involuntariamente interessante: o ressuscitar da irresistível associação mediática (directa ou indirecta) entre música rock/heavy metal e violência, bastando um pequeno vestígio para, numa cena de crime, se instalar a dúvida sobre o papel da música no acto. Neste caso, como alvo de retaliação terrorista. Noutros casos, como estímulo para cometer crimes violentos. E exemplos dessa associação mediática não faltam.

Quem não se lembra do chamado “massacre de Columbine” (1999), quando numa escola dos EUA dois alunos adolescentes assassinaram doze colegas e um professor, e se suicidaram? Nessa altura, os media responsabilizaram o artista Marilyn Manson, cuja música os teria influenciado. Mas se nesse caso houve manifesto exagero, o que dizer do que sucedeu na Noruega, em plena década de 1990, com uma sequência de crimes (homicídios, crimes de ódio e até igrejas incendiadas) relacionados inequivocamente com bandas e fãs de black metal, instituindo a associação entre o género musical e o ocultismo/satanismo?

Nos Estados Unidos, em 1995, três jovens fãs de heavy metal assassinaram Elyse Pahler – a família da vítima processou então a banda Slayer, acusando-a de, através da música, manipular os jovens a matar.

Na realidade, com mais ou com menos exageros mediáticos, os casos abundam. Em 2011, um jovem norte-americano de 22 anos disparou repetidamente sobre uma zona de parqueamento de uma grande superfície comercial, matando seis pessoas e ferindo o seu alvo, a congressista democrata Gabrielle Giffords, com gravidade no cérebro – como o homicida tinha registado, na sua conta do Youtube, uma canção dos Drowning Pool (heavy metal), a banda viu-se relacionada com o ataque. Em 1985, o violador e assassino em série Richard Ramirez, que aterrorizou a Califórnia (catorze homicídios), foi referido como fã de AC/DC (hard rock) – os media rapidamente se interrogaram acerca da relação entre as canções da banda e a predisposição para cometer os crimes. Ainda nos EUA, em 1995, três jovens fãs de heavy metal assassinaram Elyse Pahler – a família da vítima processou então a banda Slayer (heavy metal), que só na década de 1990 vendeu mais de um milhão de discos, acusando-a de, através da música, manipular os jovens a matar.

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[Veja os casos mais mediáticos nesta fotogaleria]

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Será um fenómeno dos EUA, onde episódios de tiroteios e violência são lamentavelmente comuns? Não só. Também em Portugal (1999), mais concretamente em Ílhavo, um jovem cometeu um violento parricídio, tendo posteriormente sido identificado como membro de uma banda de heavy metal – os media portugueses transmitiram então reportagens sobre as ligações do género musical com actos de violência e até de satanismo.

O debate, entretanto, montou-se: há sensacionalismo mediático ou existe realmente uma relação íntima entre violência e o rock/heavy metal? Ou, indo à questão concreta, existem indícios que sugiram uma relação de causalidade entre ouvir este género musical e adoptar comportamentos violentos? O bom senso diz que não, mas a resposta é um pouco mais complexa do que inicialmente se esperaria. Comecemos por dois factos, e passemos depois à controvérsia.

Facto 1: uma cultura de transgressão

A associação mediática entre rock e violência não surge do vazio. Na base do rock, do punk, do heavy metal e do hardcore existe uma opção explícita pela transgressão de normas sociais, políticas e religiosas. Não que seja uma omnipresença em toda a música do género, que não é. Mas é muitíssimo mais usual do que em qualquer outro género musical (talvez exceptuando o rap/hip-hop). Está no próprio registo musical – mais rápido, com distorção, pouco (ou nada) melodioso. Está na estética – os cabelos longos, a roupa negra e o grafismo das capas dos discos que representa frequentemente violência, nudez, deturpação de símbolos religiosos. E está nas letras – onde abundam temas como a sexualidade, o suicídio, a violência, apelos políticos anti-sistémicos e heresias várias. Mas é porque existe representação artística da violência que há, consequentemente, incentivo real à prática da violência? Seria simplista achar que sim – e isto vale tanto para a música, o cinema, a televisão ou até os videojogos.

Facto 2: os músicos do rock, punk e heavy metal não morrem de velhice

Diz o mito que a estrela de rock morre jovem, seguindo à risca a máxima de viver depressa e no limite. É só mito? Não: há dados empíricos que confirmam a tendência. Dianna Theadora Kenny, professora de psicologia e música na Universidade de Sydney, compilou informação sobre as várias causas de morte de artistas de música, distinguindo-os entre géneros musicais. Os resultados, apresentados aqui, revelam que há diferenças significativas entre géneros musicais e que a esperança média de vida dos artistas punk, metal, rap e hip-hop é muito inferior à dos outros músicos (ronda apenas os 35 anos). Os resultados mostram, também, que os artistas punk e metal são os que mais morrem em acidentes (ou seja, têm mais comportamentos de risco) – 30% e 36%, respectivamente. Que são os artistas do metal que mais cometem suicídios – 19%. Que os artistas rock, mesmo com resultados menos negativos, estão acima da média em termos de mortes por via de acidentes ou suicídio. E que é no rap e no hip-hop que as mortes por homicídio mais ocorrem – cerca de 50% dos artistas.

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Ou seja, por mais que se diga que tudo não passa de uma expressão artística, os dados confirmam que a cultura de transgressão tem nos artistas (i.e. naqueles que a levam mais longe) um paralelo em termos de estilo de vida. Assim sendo, e se a relação existe, a questão deve ser novamente reformulada: trata-se de uma relação causa-efeito ou é apenas uma relação casual? Isto é: aderir a estes géneros musicais aumenta o risco de comportamentos desviantes ou, simplesmente, quem tem predisposição para comportamentos desviantes mais facilmente se identifica com estes géneros musicais? É aqui que começa o debate.

Debate: o rock manipula?

Como em todos os debates, há um lado sim e há um lado não. É significativa a investigação da área da psicologia que defende que, efectivamente, o rock (e derivados) causa uma alteração comportamental nos seus adeptos, nomeadamente por via de aumento de agressividade e de violência. Mas há, do outro lado, muita investigação recente da mesma área que, aceitando a existência de uma relação casual, recusa que esta seja causa-efeito. Ora, conteste-se ou não as abordagens metodológicas e as conclusões, o facto é que a investigação que predomina e que é mais frequentemente citada – nos serviços de Justiça e de Segurança Pública, por exemplo, para apelar à atenção dos pais de adolescentes – diz respeito à primeira hipótese. Mas será mesmo assim?

Há quem garanta que sim. Em O Poder Manipulador da Música Rock (Chiado Editora, 2014), Nuno Francisco Coutinho recupera os argumentos de parte da investigação, destacando as características do que, nas suas palavras, é mesmo uma manipulação das mentes e dos corpos. Primeiro, porque o género de música provocaria uma reacção biológica, alterando o ritmo cardíaco e fazendo o corpo produzir hormonas que, em condições normais, apenas produz quando está sob stress (pp. 46-47). Segundo, porque essa reacção biológica teria efeitos psicológicos. Diz o autor que “parece então que estão criadas as condições para que se possa dizer que se a vibração for muito alta e durar bastante tempo, o ouvinte pode vir a entregar-lhe o seu livre arbítrio, como que traído pelos instintos corporais primários que reagem mais rapidamente que a consciência. (…) Isso acontece principalmente no caso de alguns grupos de heavy metal cujos concertos ao vivo podem manipular ritmicamente o público até robotizá-lo” (pp. 45-46).

Há uma correlação entre estes géneros musicais e tendências para a agressividade ou para o suicídio, mas não há qualquer relação causa-efeito entre ouvir a música e, por essa razão, alguém se tornar mais violento ou mais predisposto ao suicídio.

Teoria da conspiração? Para o autor, a prova de que o caso é sério encontrar-se-ia numa série de delitos “comprovadamente influenciados pela música” (p. 62) que vão desde o assassino em série Charles Manson a um adolescente de 16 anos que assassinou a tia por estar “hipnotizado” por uma canção dos Pink Floyd (pp. 63-67). Daí a afirmação lapidar de Nuno Francisco Coutinho: o rock é perigoso porque “a era do Rock tem visto os crimes mais violentos aumentarem em mais de 10.000% entre os jovens” (p. 62).

O que dizer de tudo isto? Duas coisas. Que a primeira vantagem do livro de Nuno Francisco Coutinho, para o leitor, é que retrata bem a argumentação que visa demonstrar que existe um poder manipulador no rock. E que a segunda vantagem para o leitor, e que é uma desvantagem para o autor, é que essa argumentação roça inúmeras vezes o ridículo. Tudo no livro é circunstancial, as afirmações científicas não estão sustentadas, do casuístico estabelecem-se regras, e nenhum dos (poucos) estudos referenciados é posterior a 1998.

Infelizmente, não se trata de um caso isolado. Também é esse o perfil mais frequente da investigação que defende uma relação causa-efeito entre ouvir rock/ heavy metal/ punk e alguém tornar-se violento, preferindo-se o sensacionalismo sobre o rigor científico – veja-se, por exemplo, o caso de artigos cujas conclusões propõem uma forma de censura para proteger os jovens da influência deste género de música.

Haverá sempre quem venha, como se canta numa canção de Black Sabbath, explicar-nos que preto é na realidade branco

Debate: a relação existe mas não é causal nem directa

Se durante algum tempo esses estudos fizeram doutrina, hoje em dia cada vez mais trabalhos de investigação publicados em revistas científicas contrariam a tese, concluindo, pelo contrário, que a relação existe mas indirectamente. Traduzindo: há uma correlação entre estes géneros musicais e tendências para a agressividade ou para o suicídio, mas que não há qualquer relação causa-efeito entre ouvir a música e, por essa razão, alguém se tornar mais violento ou mais predisposto ao suicídio. A diferença parecerá subtil para alguns, mas é tremenda na prática.

Em The Social and Applied Psychology of Music (Oxford University Press, 2008), Adrian North e David Hargreaves fazem uma detalhada revisão da literatura científica sobre o tema, enumerando vários resultados de estudos. Ora, todos partilham de uma mesma conclusão: a música serve de factor de mediação, mas não é a causa de comportamentos violentos. Exemplo: a relação entre música heavy metal e suicídio está sobretudo relacionada com outros factores, tais como a auto-estima, a disfuncionalidade familiar e a religiosidade – e, neste caso, ser apreciador de heavy metal é uma forma de manifestar estas características pessoais (nomeadamente a baixa religiosidade) em quem tem predisposição para o suicídio (p. 197).

As mesmas conclusões multiplicam-se por outros estudos recentes e aplicam-se a outros comportamentos desviantes: não há indícios de que a música aumente o risco comportamental dos jovens. Aliás, pode (em alguns casos) até atenuar esse risco – é o que sugerem Charley Baker e Brian Brown num artigo publicado em 2014 no Journal of Medical Humanities, embora esta declaração necessite de aprofundamento e validação noutros estudos.

Let there be rock

O debate não está fechado e, por certo, a controvérsia também não. Mas, a fixar-se uma ideia, que seja esta: como em todos os fenómenos sociais, as explicações simplistas enganam – tanto para um lado como para o outro. Ouvir rock ou heavy metal não é meio caminho para a marginalidade/criminalidade, mas dizê-lo não pode significar cair no erro inverso de tratar como benigna a cultura de transgressão associada ao rock. Haverá sempre quem venha, como se canta numa canção de Black Sabbath, explicar-nos que preto é na realidade branco. Mas, como a vida se encarrega de nos apontar, a realidade veste-se, sim, em tons de cinza.

Alexandre Homem Cristo é doutorando no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e conselheiro no Conselho Nacional de Educação.

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