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O sucesso da literatura intestinal

Primeiro foram livros de chefs, depois livros sobre dietas e agora livros sobre os intestinos. Nuno Costa Santos olha de perto para uma caminhada literária que não pode acabar bem.

Como é que os intestinos se tornaram best-sellers no nosso país? É assunto misterioso. Mas real. Até se percebe a tentativa de entender melhor o funcionamento desse órgão relativamente pouco nomeado nos salões, mas é difícil encaixar que se procure ler 270 páginas de uma obra, A Vida Secreta dos Intestinos, de uma senhora chamada Giulia Enders. São 270 páginas escritas por uma gastroenterologista germânica de 26 anos interessada em contar-nos os pormenores do trânsito intestinal, quem sabe narrado por locutores que nos ajudam a – e cito o texto da contracapa do livro – “fazer aquilo que ninguém mais pode fazer por nós”.

Um intestino conduz a outro, já diziam os antigos. Não é só o livro de Enders a fazer parte da montra de enchidos das livrarias portuguesas. Também existem outros títulos recentes que vão no mesmo sentido, como O Intestino Feliz (ao menos ele), de Irina Matveikova (Esfera dos Livros) e O Intestino, o Nosso Segundo Cérebro, de Francisca Joly Gomez (Pergaminho), ambos editados nas últimas semanas. Os Beatles tiveram muitos sucessores, dirá a precursora. O mercado intestinal cresce todos os dias mas ainda não cativou os escribas portugueses. Não de forma explícita, pelo menos.

Em 2015, o livro da moça alemã ocupou, durante semanas várias, o pódio de vendas nacional. Um dado revelador: entre Abril e Setembro fizeram-se seis edições. É o sucesso em terras lusas depois de ter vendido mais de 1,3 milhões de exemplares no seu país natal e de ter sido traduzido em 24 países. Até os civilizadíssimos dinamarqueses o compraram em barda.

[Veja nesta fotogaleria as capas dos novos best-sellers]

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Olhemos para os dados nacionais mais recentes, recolhidos pela GfK Portugal e publicados no semanário Expresso. Em 26 de Setembro deste ano, o top de não ficção era liderado pelo livro que está na berlinda. Em segundo lugar morava Aqui e Agora: Mindfulness, de Vasco Gaspar, revelando que à entrada do Outono as pessoas, com toda a legitimidade, procuravam dois tipos de paz interior.

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A 10 de Outubro, o interesse intestinal moderou-se um pouco (o livro caiu para o quinto lugar), sendo ultrapassado pelo aborrecido Código Civil, uma obra boa para ler nos sanitários. Uns dias depois, a 24 de Outubro, já não havia vida digestiva no top, tendo os intestinos passado a rivalizar nos mais vendidos com As Receitas Cá de Casa, de Manuel Luís Goucha.

O dado não é irrelevante para a história. É legítimo e aceitável encontrar o início desta narrativa nos livros com receitas da autoria de chefs como Vítor Sobral, José Avillez e Ljubomir Stanisic. Não nos podemos também esquecer de fenómenos internacionais como Comer, Orar, Amar, de Elizabeth Gilbert (Bertrand), onde, como se vê, a ingestão vem antes de tudo o resto, inclusive do chamado calor humano.

O estilo de "A Vida Secreta dos Intestinos" tanto deve ao registo habitual dos livros de auto-ajuda (nunca li nenhum) como a um Américo Thomaz: não se fica a perceber bem se está falar a sério ou a gozar connosco.

A tendência editorial de livros de culinária tem-se mantido de há uns anos para cá. No mês de Dezembro de 2011 podíamos encontrar, logo abaixo ao número 1, O Céu Existe Mesmo (que se comprovou, com perturbadora surpresa dos cientistas, basear-se numa farsa), Do Convento para a Bimby (Bertrand), volume com mais de 50 receitas para experimentar em casa. Uns meses depois, em Março de 2012, estava em segundo lugar do top de não ficção A Minha Cozinha, de Clara de Sousa (Livro de Hoje), no qual a jornalista revela alguns petiscos familiares como salmão curado e pastéis de fígado.

O boom de livros sobre cozinha foi sendo acompanhado de um interesse cada vez maior das publicações semanais. Semana a semana dedicavam-se a fazer atractivas capas que cometiam sistematicamente o pecado da gula. Um povo guloso exigia dossiers gulosos, na imprensa e na internet. E tinha-os em papel e em digital. Nuns e noutros o importante era, além das provas e degustações, permitir o acesso aos roteiros mais trendy e exóticos do pedaço. Ainda não se nomeou a palavra gourmet, mas a partir desta altura torna-se obrigatória.

O fenómeno da abertura de novos restaurantes frequentados para ver e ser visto fez muito boa gente trocar o bitoque com ovo a cavalo e o bacalhau cozido com batatas e grão pelas mais delirantes variedades de risotto e pelos túbaros com foie gras. Cresceu o apetite por pratos, muitos deles tradicionais, confeccionados com “sofisticação”. Foi o existo, logo enfardo. Com alegado requinte.

[A Vida Secreta dos Intestinos também teve direito a trailer]

Dados os excessos gastronómicos e a quantidade de calorias acumuladas, tinham de vir os livros sobre dietas. Como o já canónico A Dieta dos 31 Dias (A Esfera dos Livros), de 2012, da nutricionista Ágata Roquette, uma espécie de Maya do dietismo, mas, ao que se sabe, com resultados concretos. A estratégia de Ágata passou por um dietismo proteico, fixado na redução decisiva nos hidratos, compensada por proteínas à escolha do comilão freguês. O resgate dos gordos.

Uma nota pessoal, antes de fazer uma breve leitura das obras que nos trazem ao texto – as tais que contam os segredos intestinais de toda a gente. Não me foi fácil fazer a recensão a um livro com a palavra “intestino” na capa, lido em cafés com nomes franceses e na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, junto à prateleira de Literatura Alemã, Obras de Referência (é verdade). O ecletismo literário deste recenseador inclui ler os mais variados géneros literários (dos desportivos em época de pseudo-transferências aos cartazes do PCTP/MRPP) mas, digamos, é menos frequente descer a estes territórios orgânicamente retorcidos. Passear com os Cahiers du Cinema (edição n.º 716) e um dicionário das nossas tripas confidenciais debaixo do braço não é um exercício de fácil explicação à senhora que me serve os croissants com queijo e sem manteiga, se faz favor.

O estilo de A Vida Secreta dos Intestinos tanto deve ao registo habitual dos livros de auto-ajuda (nunca li nenhum) como a um Américo Thomaz: não se fica a perceber bem se está falar a sério ou a gozar connosco. A autora começa por explicar que a sua aproximação ao tema se deve a uma série de dificuldades biográficas que inclui uma pequena ferida na perna direita, um corte de relações com o leite e o glúten e um rapaz com mau hálito. É o que temos de riqueza no argumento – e pelos vistos é suficiente, dada a vasta procura.

Os intestinos podem ser brilhantes. Anda-se a estudar essa poderosa e ainda pouco desvendada ligação entre cérebro e intestino. Uma esperança para quem tem pouca massa cinzenta.

Após lamentar que os médicos aprendam pouco sobre os intestinos durante a sua formação, Giulia exibe os seus galões de doutorada no Instituto de Microbiologia Médica para dizer que vai trocar os intestinos por miúdos. Acreditamos todos na alta sapiência da senhora, mas preferíamos que guardasse o que sabe para as consultas, bem longe. Por alguma razão o Canal Saúde já não existe.

Mas vamos ser corajosos e fazer aquilo que o resumo de Os Maias fez por muitos estudantes hoje com 40 anos: arranjar mais tempo para as imperiais. Aqui fica um primeiro lamiré. “É o tubo digestivo que forma o nosso mundo interior”. Sim, aquilo que se prevê acontece mesmo no final do capítulo: “É nos intestinos que pode efetivamente residir a nossa beleza interior”. Antes, há a introdução no discurso de um termo que se torna recorrente: flato. Somos todos flatistas, segundo Enders. E interesseiros. Só nos lembramos dos maravilhosos intestinos na altura de evacuar.

“Temos vergonha deles” como quem tem vergonha de um parente que aparece nos rodapés dos programas de crime.
Um dos aspectos mais – chamemos-lo assim – inesperados do livro é o facto de se ficar a saber que “os intestinos têm um cérebro próprio”. Não confundir com a evidente sensação de que há pessoas que pensam com os intestinos. Não. Os intestinos podem ser brilhantes. Anda-se a estudar essa poderosa e ainda pouco desvendada ligação entre cérebro e intestino. Uma esperança para quem tem pouca massa cinzenta. Pode tentar a sua sorte num lugar menos prestigiado mas com muito potencial.

Desenvolvemo-nos a partir de “três mangueiras”, para citar a elegante linguagem da doutora. A primeira é o sistema vascular. A segunda é o sistema nervoso na medula espinal. E a terceira é o tubo digestivo. A certa altura fala-se de um tema pouco abordado nos estudos de semiótica: as idas à casa de banho. Faz-se a seguinte afirmação, algo arriscada: “As nossas idas à casa de banho são desempenhos de alto gabarito”. Um elogio ao trabalho de equipa dos dois sistemas nervosos na eliminação dos resíduos de uma forma higiénica e discreta. É verdade. Há autênticos Messis do WC mas sem possibilidade de ver o seu talento reconhecido pela família e pela sociedade (não estou a dar ideias para concursos televisivos estilo “The Voice” aplicados a esta arte). Explica-se depois que os dois esfincteres, o externo e o interno, são amigos. Um impede que flatulemos em público, o outro é mais do género punk rock.

“O intestino grosso tem protuberâncias salientes, numa triste tentativa de imitar um colar de pérolas”

Sei que continuam presos ao texto. Avanço por isso para uma questão na qual qualquer pessoa de bem se pode reconhecer: será que nos sentamos bem na retrete? É daquelas perguntas que está no insconciente colectivo e foi preciso alguém chegar-se à frente para a fazer. Andamos todos a defecar mal – e mesmo aqueles que dizem que se estão a defecar para o mundo não deverão estar a fazê-lo da forma correcta: de cócoras. Só assim se evita problemas mais comuns do que se assume como hemorróidas e divertículos. A solução passa por “estar agachado e sentado ao mesmo tempo”. Vamos todos experimentar? Basta um banquinho onde colocar os pés.

Já entrando nas paisagens que não costumamos olhar, é referido sem dúvidas que o intestino delgado não é um mole qualquer: é “perfeccionista”. E que o intestino grosso, esse, é animado por ambições novas-ricas: “(…) O intestino grosso tem protuberâncias salientes, numa triste tentativa de imitar um colar de pérolas”. Todas estas descrições resvalam com frequência para um excesso do entusiasmo da biógrafa pelo biografado, impedindo aquela distância que marca as melhores biografias. Ora vejamos: “Quanto mais sabemos sobre os intestinos, mais encanto estes ganham”.

Enders, além de nomear micróbios e bactérias lá do sítio e dar pareceres de tipo alimentar, descreve com pormenor “um esófago rendilhado”, “uma bolsa gástrica inclinada”, “um intestino delgado sinuoso”. Lembra-nos um dado que não favorece quem acha que a dança é uma actividade ridícula: “Se vamos dançar, também o intestino se abana alegremente de um lado para o outro”. Obrigado, Giulia.

Tudo é bom e bonito neste livro. Até vomitar é coisa boa. Não vomitar é para os inaptos: “Incapazes de vomitar são, por exemplo, os ratos, as ratazanas, os porquinhos-da-guiné, os coelhos e os cavalos”. Porquê? Porque o seu esófago é comprido e estreito, faltando-lhes os “nervos com talento para o vómito”.

Fiquem mais um pouco que vale a pena. Ainda não se tratou de matéria ainda mais sensível: aquilo que é apelidado de Senhor Castanho, a inaugurar o capítulo “Um Pequeno Apontamento sobre as Fezes”, que, temos de admiti-lo, já esperávamos. Somos ensinados a olhar, com detalhe, as fezes, sua composição, cor e consistência. Preferíamos que alguém o fizesse por nós, mas temos aqui as melhores pistas.

O capítulo VI sublinha que o intestino delgado é “um campo de futebol escondido” e o capítulo VIII é dedicado a uma temática ainda não abordada aqui: a prisão de ventre, poeticamente apresentada como “uma sombra sempre presente”.

A imaginação é coisa que não falta a este ensaio sobre as profundezas do humano. Que escritor contemporâneo se lembraria da situação ficcional que se descreve a seguir? “Há coisas mais agradáveis na vida do que estar num consultório médico com um termómetro na boca e outro no rabo”. Há. E há coisas mais agradáveis do que visualizar esta imagem. E do que ter lido este livro. Ou se calhar não. Os Cahiers assim digerem-se melhor.

Duas notas finais sobre os dois livros que já se podem considerar descendentes desta bíblia sobre “o nosso órgão mais subestimado”. O Intestino Feliz, da Dra. Irina Matveikova, editado no mês passado, também pode satisfazer o leitor viciado nestas magnas matérias. Também se faz um mimo ao “verdadeiro cérebro” que acolhemos dentro do nosso ventre. A sua “função neuronal” é aparentada com a “actividade cerebral da cabeça, de onde provém tudo o que é belo”.

O capítulo VI sublinha que o intestino delgado é “um campo de futebol escondido” e o capítulo VIII é dedicado a uma temática ainda não abordada aqui: a prisão de ventre, poeticamente apresentada como “uma sombra sempre presente”. A nota de tipo cultural surge no momento centro, contribuindo para elevar os parágrafos para outras esferas. Yuyi Beringola, actriz e argumentista com o fardo de desenhar o prólogo, recorda que há uns anos leu numa revista que Ingmar Bergman tinha sempre diarreia antes do primeiro dia de filmagens. “Como o entendo!”” remata. “assei a minha vida assim”.

O Intestino – O Nosso Segundo Cérebro, da Dra. Francisca Joly Gomez, com uma primeira edição também em Outubro, é um manual sisudo, no qual é difícil encontrar uma metáfora à solta, uma prosa poética arrojada. Francisca, em tom clássico e professoral, faz questão de sublinhar o estrelato do seu objecto de estudo: “O intestino tornou-se a ‘grande estrela’ da saúde’”. Fazendo um elenco das doenças intestinais e oferecendo muitos conselhos alimentares, a obra termina com uma série de receitas como salada de rúcula, risoto primaveril com camarões e tiramisu de morangos. Todas certificadas por uma chef do Ritz. O intestino, essa figura pública, merece os melhores hotéis.

Nuno Costa Santos é autor de programas televisivos como “Melancómico”, “Zapping” e “Serviço Público”. Entre outros livros, escreveu a biografia “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco”.

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