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Getty Images/iStockphoto/ kavastudio

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Os meus, os teus e os nossos. Quando as famílias se recompõem

Uns são filhos, outros são enteados. Todos são uma família recomposta: um puzzle de afetos que representa uma dinâmica familiar cada vez mais frequente em Portugal.

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Faz e desfaz a mala. Dá beijinho de despedida a um, abraço no regresso a outro. Faz e desfaz a cama em casas diferentes porque semana sim, semana não, é preciso visitar pai e mãe, que depois da separação voltaram a encontrar o amor na companhia de outras pessoas. O cenário descrito é o ponto de partida de uma comédia francesa, “Mas que família é esta?”, que convida a refletir sobre uma dinâmica familiar que vai ganhando terreno na era dos divórcios. O filme, nos cinemas portugueses desde 11 de agosto, apresenta uma inesperada solução para as agendas habitualmente caóticas das famílias ditas recompostas: e se em vez dos filhos fossem os pais a fazer as rondas semanais, isto é, a visitar à vez uma só casa onde irmãos, meios-irmãos e quase irmãos coabitassem?

Duas famílias, uma forma de viver

A experiência retratada no filme não passa disso, de uma experiência sem provas concretas do seu sucesso. No entanto, Patrícia Motta Veiga chegou a pô-la em prática logo após o divórcio. Depois de um casamento de 14 anos e de três filhos em conjunto, a escritora e o agora ex-marido tomaram a decisão de simplificar a vida dos miúdos, dois rapazes e uma rapariga. Durante uns tempos, era ela quem saía da própria casa aos fins de semana para que o pai pudesse visitar as crianças e, assim, garantir que elas não tinham de andar de um lado para o outro. “Era eu que ia dormir a casa de amigas, igualmente divorciadas”, brinca.

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Patrícia Motta Veiga casou-se pela primeira vez com 19 anos e meio. Fê-lo porque no ventre havia vida a crescer a cada dia que passava. A pressão da família ajudou-a a tomar uma decisão que então julgou ser a certa. Com uma barriga já saliente, a jovem subiu ao altar e uniu-se a um homem 15 anos mais velho que ela e com quatro filhos na bagagem. Era durante os três meses de verão — vulgo férias grandes para a pequenada — que quatro crianças rumavam à casa que o casal tinha no Alentejo. O mesmo acontecia por altura da Páscoa e do Natal, e nas habituais visitas de 15 em 15 dias. Patrícia depressa se habituou a uma casa cheia de miúdos, até porque os três filhos nasceram na presença daqueles quase irmãos com quem hoje já não tem tanto contacto.

"No dia em que me separei, na primeira noite em que fiquei sozinha, depois de me deitar, pensei 'Como é que eu vou aguentar isto sozinha?'." 
Patrícia Motta Veiga

A correria e a azáfama teriam o seu fim em plenos montados alentejanos. Tinha o pequeno António oito meses e a mãe 34 anos quando os pais decidiram separar-se definitivamente. Apesar de uma escolha consciente e, nas palavras da escritora, feliz, os primeiros tempos não foram fáceis. “No dia em que me separei, na primeira noite em que fiquei sozinha, depois de me deitar, pensei ‘Como é que eu vou aguentar isto sozinha?’.” Antes havia dois adultos para três crianças, agora havia muito em que pensar: escolas, supermercados, banhos, refeições, trabalhos de casa… A lista que parecia ser infindável só atenuou com a chegada de João, atual marido, o oitavo de 16 irmãos e técnico alimentar que no currículo tem um feito de alto gabarito — diz que foi ele quem inventou o Chocapic.

Passavam dois anos desde que Patrícia se divorciara quando, por intermédio de amigos, conheceu o companheiro. “Somos pessoas muito idênticas em termos de valores. Lembro-me que a primeira conversa foi fluida em torno da família e isso foi um dos fatores que nos uniu”, relembra. Não demorou muito até estarem os dois na conservatória, a trocar de alianças e juras de amor. E assim, papel assinado e beijo dado, a família cresceu: o Cateano dava os primeiros sinais de vida na barriga da mãe. “Houve um namoro, houve uma interação do João com os meus filhos e, às vezes, até ficávamos todos a dormir em casa dele. Quando falámos aos miúdos do casamento, já um bebé vinha a caminho.”

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Caetano é o filho comum de Patrícia e João.

Uma aventura para a qual não há receitas

Patrícia (40), João (61), Afonso (20), Matilde (12), António (6) e Caetano (2) vivem todos debaixo do mesmo teto lisboeta, sob a alçada de um mesmo leque de regras. Eles são mãe, pai e padrasto, irmãos e meios-irmãos. Quem não vive lá em casa são os três filhos de João, fruto de um casamento anterior — Rodrigo (41), Joana (37) e Vera (34). O primogénito do atual marido de Patrícia é o pai de Manel (10), sobrinho do pequeno Caetano que, por sua vez, é afilhado de Margarida, a mulher do Rodrigo que, por sinal, é um ano mais velho do que a madrasta. A julgar pelo número de cabeças por metro quadrado e pelas ligações difíceis de explicar, esta é uma família recomposta.

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Por família recomposta entende-se uma família em que há, pelo menos, um filho que não é comum ao casal. Por norma, estas dinâmicas surgem no contexto de divórcios ou separações e, segundo a psicóloga e terapeuta familiar Catarina Mexia, são de louvar, no sentido em que são um permanente desafio. “Muito honestamente, presto sempre homenagem a estes casais. Se pensarmos nos dias de hoje, em que existe tanta pressão para um casal estar bem, e juntarmos a pressão dos filhos de relações anteriores… Estas são relações claramente difíceis de gerir logo à partida.” Não é que este tipo de união não implique o mesmo que outras ligações afetivas — como exigências ao nível da comunicação e da proximidade –, mas tendo em conta o agregado familiar, a necessidade para uma “capacidade de tolerância muito grande” é ainda maior.

Essa tolerância funciona de pais para filhos, padrastos ou madrastas para enteados e de irmãos para meios-irmãos, pelo que à partida é preciso ter três coisas em consideração:

  • “Há os teus filhos e os meus filhos”, diz Catarina Mexia, alegando que, nestes casos, não é possível olhar da mesma maneira para filhos e enteados. “Temos tendência a olhar de forma preferencial para os nossos filhos. É melhor termos consciência disso de modo a evitarmos situações de injustiça. Vamos sempre olhar com corações diferentes”.
  • “Uma atitude fundamental é ter uma curiosidade constante pelo outro”, continua. Quer isto dizer que é preciso deixar no caixote do lixo ideias feitas sobre os novos membros da família e apostar na construção de uma nova relação.
  • “A pessoa que chega vai ter de entrar num processo de negociação”, conclui, referindo-se à negociação de espaços, de regras e de afetos, no sentido em que o padrasto ou madrasta devem estar disponíveis sem se imporem.

Certo que a chegada de um padrasto ou madrasta nem sempre — ou quase nunca — é fácil. Mas há uma variável que joga em favor do novo elemento na família, isto é, a idade dos enteados. Diz a terapeuta que quanto mais novas são as crianças, mais facilmente se deixam conquistar, uma vez que acabam por se sentir mais valorizadas. O mesmo não acontece quando em causa estão adolescentes, com a vinda de uma pessoa extra a representar, na maior parte das vezes, a imposição de novas regras. Catarina Mexia defende, então, que o padrasto ou madrasta deve tratar o enteado adolescente como um igual, uma espécie de companheiro de quarto, e não enquanto um miúdo.

Patrícia Motta Veiga ainda se recorda de como teve de explicar ao filho mais velho que estava decidida a entrar num novo casamento. Houve preocupação, cuidado acrescido e uma conversa a sós para mostrar respeito e perceber o que ia na cabeça de um Afonso de 17 anos. O que custou mais ao rapaz, conta a escritora, foi o facto de, num repente, deixar de ser o irmão mais velho — a partir do momento em que a mãe disse “sim” na conservatória, o seio familiar passou a incluir adultos bem mais velhos, independentes e com uma vida própria. Com mais autoridade e experiência de vida do que ele.

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Patrícia e João na companhia de António e Caetano.

“Apesar de nunca me confrontar em relação a isso, sentia que ele não estava disponível para que o meu marido se intrometesse nas suas decisões”, recorda Patrícia. “E o João não se metia. Mas quando havia alguma questão que achava grave, ele falava com o Afonso pessoalmente. Acho que foi assim que conquistaram um com o outro uma relação de respeito. Mas se o Afonso é igualmente próximo como o António é do João? Não. O António já viveu mais tempo da sua vida com o padrasto do que com o pai.”

Se em tempos os filhos mais velhos de Patrícia Motta Veiga poderiam ter desejado que a mãe ficasse sozinha (ou que voltasse para o pai), hoje João assume em pleno as funções de pai. Ajuda a levar os miúdos à escola, a fazer os trabalhos de casa e, se a mãe está a fazer o jantar, ele está a dar banho à pequenada. As rotinas que envolvem quatro crianças e dois adultos parecem funcionar e, apesar de Patrícia garantir que esta realidade familiar não é complicada para as crianças, Caetano ainda tem momentos de uma hilariante confusão. O pai dos filhos de Patrícia vai buscá-los a casa às sextas-feiras, de 15 em 15 dias; quando a campainha toca, o trio corre em direção à porta a chamar ‘Pai, pai!’. O mais pequeno, que ainda não entende porque é que os irmãos têm dois pais, repete os gestos e dá por si a chamar pai ao ex-marido da mãe; depois olha para trás, para o pai biológico, e ri-se. É uma delícia, diz quem vê.

A propósito de confusões, Catarina Mexia argumenta que “o primeiro filho de um casal destes deveria surgir idealmente um ano após a recomposição da família para que os irmãos tenham tempo de ganhar uma dinâmica própria”. Mas quem diz irmãos, também diz o casal, que deve assegurar espaço suficiente para ver como a dinâmica familiar evolui. “Não sendo isso possível”, continua a terapeuta, “estes pais vão ter de navegar à vista. Esta é uma aventura para a qual não há receitas.”

"O fenómeno [das famílias recompostas] já estava a acontecer nos anos 1990, mas expressou-se de forma clara por cá na primeira década do século XXI." 
Anália Torres, socióloga

Uma família (recomposta) portuguesa, com certeza

As famílias recompostas representam um fenómeno que veio para ficar, palavra de socióloga. A professora catedrática no ISCSP Anália Torres não hesita em explicar que noutros países ocidentais que não Portugal esta já era uma realidade evidente. “O fenómeno já estava a acontecer nos anos 1990, mas expressou-se de forma clara por cá na primeira década do século XXI.” Em causa — ou a justificar este paradigma que, ao que parece, não é assim tão novo — estão as novas formas de encarar as dinâmicas familiares. “Passámos a dar mais importância à dimensão afetiva e emocional em vez da institucional”, aponta a também coordenadora no CIEG (Centro Interdisciplinar de Estudos de Género). “As pessoas quando se divorciam só estão a dizer que não querem estar mais com aquela pessoa, pelo que voltam à conjugalidade, o que leva ao aumento das famílias recompostas.”

E que aumento. Só em 2011 existiam 105.763 casais recompostos em Portugal, o que corresponde a 3,9% do total de casais e a 6,6% do total de casais com filhos — entre 2001 e 2011 este número mais do que duplicou, segundo revelam os dados apurados e publicados no livro “Famílias nos Censos 2011: Diversidade e Mudança”, de 2014, que resultou de uma parceria entre o Instituto Nacional de Estatística (INE) e o OFAP (Observatório das Famílias e das Políticas de Família) do ICS-ULisboa.

De referir que o aumento em causa faz desta “uma prática comum e transversal aos diferentes meios sociais, transformando a forma como se organiza e vive a vida familiar”, lê-se no respetivo documento. Não é por acaso que, tal como é possível ver no gráfico abaixo, em 2015 celebraram-se quase 8.500 casamentos entre pessoas do sexo oposto, num total de 32.043, com filhos de casamentos anteriores. Isto num país em que a taxa de divórcio aumentou significativamente desde 1960, de 1,1% para 70,4% em 2013 — Portugal era, até 2013, o país na Europa com a maior taxa de divórcio.

Mas como são as famílias recompostas portuguesas? As respostas têm por base o livro já referido, que cita dados de 2011:

  • A situação mais comum é aquela em que os filhos não comuns de um casal são apenas filhos da mulher (78% em 2011) — por outras palavras, em Portugal as famílias de padrasto são mais frequentes;
  • a grande maioria dos casais recompostos não tem filhos (59%), e os que têm, apenas têm um (79,8%) — ou seja, 4 em cada 10 casais recompostos têm filhos em comum;
  • os casais em questão estão a envelhecer, tendo aumentado o números de relações em que as mulheres têm 40 anos ou mais;
  • as mulheres na relação recomposta estão mais escolarizadas — em 2001 mais de metade das mulheres tinham no máximo o 2º ciclo do ensino básico (57,6%), enquanto em 2011 mais de metade tinha no máximo o 3º ciclo (64,7%);
  • por último, mais de metade (53%) dos casais recompostos estão empregados.

De referir que, talvez por culpa destes e doutros modelos familiares, o estigma em tempos associado ao padrasto ou à madrasta alterou drasticamente. Desta vez tanto padrastos como madrastas coexistem com os pais biológicos, quando antes surgiam apenas na viuvez de um pai ou de uma mãe. Além disso, reitera a socióloga, há mais padrastos do que madrastas porque, tal como confirmam os dados, são as mães que tendem a ficar com os filhos em caso de separação. “Se fosse há 10 anos as pessoas achavam isto tudo muito confuso. Agora é frequente, mas isso não quer dizer que seja menos problemático.”

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A família de Patrícia na praia de São Martinho do Porto, este verão. DR

“Estamos a preparar futuros nómadas”

Por estes dias a família de Patrícia Motta Veiga passa férias na praia de São Martinho do Porto, onde diz ocupar várias das tradicionais barracas às riscas coloridas para aí caberem filhos de um e de outro, tios, tias, primos e primas. “Os miúdos andam em bando na praia. Durante as férias são imensos. Fico descansada porque, onde quer que eles vão, há sempre um tio ou uma tia à espreita”, conta a escritora que, também ela, é filha de pais separados e com filhos próprios (meios-irmãos de Patrícia). E como são as outras interrupções no calendário laboral, sobretudo o Natal? “Os natais da família do meu marido levam 140 pessoas, pelo que é sempre num hotel”, diz Patrícia depois de uma conversa longa ao telefone. “Na verdade, não perdemos muito tempo a explicar [como é e como funciona a grande família]. É que as pessoas acabam por perder o fio à meada.”

Voltemos ao início. No filme francês, assinado pelo realizador Gabriel Julien-Laferrière, a experiência de serem os pais divorciados a visitar os filhos, e não vice-versa, segue adiante e — sem querer adiantar spoilers — tem momentos que nos levam a acreditar que tal modelo possa mesmo funcionar (ainda que esta seja, como o género indica, uma comédia). Sobre isso a terapeuta e psicóloga Catarina Mexia não sabe dar uma resposta definitiva, ainda que argumente que essa seria “uma boa vingança” por parte dos filhos de casais separados. E porquê? “Isto de andarem sempre com as malas às costas… Estamos a preparar futuros nómadas. Desde os anos 1960 que as nossas crianças não fazem outra coisa senão fazer as malas. Andamos a preparar uma população nómada”, repete.

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