No primeiro controlo de acesso à base militar, tudo normal. Cartão de Cidadão para lá, a verificação da praxe e o cartão de volta. Luz verde para entrar no Comando Aéreo de Monsanto. Logo a seguir, já dentro da base da Força Aérea, num edifício discreto com vista para o Tejo, novo controlo. “Estamos a entrar em território NATO, tem mesmo de ser assim”, explica o porta-voz do Joynt Analysis and Lessons Learned Center (JALLC), o tenente-coronel Paulo Gonçalves.

É o topo da estrutura NATO em Portugal mas poucos lhe conhecem o nome. O centro está instalado no coração de Lisboa e contam-se pelos dedos aqueles que já percorreram as salas do centro. Produz relatórios que mudam a forma como os militares da NATO treinam, como combatem e como se defendem, mas é (quase) tão discreto como um serviço de informações — é quase secreto. Aos comandos do centro de lições aprendidas da Aliança Atlântica está, pela primeira vez, um general português: Mário Barreto. O JALLC faz quinze anos esta quarta-feira e é visitado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Centro de investigação analítica da NATO comandado por um português. Pela primeira vez

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Quais são as tarefas principais dos analistas militares e civis do JALLC? Missões como descobrir a origem dos materiais comprados pelos talibãs para construir as bombas usadas contra os militares da organização no Afeganistão; saber quais são as rotas que seguiam; e o grupo de países “amigos” dos terroristas. Andreas Tschakert recebeu a tarefa assim que chegou ao centro da NATO e, durante um ano, este militar do exército alemão viajou entre Lisboa, Bruxelas e Kabul, fez dezenas de entrevistas e conduziu outros tantos interrogatórios até produzir um dos relatórios mais importantes para a segurança dos militares na organização transatlântica.

São cerca de 50 analistas, ao todo, entre civis e militares. As “encomendas” de cada investigação chegam sempre do topo da hierarquia NATO e, em regra, demoram seis meses a ser concluídas. Em média, saem oito relatórios por ano do centro de Monsanto. “A maior parte dos projetos feitos aqui resultam de um acordo entre os dois comandos e o quartel-general da NATO sobre quais são os problemas complexos a nível estratégico que precisam de ser analisados para fazermos recomendações e a aliança evoluir”, explica ao Observador Mário Barreto. O general chegou ao cargo há um ano e acabou por estar aos comandos do centro num dos momentos de maior transformação interna.

Com o terrorismo na ordem do dia, a hierarquia da NATO pretende que o centro de Lisboa foque o seu trabalho precisamente nas lições aprendidas. É preciso apoiar a preparação de novas missões e antecipar futuras ameaças. A cerimónia que assinala os 15 anos do JALLC em Monsanto, serve para destacar essa mudança.

Alta segurança. Até as mulheres da limpeza têm credenciação NATO

A segurança no centro de Monsanto é apertada e não há muitos civis que tenham passado pelas salas dos analistas. Numa visita ao espaço, o Observador teve acesso aos corredores do JALLC, um centro de ação discreta mas cuja influência se faz sentir muito para lá da organização. Basta pensar que os 29 países NATO – entre os quais Portugal, Estados Unidos, Reino Unido, Turquia e outros 25 Estados europeus – têm de cumprir determinadas regras de treino para que os seus militares possam integrar contingentes da organização transatlântica.

O alemão Andreas Tschakert fez um estudo sobre os resultados do investimento financeiro no treino de tropas para as Forças Armadas dos Estados Unidos

Mas as recomendações do centro de Monsanto não se esgotam no âmbito militar. “É certo que o nosso trabalho está focado no contexto militar, porque trabalhamos para uma organização militar”, refere Andreas Tschakert, “mas claro que há lições e recomendações identificadas que podem ser usadas por outras organizações”. Como? As Nações Unidas podem aproveitar a intelligence recolhida e desenvolvida pelos analistas do centro para impor sanções aos Estados que, por exemplo, colaborem com ou facilitem atividades terroristas.

Indiscutível é o facto de as recomendações geradas em Monsanto acabarem por formar a filosofia NATO. Não é de estranhar, por isso, que os cuidados com a segurança estejam por todo o lado. Em cima da secretária de cada um dos cerca de 60 analistas civis e militares do JALLC estão montados dois monitores, ligados a computadores independentes separados por, pelo menos, um metro. Um está ligado à internet, o outro à intranet.

Há uma razão – algo técnica, a fazer lembrar filmes de ficção científica – para esse cuidado com a proteção dos dados sensíveis guardados nos computadores dos analistas: a frequência gerada pelo movimento leitor de CD pode ser usada para danificar os discos rígidos no interior da torre. Na prevenção, os dois equipamentos não se aproximam um do outro.

Essa preocupação com a segurança vai aos detalhes mais inesperados. Num centro onde até os funcionários da empresa que trata da limpeza dos escritórios do JALLC são “classificados com nível NATO”, a ementa do dia, distribuída por correio eletrónico aos funcionários, só pode ser consultada no tal computador com acesso à intranet. Apenas porque é partilhada com a classificação “documento NATO”.

Os analistas civis e militares estão distribuídos por mais de uma dezena de salas ao longo de um corredor de menos de 50 menos em forma de L. São três a quatro elementos por sala, uns espaços de paredes claras, sem personalidade, com um ambiente estéril a fazer lembrar os escritórios de uma multinacional.

O ex-militar português Filipe Vieira é um dos 60 analistas civis militares que trabalham no JALLC

Filipe Vieira conhece bem o espaço. Chegou como analista militar em 2011 e cumpriu o tour de três anos – um pouco mais, na verdade, porque essa passagem foi alargada alguns meses para que pudesse terminar um relatório complexo que tinha em mãos, uma análise a 20 anos de missões da NATO. Acabou por concorrer a um lugar de analista civil que abriu entretanto e ficou pelo centro. Só ele já tem 31 cursos de análise concluídos nos últimos seis anos. “Para ser analistas do JALLC é preciso ter um determinado perfil”, explica o militar na reserva. “O pensamento lógico e racional é o mais importante, porque a base da análise passa por trabalhar sobre factos.” As opiniões não têm lugar no relatório que os analistas produzem, à média de oito por ano. “Aliás, a nossa opinião, mesmo para as recomendações que fazemos, tem de ser assente em irrefutable evidences”, aquilo que se pode traduzir por factos indiscutíveis, concretiza Filipe Vieira.

Nem sempre as análises pedidas têm que ver com terroristas, bombas, vidas humanas ou ação militar no sentido mais restrito. Em determinado momento, foi pedido ao ex-militar português que estudasse de que forma as missões NATO poderiam acautelar a proteção de edifícios históricos nos teatros de operações. “Não estava minimamente para aí virado”, admite Filipe Vieira. Acabou por mudar de opinião com o tempo. “A doutrina NATO mudou depois do nosso trabalho, e isso é altamente compensador”, refere. “Se houver, no futuro, edifícios e património internacional que não vai ser destruído ou afetado por causa de mudança de doutrina ou se houver civis ou militares que não vão morrer ou ficar feridos, para mim não há nada mais recompensador”, sublinha o analista.

Militares estão de passagem. Aqui a guerra é intelectual

Os militares chegam e partem, nessa contínua rotação de tours temporários. Só os civis estão em permanência no centro, mas isso até é visto com bons olhos pelo comandante do JALLC. “Os militares rodam em períodos de três a quatro anos e esse é um bom número para desempenhar uma função e ser substituído por outra pessoa”, apesar de, “em certas funções”, ser importante “haver continuidade”, diz Mário Barreto.

Se Filipe Vieira esteve dos dois lados desta realidade – chegou como militar mas agora pertence aos quadros do centro como analista civil –, Andreas veio da Alemanha para Lisboa com a certeza de que a sua passagem por Monsanto tinha uma duração bem definida desde o início. “Tenho pena de ir embora”, confessa o militar de 44 anos, a poucas semanas de terminar o seu tour.

A sua passagem pelo centro de lições aprendidas foi um choque, em comparação com tudo aquilo que tinha feito até então. “A parte mesmo interessante – eu sou do Exército e é assim em todo o lado – é que é tudo sempre muito tático. Por isso, esta foi a uma das melhores oportunidades da minha carreira, em que pude fazer trabalho intelectual em projetos sobre os quais não tinham ideia nenhuma”, diz.

Apesar de lhe ter sido atribuída – a ele e à sua equipa – a missão de seguir a “pisada digital” das bombas detonadas no Afeganistão e de, no fundo, lhe ser pedido que encontrasse uma forma de reforçar a segurança dos camaradas em missão naquele país, Andreas considera que esse nem foi o momento mais difícil na passagem pelo JALLC. O maior “peso nos ombros”, sentiu-o quando teve de analisar a mais valia de reforçar o investimento financeiro em treinos das tropas. O “cliente” desse estudo eram as forças armadas norte-americanas. “Foi um grande desafio e coloca pressão, porque as expetativas são muito altas, mas no final uma pessoa sente-se aliviada por concluir o trabalho, foi uma boa experiência de trabalho”, considera agora.

Os analistas têm de estar preparados para lidar com essa pressão. Essa avaliação é feita ainda antes de os elementos do JALLC serem selecionados, durante o concurso – no caso dos analistas civis – ou aquando da seleção pelos respetivos ramos, no caso dos militares, que podem chegar a Monsanto vindos de qualquer um dos Estados da NATO.

O universo NATO muda, mas devagar

No papel, tudo parece fluir rapidamente. Na prática, não é tanto assim. Primeiro que um estudo realizado pelo JALLC tenha resultados é preciso tempo. No último ano, desde que assumiu as funções de comando no centro de Monsanto, Mário Barreto deparou-se com essa realidade.

“É um processo lento, porque todo este processo de transformação é lento e contínuo”, explica o general. Ainda que nem sempre isso seja visto com maus olhos. “Nalguns casos, é bom que o processo de implementação das medidas não seja muito rápido, até para se assimilar o impacto que tem, a nível financeiro e político”. Ser mais lento “permite dar passos mais seguros porque, para desenvolver capacidades, é preciso ter muitas certezas e o tempo, nesse aspeto, ajuda”, considera Mário Barreto.

Mário Barreto, general da Força Aérea, é o primeiro português a comandar o JALLC: um trabalho mais lento do que pilotar aviões

Uma das maiores dificuldades de ver as propostas do JALLC tomarem forma prende-se com o modelo de decisão da organização. “A maior barreira que há é o facto de as decisões na NATO dependerem do acordo de todos os Estados” para que passem da teoria ao terreno. E num colégio de 29 países há sensibilidades muito diferentes que é preciso ter em conta quando se produz novo conhecimento.

Essa objetividade é, ao mesmo tempo, um ponto a favor do centro de lições aprendidas de Monsanto, considera o comandante. “Uma das mais valias do centro é fazer uma análise independente, produzimos o produto e deixamos aos decisores tomarem as ações necessárias”, assume o comandante NATO em Portugal. Por vezes, já se percebeu, “há dificuldades” para levar os resultados até ao fim.

O general Barreto está no começo da sua passagem pelo JALLC. Antes de ser nomeado por Marcelo Rebelo de Sousa para aquelas funções, esteve um general romeno no centro de Monsanto. Dentro de dois anos, no final da sua comissão, a tarefa volta a passar para mãos romenas. Foi o que ficou acordado ao nível de comando NATO.