“A Internet era uma invenção maravilhosa. Era uma rede informática que as pessoas utilizavam para recordar às outras de que eram uns pedaços de merda horrorosos”.

É o excerto de Odeio a Internet que o editor português colocou em destaque na contracapa e espelha bem o teor e o tom do romance. Publicado originalmente em 2016 com o título I hate the Internet e que nos chega agora pela mão da Quetzal, com tradução de Vasco Teles de Menezes, não é um romance como os outros.

“Odeio a Internet”, de Jarett Kobek (Quetzal)

Bons e maus romances

Odeio a Internet tem a peculiaridade de se apresentar frontalmente como um “mau romance”: “Um livro muito desorganizado, com uma figura central que nunca aparece. O enredo, tal como a vida, não dá em nada e inclui sofrimento emocional sem significado”. É a pura das verdades: é um romance incipiente em termos de enredo, personagens e estrutura. Resta saber se resultou assim por Kobek não ser capaz de melhor ou se, como ele afirma em Odeio a Internet (um romance metaliterário, salpicado de considerações sobre si mesmo) por ter desistido “de tentar escrever bons romances quando percebeu que o bom romance, enquanto ideia, foi criado pela Central Intelligence Agency”. A CIA acreditava “que a literatura americana constituía propaganda excelente que ajudaria a combater os russos” e que “a ficção literária iria celebrar os prazeres de uma existência de classe média produzida pelo dinamismo americano”.

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Porém, “o financiamento do bom romance por parte da CIA teve o efeito secundário de garantir que a literatura americana fosse completamente incapaz de abordar o ritmo da inovação tecnológica” e “ao longo mais de meio século, os escritores americanos de bons romances tinham passado ao lado da única história importante da vida americana. Tinham passado ao lado do mundo em evolução, o mundo dos persuasores ocultos, do desenvolvimento do panorama das comunicações, do turismo em massa, dos amplos subúrbios conformistas dominados pela televisão”.

Capa do n.º1 de The Paris Review, revista literária fundada em 1953 e que Odeio a Internet sugere (ironicamente?) ter sido financiada pela CIA a fim de propagar o conceito de “bom romance”

A ideia de a CIA ter criado o “bom romance” é apenas uma boutade, já que o “bom romance” americano não tem feito outra coisa no último meio século senão apontar o vazio que se oculta atrás dos “prazeres de uma existência de classe média produzida pelo dinamismo americano”. Mas não deixa de ser verdade que a maioria da ficção literária, seja ela americana ou portuguesa, com as suas personagens afectadas e neurasténicas que pensam e falam como escritores pedantes, tem andado a passar ao lado do mundo das pessoas comuns e, em particular da nova realidade que resultou da omnipresença da Internet nas nossas vidas.

Acresce que, no século XXI, as perspectivas comerciais do “bom romance” eram sombrias, já que os “cidadãos do futuro” – os millennials (nascidos a partir do início dos anos 80) e a Geração Z (nascida a partir de meados da década de 1990) – não tinham por ele qualquer apreço e “tinham adoptado a excitação pop dos comics e da ficção científica. Queriam ler sobre o cio de criaturas supranaturais como lobisomens, súcubos, vampiros, meninos feiticeiros, sereias, minotauros, centauros, bruxas, fadas, génios, fantasmas, zombies, anjos, íncubos, hacktivistas, adolescentes modificados geneticamente e oligarcas ultra-ricos”.

As histórias de vampiros têm longa tradição, mas nunca estiveram perto de envolver os milhões movimentados pela Saga Twilight, primeiro em livro (2005-2008, quatro volumes, mais de 120 milhões de exemplares vendidos) e depois em filme (2008-12, cinco filmes, 3.300 milhões de dólares de receitas de bilheteira

Kobek concluiu que a única solução para tratar literariamente esta realidade “era escrever maus romances que imitassem a rede informática nas obsessões com o lixo mediático [e] na apresentação irrelevante e desigual de conteúdos”.

Odeio a Internet cumpre este programa: é um livro fragmentário e disperso, cuja débil e pouco congruente componente ficcional é um mero pretexto para o autor expor as suas reflexões cínicas e ácidas sobre a Internet e o mundo que ela criou. Embora tais reflexões fiquem a cargo do narrador do livro, intui-se que elas coincidem com as do próprio autor. Não só o narrador se assume como autor de Odeio a Internet (e discute a sua natureza e os seus méritos e defeitos – sobretudo os segundos, fazendo questão de lembrar regularmente ao leitor que tem entre mãos um “mau romance”) como o livro inclui como personagem um certo J. Karacehennem, que partilha com Jarett Kobek as iniciais do nome e o facto de ser um escritor americano de origem turca que escreveu um livro sobre um dos pilotos dos aviões empregues nos atentados de 11 de Setembro – Kobek escreveu Atta, um híbrido entre romance e biografia psicológica de Mohammed Atta, o piloto do avião que embateu na Torre Norte do World Trade Center, Karacehennem escreveu Ziad, sobre Ziad Jarrah, piloto do avião que se despenhou na Pennsylvania e tinha como alvo o Capitólio. Para mais, é à personagem Karacehennem que Kobek confia a proclamação das posições mais críticas da Internet, incluindo um virulento discurso proferido do alto de Twin Peaks – uma colina que domina parte da cidade de São Francisco, onde decorre o essencial da acção do romance – e que constitui o clímax de um enredo essencialmente plano.

Mais do que um romance, Odeio a Internet é, nas palavras do narrador/autor, “uma lição de moral sobre a Internet”.

Mapa parcial da Internet em 2005: as distâncias entre nós são proporcionais aos tempos de resposta e as cores correspondem a diferentes domínios

A Internet para totós

Em Odeio a Internet as funcionalidades e plataformas da Internet e as empresas mais emblemáticas da “nova economia digital” começam por ser explicadas de forma muito esquemática, pedagógica e pueril, como se o leitor não tivesse a mais pequena ideia sobre o assunto, mas a postura ingénua é enganadora, porque logo a seguir a explanação revela uma visão cínica e impiedosa. Compreende-se que Kobek tenha escolhido colocar as suas ideias na boca das personagens e do narrador de um romance, pois algumas delas poderiam causar-lhe sarilhos se fossem apresentadas sob a forma de ensaio ou de artigo de jornal.

Sobre o Facebook

“Todas as melhores mentes da filosofia e do romance já tentaram responder a estas perguntas [sobre o sentido da vida] e nenhuma […] foi capaz de produzir uma resposta que funcionasse. O Facebook é fantástico porque compreendemos finalmente porque é que temos cidades natais, porque é que nos envolvemos em relacionamentos, porque é que comemos os nosso jantares estúpidos, porque é que temos nomes, porque é que somos donos de carros idiotas e porque é que tentamos impressionar os amigos […] Estamos na Terra para fazer enriquecer ainda mais o Mark Zuckerberg” (comentário da personagem J. Karacehennem)

“Com a Internet, as pessoas produziam resmas de propriedade intelectual sobre a qual não tinham controlo. Se enviássemos uma mensagem a alguém pelo Facebook, o Facebook ficava dono dessa mensagem para todo o sempre e servia-se dela como um pretexto para disponibilizar anúncios. As nossas manifestações de indignação […] davam dinheiro a ganhar ao Mark Zuckerberg e aos investidores dele”.

Mark Zuckerberg: a aranha e a sua teia (Justin Sullivan/Getty Images)

Sobre o YouTube

“Os vídeos mais populares do YouTube eram os seguintes: 1) Raparigas giras a dar conselhos de maquilhagem e para o cabelo; 2) Coisas rápidas captadas fotograficamente em câmara lenta; 3) Gatos feios a miar na casa de banho; 4) Celebridades prestes a cometer uma gaffe social; 5) O Ray Jay Wiliams a gabar-se do tamanho dos genitais; 6) Um comentador sueco de videojogos que dava pelo nome de PewDiePie e era indistinguível do Božidar Boža, de Petnjica, no Montenegro, um homem que tinha levado um coice de uma mula em criança e se encontrava fadado a viver o resto da vida como o idiota da aldeia” (pode ver aqui os 10 vídeos portugueses mais vistos em 2017, mas poupará tempo e neurónios vendo apenas o resumo de 1’32).

[Os 10 vídeos nacionais mais vistos em 2016:]

Sobre o Twitter

“O Twitter [é] um mecanismo através do qual os adolescentes se atormentavam mutuamente a caminho do suicídio enquanto se mostravam obcecados com celebridades efémeras”.

“A grande maioria dos tweets era escrita por narcisistas interessados em fazer com que as outras pessoas soubessem a ampla variedade de opiniões que tinham acerca de todo e qualquer assunto. Esses assuntos incluíam: celebridades, o que os narcisistas andavam a comer ao jantar, políticos de outros partidos, celebridades […], o que os narcisistas andavam a comer ao pequeno-almoço […], as empresas de que os narcisistas eram fiéis clientes, marcas de fast food, celebridades […],o que os narcisistas andavam a comer ao almoço”.

Jack Dorsey,co-fundador e CEO do Twitter

“As pessoas de todo o espectro político adoravam o Twitter. Activismo imediato, com uma resposta imediata. Havia a sensação de que estavam a acontecer coisas, de que as pessoas estavam atentas. Na verdade, tudo o que essas pessoas que exerciam a liberdade de expressão no Twitter estavam a fazer era pura e simplesmente a criar conteúdos sobre os quais não possuíam direitos para uma empresa na qual não tinham participação”.

“O Twitter faz com que toda gente pareça um miúdo de 15 anos irritante lamuriento” (comentário da personagem J. Karacehennem).

A sede da empresa Twitter, em São Francisco, cidade onde decorre a (pouca) acção de “Odeio a Internet”

A personagem Adeline apercebe-se de que o tom dominante no Twitter é a indignação e que o assunto dominante são os programas de televisão e fica confundida, pois tinha passado anos “a ouvir dizer que a Internet iria transformar a cultura americana e criar novas formas de expressão. Mas, no fim de contas, eram só mais pessoas a falar de televisão”.

Conteúdos das mensagens no Twitter: 3.6% notícias (a verde vivo), 3.8% spam (roxo), 5.9% auto-promoção (laranja), 40.1% tagarelice inane (castanho), 37.6%)conversação (azul), 8.7% transmissão de conteúdos publicitários (verde seco)

Sobre o Instagram

“Os utilizadores do Instagram publicavam fotografias de coisas em que tinham gasto dinheiro ou então nas quais gostariam de vir a gastar dinheiro. Era uma orgia infinita e assexuada de carros, armas, comida, roupa, cães, gatos, ioga, biquínis, maços de notas, obras de arte, implantes mamários, aumento de nádegas, férias de sonho, tatuagens, discos de vinil, telemóveis, calçado, computadores portáteis, herdades no campo inglês, aviões, piercings, animais de estimação exóticos […], mojitos e outras bebidas alcoólicas deliciosas, aumento de lábios, carteiras, relógios […]”

A conta de Instagram de Selena Gomez foi, em 2017, a que teve maior número de seguidores: 132 milhões. Os restantes lugares do top 25 são preenchidos maioritariamente por celebridades do desporto, da música pop e do cinema

Sobre a Google

“[A Google] é uma empresa de mentirosos. O modelo de negócio dela gira todo à volta de uma mentira. A publicidade é a arte de mentir com toda a gente a saber que estamos a mentir, mas sem que ninguém nos denuncie, por termos disfarçado as nossas mentiras por trás do dinheiro […] Não há outra maneira de ganhar dinheiro com a Internet propriamente dita sem ser por via da publicidade […] A Google quer que acreditemos que está a mudar o mundo, a proporcionar um milhão de serviços à pala e que fazemos todos parte da mesma equipa, mas está a mentir. A única coisa que a Google faz é disponibilizar anúncios” (comentários da personagem Christine)

Sobre o Google X

As tecnologias desenvolvidas pelo Google X, “o laboratório experimental da Google da treta […], não iam dar em nada. Constituíam visões banais do futuro tal como imaginadas pelos fãs da ficção científica […] O verdadeiro propósito do Google X era funcionar como publicidade à visão mítica da Google enquanto empresa inovadora”.

Uma das linhas de investigação do “laboratório experimental da Google”: óculos de “realidade aumentada”

Sobre a Apple

“O que [Steve Jobs] prometia era simples: há uma escolha. Podemos morrer feios e sem amor ou podemos comprar um computador ou um iPod excessivamente caros para ouvir o Bob Dylan dos primórdios […] A nossa básica falta de criatividade será disfarçada pela pertença a um determinado grupo. As pessoas vão achar-nos interessantes, lindos e esclarecidos. […] Não há nada que indique mais individualidade do que 500 milhões de aparelhos electrónicos fabricados por escravos”.

2010: Steve Jobs apresenta o iPhone 4

Sobre a Internet em geral

“O mais curioso era que o Facebook, o Twitter, o Tumblr e o Blogspot […] constituíam o habitat dos supostos intelectuais e radicais sociais”. Era aí que “andavam a escrever lições de moral em aparelhos fabricados por escravos, em plataformas de expressão detidas pelo Patriarcado”.

“A ilusão da Internet era a ideia de que as opiniões das pessoas que nada tinham, dadas por vontade própria, possuíam algum impacto no mundo. O que era, claro, uma treta pegada […] Não eram os governos que mandavam no mundo. Não eram as celebridades que mandavam no mundo”. Os banqueiros, investidores e produtores “é que mandavam no mundo […] A ilusão das opiniões, dadas por vontade própria, era encorajada por dar dinheiro a ganhar aos banqueiros”, investidores e produtores.

O que “as opiniões dadas por vontade própria não faziam de todo era mudar o mundo […], não passavam de mais palavras […] e eram as palavras que oleavam a engrenagem do capitalismo […] As palavras não equivalem a poder […] Na Internet, o único efeito das palavras das pessoas que nada tinham era infligir sofrimento noutras pessoas que nada tinham”.

Percentagem de adolescentes que se dizem vítimas de cyberbulling em diferentes plataformas da Internet

A Internet é ideologicamente neutra?

Torna-se aqui legítimo perguntar qual a razão para que algo que nos tem sido apresentado como um extraordinário avanço para a Humanidade sirva para que um grupo restrito se torne obscenamente rico, enquanto os pobres se empenham em infligir sofrimentos uns aos outros. Resultará do mau uso dado pela natureza humana a uma tecnologia que, na sua essência era neutra? Ou terá “a visão inicial utópica da Internet” sido deliberadamente pervertida de forma a favorecer estes comportamentos e resultados?

J. Karacehennem defende que a Internet não é neutra e que “todo o dinheiro e toda a tecnologia estão imbuídos da ideologia que os originou”. No seu discurso inflamado no alto de uma colina de São Francisco – onde tem por únicas testemunhas uns turistas asiáticos que o olham com perplexidade – afirma que a Internet foi criada pelas forças armadas – nasceu, com efeito, das investigações da DARPA (Defense Advanced Reasearch Projects Agency) – e de não ter havido o envolvimento de “uma única mulher nas tecnologias fundamentais que alimentam o nosso universo digital”. E é por a Internet ter sido “projectada por homens belicistas” que tem o carácter que tem.

Karacehennem acusa os criadores da Internet e os empresários da economia digital – entre os quais estão Larry Page, CEO e co-fundador da Google; Sergey Brin, o outro co-fundador da Google; Eric Schmidt, CEO da Google; Steve Jobs, fundador da Apple; Sheryl Sandberg, “chief operating officer” do Facebook; Ray Kurzweil, director de engenharia da Google – de serem nerds fascinados pelas “tépidas ideias pseudo-filosóficas de Ayn Rand e da ficção científica de porcaria”.

Larry Page (à esquerda) e Sergey Brin (à direita), co-fundadores e presidentes da Google; foto de 2008 (Michael Nagle/Getty Images)

Para Kobek, a elite de Silicon Valley foi intelectualmente formatada por autores de fantasia e ficção científica como Robert Heinlein e J.R.R. Tolkien e por Ayn Rand, que “escreveu livros que explicavam que os beneficiários da Segurança Social eram lixo e mereciam morrer na sarjeta” e “diziam às pessoas muito ricas que elas eram boas, que essa procura de riqueza era moral e justa. Muitas dessas pessoas acabaram como CEOs de empresas ou em níveis superiores do governo americano”. E muitas delas são nomes sonantes da nova economia digital, o que faz de Rand, “muito possivelmente, a pensadora mais influente dos últimos 50 anos” (ver Ayn Rand: A Revolta de Atlas é tão perigoso como Mein Kampf?).

1.ª edição de “Atlas Shrugged” (1957), o livro onde Ayn Rand expôs alguns dos princípios da sua filosofia objectivista, envoltos em excipiente ficcional. Não só foi um êxito no ano em que foi publicado como tem continuado a vender de forma consistente – meio milhão de exemplares só em 2009

Na lista de seguidores de Rand apresentada por Kobek estão os políticos Paul Ryan e Ron Paul, os empresários Peter Thiel e Jeff Bezos e Alan Greenspan, presidente da Reserva Federal dos EUA entre 1986 e 2006 – abarcando as presidências de Ronald Reagan, George Bush pai, Bill Clinton e George Bush filho – e que Kobek elege como responsável n.º 1 da desregulamentação dos mercados financeiros, conduzindo a “uma série de bolhas especulativas responsáveis pela destruição da economia. É possível que a maior proeza de Ayn Rand não tenha sido a autoria de dois romances merdosos. É possível que a maior proeza de Ayn Rand tenha sido provocar o colapso da economia 25 anos depois de morrer”.

O mundo segundo Kobek

A visão cínica, crua, frontal e desassombrada de Jarett Kobek não se cinge à Internet e aos seus gurus e à política americana. Abarca muitos outros aspectos e é particularmente crítica da desigualdade de género e do racismo, que são tema recorrente ao longo do livro.

Deixam-se aqui amostras das suas opiniões sobre dois temas do nosso tempo – celebridades e desporto – e de dois temas intemporais – desigualdade de género e guerra.

Sociedade patriarcal

“Os homens tinham passado milénios a tratar as mulheres mal como merda […] Sendo dominadas pelos homens, quase todas as sociedades atribuíam a máxima importância a comer e a matar. Essa ênfase na força em relação à inteligência era uma maneira engenhosa de não ter de lidar com o facto de as mulheres serem mais espertas do que os homens”.

Guerra

“As guerras eram festas gigantescas das elites dominantes, que, por vezes, achavam que era capaz de ser divertido pôr os pobres a matarem-se uns aos outros […] Chamavam heróis aos pobres e deixavam-nos propagar os mitos da nobreza em combate e da fraternidade, que eram ideias que serviam para convencer novas gerações de pobres de que não havia problemas em matar outros pobres”.

Desporto

“Os sistemas formalizados através dos quais homens adultos atiravam bolas de um lado para o outro recebiam o nome de desporto. […] Como qualquer sistema formalizado de controlo, o desporto era altamente conflituoso. O desporto, como todo o sistema formalizado de controlo, tinha a ver com dinheiro”.

Cristiano Ronaldo é a pessoa/entidade com mais likes no Facebook: 103.576.615 em Dezembro de 2017. Entre as nobres funções desempenhadas pelo Facebook está a promoção da venda de cuecas estilosas

Celebridades

“A ideologia implícita no entretenimento popular era que os clientes podiam vir a ser tão famosos como os artistas. Bastava-lhes esforçarem-se o suficiente e acreditar nos sonhos deles. […] As estrelas pop […] existiam graças à ilusão de que a fama que tinham constituía uma experiência partilhada com os fãs. Os fãs não eram consumidores. Os fãs eram companheiros numa mesma viagem ao longo da vida”. O Twitter é hoje o principal mecanismo que alimenta esta ilusão.

A conta de Twitter com maior número de seguidores (108 milhões, dados de Dezembro de 2017) é a da cantora Katy Perry, seguida de perto pela de Justin Bieber (105 milhões)

A Internet e a ilusão do conhecimento

Odeio a Internet centra a sua crítica da Internet nas facetas mais tóxicas e espectaculares:

1) O espírito de lynch mob que tomou conta das redes sociais, agitadas por “ondas de indignação” cada vez mais frequentes, devastadoras e voláteis;

2) O trolling, ou seja a disrupção de qualquer tentativa de manter um diálogo construtivo ou minimamente civilizado numa comunidade online pela inserção de mensagens de teor polémico, ultrajante ou simplesmente tolo – o troll não tem necessariamente de crer no que escreve, professar uma ideologia ou ter uma opinião sobre o tema em discussão no fórum ou no newsgroup, o seu objectivo é apenas criar discórdia e caos;

3) O cyberbulling, que, como o trolling, visa causar respostas emocionais, mas que tem alvos e propósitos definidos: causar o máximo de humilhação e sofrimento a uma pessoa em particular;

4) O revenge porn, ou seja, a difusão na Internet de imagens sexualmente comprometedoras sem consentimento dos envolvidos e com o intuito de lhes causar humilhação e sofrimento;

5 O culto das celebridades e no acompanhamento obsessivo dos mais fúteis detalhes da sua vida através das redes sociais;

6) O teatrinho patético daqueles que, nas redes sociais, se esforçam por dar ideia de que a sua banal e mesquinha vida fervilha de excitação e de “consumo conspícuo” – nunca o conceito, enunciado em 1899 por Thorstein Veblen, em The theory of the leisure class, teve tão exuberante expressão;

É provável que não reconheça este rosto, uma vez que não tem conta no Twitter, Instagram ou Facebook e é provável que não usasse cuecas estilosas: é o sociólogo Thorstein Veblen (1857-1929)

Mas mesmo os utilizadores da Internet que não se deixam arrastar para estas vertentes mais malévolas, praticadas por uma categoria que Kobek denomina de “dumb assholes” (na tradução portuguesa ficou “uns parvalhões de uns imbecis”), acabam por fazer da Internet um uso superficial, disperso e improdutivo – pelo menos quando visto à luz da ideia utópica da Internet como uma poderosa ferramenta que iria elevar a humanidade para um patamar superior de sabedoria e iria fazer desabrochar talentos insuspeitado um pouco por todo o lado.

Tome-se o caso da informação: a Internet veio agravar a crise dos media convencionais – e em particular dos jornais e revistas – porque cada vez mais pessoas vão buscar a sua informação quase exclusivamente às redes sociais e aos e-mails reenviados. Há várias razões para esta deslocação, mas uma delas é o alastramento, à esquerda e à direita, da convicção de que os media tradicionais são “uns vendidos”, que estão ao serviço dos grandes interesses financeiros – quiçá sob o controlo directo do Clube de Bilderberg – pelo que muitas pessoas que julgam pensar pela sua própria cabeça proclamam, em tom desdenhoso, que deixaram de ler jornais porque “aquilo é tudo manipulado” e passam a alimentar-se apenas dos hoaxes que são vertidos na sua caixa de correio e das atoardas e sound bites que são difundidos nas redes sociais.

O jornalismo enferma das limitações e falibilidade inerentes a todos os ramos da actividade humana e, devido à crise dos media tradicionais, os jornalistas estão, mais do que nunca, vulneráveis a pressões. Todavia, são profissionais treinados: cabe-lhes ponderar a credibilidade das fontes e o interesse público das “revelações”, foram adestrados na disciplina do fact-checking, têm de obedecer a um código deontológico e sabem que o que publicam (e o que omitem) irá afectar a sua credibilidade individual e a do medium para que trabalham e a sua carreira.

No universo das redes sociais e do reenvio de e-mails não há filtros nem responsabilidades nem deontologia e é aí que hoje cavalgam, de rédea solta, as mais descabeladas atoardas, as mais absurdas “revelações” e as mais delirantes teorias conspiracionistas. E não há nada que as consiga travar: alguns hoaxes, já amplamente desmentidos, andam à deriva no fluxo e refluxo das cibermarés e voltam a dar à costa passados vários anos e há sempre cibernautas amnésicos que os lêem como se fossem uma “nova revelação” e relançam-nos em circulação.

Na Internet vigora uma variante da Lei de Gresham, que prevê que a má moeda expulse a boa moeda: a informação tóxica e sensacionalista sobrepõe-se à informação isenta e objectiva e quanto mais tolo for um boato mais possibilidades tem de ser retransmitido.

Thomas Gresham (1519-1579), mercador e banqueiro inglês cujo nome foi atribuído por Henry Dunning Macleod à lei que enunciou em 1860

Claro que as notícias são apenas um aspecto do mundo digital. Na Internet há de tudo, o sublime e o infame, a sabedoria e a obtusidade – porque surge então o enviesamento em favor do lixo? A Internet colocou à distância de um clique um repositório de conhecimento que faz a Biblioteca de Alexandria parecer um livro de bolso, reuniu o que de mais refinado e sofisticado o intelecto humano produziu ao longo da história da civilização. Quem tenha, por exemplo, uma genuína paixão por astrofísica, somada a determinação e tempo livre, pode, ao fim de alguns anos a Googlar com critério, saber tanto sobre o assunto como um professor do MIT, mesmo que não possua nenhuma credencial académica que o ateste. O mesmo é válido para quem decide dedicar-se ao estudo da pintura do Trecento italiano. Porém, a Internet tem-se mostrado muito mais eficaz a criar crentes na homeopatia e nos atentados de 11 de Setembro como inside job do que astrofísicos e amantes de Giotto. Sem discernimento, espírito crítico e lastro de conhecimento, os cibernautas não são capazes de separar a informação válida da tóxica e até privilegiarão esta última, porque costuma ser apresentada de forma simplista e fácil de digerir e engalanadas com as cores berrantes do sensacionalismo e do conspiracionismo – muitos e-mails “tóxicos” são fáceis de identificar, antes mesmo de se ler o seu conteúdo, pelo uso sistemático de maiúsculas, pela profusão de pontos de exclamação e pela proclamação de se trata de “uma notícia que os jornais e as televisões têm ocultado!!!”.

Detalhe de uma nota de um dólar: o olho no topo da pirâmide é visto nos círculos conspiracionistas como prova de que a seita dos Illuminati teve papel decisivo na fundação dos EUA e tem dominado desde então os vários governos americanos

É como se a Internet nos facultasse a possibilidade de almoçar e jantar de borla todos os dias em restaurantes de luxo e, em vez disso, escolhêssemos ir chafurdar nos caixotes do lixo nas traseiras dos restaurante de fast food. E se uns têm o hábito de frequentar sempre o mesmo caixote do lixo, onde sabem que encontram apenas as “notícias” que confirmam os seus preconceitos, há também a variedade ecléctica, que, não possuindo sentido crítico ou memória, engole com a mesma avidez a propaganda islamofóbica, anti-emigração, pró-nacionalista e defensora dos “valores tradicionais”, proveniente da extrema direita, e os panfletos contra o capitalismo, a globalização, a agro-indústria e os organismos geneticamente modificados difundidos pela extrema esquerda. Como argumenta convincentemente Nicholas Carr em Os superficiais: O que a Internet está a fazer aos nossos cérebros (Gradiva) o tipo de relação que a maioria das pessoas estabeleceu com a Internet privilegia a superficialidade, a frivolidade, a inconsequência e a efemeridade, o que faz com que os espíritos desprovidos de leme e lastro intelectual sejam como cascas de noz à deriva nas ondas alterosas, hoje empurrados para norte por uma atoarda, amanhã levados para sul por mais uma “notícia que os jornais e as televisões têm ocultado!!!”.

Rumores, denúncias, teorias

O que todas estes rumores alarmistas, denúncias sensacionalistas e teorias conspirativas têm em comum é serem apresentados de forma ultra-condensada e simplista, por vezes mesmo simplória e pueril, nivelada pelo mínimo denominador comum, e pretendem explicar, num vídeo de cinco minutos ou num slide show com uma dúzia de frases-chave conceitos e problemas cheios de facetas e subtilezas, que exigiriam pelo menos um livro de 500 páginas para a panorâmica geral. Esta é outra das ilusões fatais que a Internet criou em muitos espíritos: a de que existem explicações e respostas simples para problemas complexos e que bastará ver um vídeo amador de cinco minutos sobre recursos energéticos para se ficar a saber tudo o que é preciso sobre o assunto.

A era da Internet estava ainda longe quando Charles Darwin constatou que “a ignorância mais frequentemente gera confiança do que o conhecimento”, ideia que seria reafirmada pelo historiador americano Daniel Boorstin já no século XX: “O maior obstáculo à sabedoria não é a ignorância – é a ilusão do conhecimento”. Ao contrário do que os néscios crêem, a sabedoria não é coisa que se conquiste instantânea e definitivamente com o visionamento de um slide show ou de uma TedTalk, é uma guerra interminável, a ser travada todos os dias e a todas as horas, contra a preguiça mental e as ideias pré-concebidas.

A Internet, o culto da estupidez e o fabrico de “notícias”

Há uma convicção generalizada de que a Internet nos irá empurrar a todos automaticamente para a “sociedade do conhecimento”. Mas se é verdade que a Internet é um vasto repositório de conhecimento, este está disperso numa massa ainda mais vasta de gatinhos a tocar piano, de adolescentes que se filmam a si mesmo a fazer coisas muito estúpidas e/ou perigosas, de discussões acesas sobre a legitimidade de um rapaz branco como Justin Bieber usar dreadlocks, de fotos de pratos gourmet, de listas de cores de cabelo que estarão na moda esta Primavera, de conselhos de puericultura, de selfies tiradas por gente anónima frente a monumentos célebres e de anúncios a workshops de unhas de gel. Há quem exalte esta abundância esquecendo que existe uma gradação hierárquica entre 1) dados, 2) informação, 3) informação estruturada, 4) conhecimento e 5) sabedoria – que é o conhecimento aplicado à vida – e que quem navegue pelo ciberespaço sem critério passará a maior parte do tempo a frequentar os patamares 1 e 2.

A Bíblia é também um corpo de conhecimento que não prima pela congruência e que contém elementos anacrónicos, irrelevantes e até tóxicos, lado a lado com passagens meritórias. Num dos seus trechos mais inspirados (Provérbios 3: 13-15) lê-se: “Feliz é o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire entendimento, pois melhor é o lucro que ela dá do que o lucro da prata, e a sua renda do que o ouro. Mais preciosa é do que as jóias, e nada do que possas desejar é comparável a ela”.

Porém, a sabedoria tem visto a sua cotação baixar vertiginosamente desde os tempos bíblicos e vale hoje menos do que latão, pois estamos numa era em que a estupidez se tornou cool.

Anúncio da campanha “Be stupid”, da Diesel

Um caso revelador do Zeitgeist foi a campanha “Be stupid”, lançada em 2010 pela Diesel, uma marca italiana de calças de ganga acessíveis apenas a carteiras razoavelmente recheadas.

Outro exemplo paradigmático do culto da estultícia são os desafios insensatos que os adolescentes lançam através da Internet, como sejam a ingestão de cápsulas de detergente (ver Desafio das cápsulas de detergente: mais um fenómeno viral e altamente perigoso), ou a popularidade dos cyber reality shows envolvendo YouTubers cuja fama resulta exclusivamente de exibirem comportamentos pueris e estroinas (ver Cisão na “Casa dos YouTubers”: O último episódio de um negócio que vale milhões).

Anúncio da campanha “Be stupid”, da Diesel

Porém, ultimamente tem-se tornado evidente que uma percentagem crescente da informação tóxica que circula na Internet não são apenas hoaxes aleatórios produzidos por adolescentes com sentido de humor retorcido, de gente com queda para a mistificação, de ressabiados solitários ou de grupúsculos radicais – parte desse caudal “informativo” tem uma agenda oculta. Quando começou a perceber-se que as falsidades postas a circular na Internet têm o poder de influenciar a opinião pública e o resultado de eleições (nas democracias liberais), alguns Estados – nomeadamente a Rússia – começaram a disseminar na Internet, através dos seus serviços de informações ou sub-contratando adolescentes macedónios, uma miríade de falsidades concebidas para distorcer a realidade em função dos seus interesses.

Em Veles, Macedónia, a paisagem pacata e bucólica, oculta um sinal dos novos tempos: um grupo de adolescentes desta cidade criou uma centena de websites noticiosos que, durante a campanha presidencial americana de 2016, difundiram boatos favoráveis a Donald Trump. Um dos rapazes envolvido neste esquema ganhou 60.000 dólares em apenas seis meses

Jarett Kobek está tão empenhado em expor a agenda oculta da elite de Silicon Valley que se esquece de que, uma vez montada a rede, ela não está sob o controlo absoluto dos seus criadores e que forças ainda mais maquiavélicas a podem usar para os seus próprios fins.