David Cameron convocou o referendo do Brexit, em 2016, seguro de que a população iria votar pela permanência na UE e isso permitiria vencer os independentistas do UKIP e sacudir os conservadores eurocéticos que estavam a morder os calcanhares do ex-primeiro-ministro. Mas, com a vitória do Leave, Cameron tornou-se precisamente isso: um ex-primeiro-ministro.

A sucessora, Theresa May, prometeu várias vezes que não convocaria novas eleições. Mas, em abril, quando tinha uma vantagem folgadíssima nas sondagens, acabou por chamar os britânicos novamente às urnas. Também esta decisão pode correr mal, porque as sondagens mostram que a eleição está longe de estar ganha. Apesar da escalada dos trabalhistas de Jeremy Corbyn, ainda parece que o mais provável é que Theresa May vá ganhar, mas a primeira-ministra não convocou estas eleições, simplesmente, para ganhar.

Ainda nervosos com os recentes atentados terroristas no país, os britânicos escolhem, nesta quinta-feira, 8 de junho, a pessoa que vai liderar os destinos do país até 2022 e durante o processo difícil que levará, provavelmente, à saída do Reino Unido da União Europeia. Theresa May apresenta-se como a candidata da solidez e da estabilidade, mas a primeira-ministra acumula inúmeras mudanças de opinião, verdadeiras inversões de marcha, ao longo da sua carreira e, mesmo, durante esta campanha. Será feitio ou fruto das circunstâncias?

Theresa May apresenta-se como a candidata da estabilidade, mas acumula inúmeras “inversões de marcha” nas ideias que defende. (FOTO: Andy Rain/EPA/Getty Images)

A “inversão de marcha” mais clara nos últimos tempos veio com a própria marcação de eleições. Depois de vencer a corrida para a sucessão a David Cameron, em várias ocasiões Theresa May garantiu que não iria promover mais uma ida às urnas. “Julgo que o importante, depois de termos tido o referendo, é que tenhamos um período de estabilidade. Julgo que não há necessidade de uma nova eleição. Eu não vou convocar eleições antecipadas, julgo que precisamos de um período de estabilidade para nos concentrarmos no processo do Brexit e na agenda de reformas que tenho para o país”, afirmou May, em entrevista à BBC a 4 de setembro.

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Chegámos a abril, um dia depois de os deputados regressarem a Westminster depois das férias da Páscoa, e May decidiu, afinal, agendar eleições antecipadas. “Precisamos de uma eleição e precisamos de uma eleição já. Só recentemente, e relutantemente, cheguei a esta conclusão mas acredito que é a única forma de garantir estabilidade para os próximos anos”, afirmou, num discurso convocado em cima da hora à porta do número 10 de Downing Street.

Quando foi a última vez que um Governo maioritário pediu novas eleições?

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Só por duas vezes desde 1951 um Governo convocou eleições tão cedo no mandato. Foi em 1966 e em 1974, recorda o Commerzbank numa nota de antecipação do voto. A diferença em relação a agora é que, na primeira vez, havia uma maioria magríssima (4 deputados) e, na segunda vez, era um Governo minoritário. É preciso recuar até 1923 para encontrar a última vez que um Governo convocou eleições antecipadas, tão cedo, com uma maioria igual ou maior do que os 17 deputados que Theresa May tem neste momento. “Ironicamente, esse Governo perdeu”, recorda o economista Peter Dixon, do Commerzbank.

A decisão de chamar os britânicos às urnas foi tomada, segundo a própria, durante as caminhadas que fez com o marido no País de Gales, nas férias da Páscoa.

May culpou os outros partidos pela decisão: “O país está a unir-se mas Westminster não está. Os trabalhistas ameaçaram votar contra o acordo final que atingirmos e os democratas liberais disseram que querem empatar os trabalhos legislativos para que nada possa acontecer. Membros não eleitos da Câmara dos Lordes garantiram que vão lutar contra nós a cada momento”, criticou a primeira-ministra.

Os críticos de May acusaram-na, contudo, de não resistir às sondagens e tentar aproveitar para reforçar a maioria parlamentar de que dispõe, que é de 17 deputados. A lei britânica proíbe May de convocar eleições, por sua iniciativa, tendo de apresentar uma moção que tem de passar na Câmara dos Comuns — o que aconteceu a 19 de abril. Mas o espírito do Fixed-Term Parliaments Act é levar os Governos a cumprirem os cinco anos do mandato e não gerir os calendários eleitorais em seu benefício.

“Tendo anteriormente prometido que não iria convocar eleições antecipadas, as vantagens enormes nas sondagens [24 pontos, a certa altura] acabaram por ser demasiado tentadoras para que a primeira-ministra Theresa May as pudesse ignorar”, afirma James Knightley, economista do banco ING, em Londres, numa nota de antecipação do ato eleitoral. Apesar de ter uma maioria herdada de Cameron, “isso não garante que seja fácil passar legislação difícil nos próximos anos”, pelo que caso May consiga reforçar a maioria parlamentar isso dar-lhe-á “mais espaço para respirar, com novos deputados conservadores dispostos a demonstrar a sua lealdade para com a primeira-ministra”, acrescenta Knightley.

Mas as coisas não parecem estar a correr de feição para May, que até recentemente parecia estar a tomar conta de boa parte do “centro político”, encostando Jeremy Corbyn à esquerda, ao mesmo tempo que ia buscar eleitorado aos nacionalistas do UKIP, que agora perderam relevância com o início do processo de saída do Reino Unido da UE.

A primeira-ministra britânica, aqui acompanhada pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, foi defensora da permanência na UE (FOTO: Justin Tallis/AFP/Getty Images)

May tornou-se o rosto do Brexit, defendendo como posição negocial a de que prefere que o Reino Unido saia da UE sem um acordo com os parceiros europeus do que com “um mau acordo”. Mas, durante a campanha para o referendo, foi uma defensora da permanência — não buscou protagonismo, talvez por uma questão tática, mas aconselhou, de forma firme, o voto no Remain.

Enquanto ministra da Administração Interna de David Cameron, Theresa May defendeu que o Reino Unido estava melhor, mais seguro e mais próspero dentro da União Europeia. Num dos temas quentes da campanha para o referendo, a imigração, Theresa May afirmou que a “a liberdade de movimentos torna mais difícil controlar a imigração” mas defendeu que era possível, dentro das regras europeias, dosear a entrada de pessoas no Reino Unido. Cerca de um ano antes, contudo, tinha dito que a imigração tornava mais difícil “construir uma sociedade coesa”.

Theresa May acabou por ascender à liderança do Partido Conservador vencendo Michael Gove — esse, sim, um dos rostos principais da campanha pela saída. Herdou, portanto, a missão de tirar o país da União Europeia e, subitamente, apareceu como uma irredutível defensora do Brexit. E como é que justifica esta mudança de opinião? Num discurso feito em janeiro, May mostrou-se convencida de que sair é, afinal, o melhor porque a economia não se tinha, até então, ressentido da decisão tomada por 52% dos britânicos votantes no dia 23 de junho de 2016.

Estas são algumas das inversões de marcha que a imprensa britânica se tem dedicado a encontrar. O Financial Times contou, no total, nove mudanças de opinião relevantes nos últimos 12 meses. Além das já mencionadas, o diário financeiro recorda como May defendeu, durante a campanha para o referendo, que o Reino Unido deixasse de ser signatário da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, porque a sua experiência como ministra da Administração Interna a fez acreditar que o acordo é algo que “ata as mãos do parlamento, não nos torna mais prósperos e torna-nos menos seguros“. Porém, quando concorreu à liderança do partido, mostrou que tinha mudado de ideias e o programa eleitoral não prevê qualquer alteração a este nível.

Outra área em que May poderá ter mudado de ideias ou, pelo menos, não conseguiu levar a sua avante, foi a promessa de obrigar as empresas a terem representantes dos funcionários nos Conselhos de Administração. No manifesto eleitoral do partido, contudo, apenas se exige que as empresas cotadas tenham um representante dos trabalhadores com funções consultivas, não-executivas.

Theresa May acompanhada pelo marido, Philip May, em julho de 2013. (FOTO: Rob Harrison/Getty Images)

O historial de mudanças de opinião, por parte de Theresa May, não é de hoje. Em 2010, quando se tornou ministra da Igualdade, May foi confrontada com o facto de ter votado (em 2002) contra o direito à adoção por parte dos casais compostos por pessoas do mesmo sexo. “Se essas votações fossem hoje, sim, julgo que votaria de forma diferente porque mudei de opinião”, afirmou May.

Quem é Theresa May?

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Theresa May tem 60 anos e uma subscrição vitalícia da revista Vogue — a certa altura, disse que essa era a coisa que levaria consigo para uma ilha deserta. Diabética (de tipo 1), May é filha de um padre anglicano que morreu num acidente de carro, quando Theresa tinha 24 anos. A mãe morreu alguns meses depois. A primeira-ministra começou a carreira a trabalhar no Banco de Inglaterra e tornou-se deputada em 1997, ascendendo em 2010 a ministra da Administração Interna e ministra da Igualdade e dos Direitos das Mulheres — este último cargo abandonou-o dois anos depois. É casada com o banqueiro Philip May há 36 anos e não tem filhos.

“Sobre a adoção gay eu mudei de opinião, porque fui convencida de que quando se está a pensar no futuro de uma criança, julgo que é melhor para uma criança que esteja numa instituição ter uma oportunidade para estar num ambiente familiar, estável e com muito amor — mudei, genuinamente, a minha visão sobre isso”, afirmou May. A mudança de opinião foi elogiada por ministros trabalhistas, que sublinharam que “devemos aceitar quando alguém muda de opinião e devemos ficar satisfeitos”.

Um imposto demente?

A inversão de marcha mais recente — e, provavelmente, a mais danosa para a campanha — foi a decisão de retirar dos planos do Partido Conservador a medida que ficou conhecida como o imposto sobre a demência. Foi uma medida muito mal recebida pelo eleitorado e aproveitada pela oposição para recuperar nas intenções de voto, mas até dentro do Partido Conservador houve vozes críticas — Boris Johnson reconheceu que compreendia as preocupações de quem não gostou da medida.

Em causa estava um plano sob o qual os idosos com mais de 100 mil libras (cerca de 115 mil euros) passariam a ter de pagar pelos cuidados de saúde que pudessem receber em casa, por parte do Serviço Nacional de Saúde. A diferença face ao que existe atualmente é que o valor das casas das pessoas passaria a contar para esse cálculo. Atualmente o valor é menor, menos de 30 mil libras, mas não conta com a casa.

A medida ficou conhecida por “imposto sobre a demência” porque iria afetar, sobretudo, pessoas que estão em casa com doenças degenerativas mas não penalizaria, por exemplo, quem estivesse meses ou anos internado no hospital com outro tipo de doença. O que a proposta previa era que o Estado poderia recuperar esses custos da assistência domiciliária após a morte do utente, o que poderia passar pela venda das casas onde viviam. Um dos problemas que muitos viram nesta medida é que os descendentes ficariam sem herança ou, mesmo, sem casa, caso tivessem vivido sempre com os pais — como é o caso de deficientes que não conseguiram autonomizar-se.

Reino Unido. “Imposto sobre a demência” ameaça vantagem dos conservadores

“Acreditamos que estas mudanças poderosas irão maximizar a proteção das famílias de pensionistas com posses modestas, muitas vezes investidas na casa da família, ao mesmo tempo que irão assegurar que o esquema não onera em demasia os contribuintes”, pode ler-se na página 65 do programa eleitoral do Partido Conservador. Esta medida terá sido introduzida à última hora na redação do documento e muitos membros do partido não faziam ideia de que a proposta ali iria constar, segundo a imprensa.

O tema ganhou tal importância que alguns estudos de opinião revelaram que este “imposto sobre a demência” era a primeira medida de que as pessoas se lembravam quando lhes era perguntado sobre o programa eleitoral dos conservadores. As questões em torno do Brexit, onde May tem procurado recentrar a agenda, vinham em segundo lugar.

Perante a impopularidade da medida, que fez as delícias de quem faz campanha porta a porta pelos outros partidos, May recuou e prometeu uma reavaliação que passaria pela introdução de um limite máximo para o que as pessoas podem ter de pagar pelos custos da assistência social. A primeira-ministra acusou a oposição e, em particular, Jeremy Corbyn, de deliberadamente enganar as pessoas sobre o que é que realmente estava a ser proposto, mas ainda não se percebeu exatamente como é que May planeia resolver este problema.

Theresa May foi muito penalizada pela controvérsia em torno do “imposto sobre a demência”. (FOTO: Stefan Rousseau – WPA Pool/Getty Images)

A ausência dos debates televisivos de quarta-feira, na BBC, não ajudou a que a proposta de Theresa May fosse, eventualmente, esclarecida. Gina Miller, a empresária que obrigou a uma votação no Parlamento sobre a ativação do artigo 50, da saída da UE, considerou “escandalosa” a ausência de May. “Foi ela quem convocou as eleições, ela devia estar a promover o debate e a ir porta a porta falar com as pessoas comuns. Ela não devia estar a promover eventos onde só se pode entrar com convite, por todo o país, e depois recusar-se a aparecer para o debate com outros líderes”.

Pode Theresa May perder a maioria?

Tudo isto terá ajudado a que May tenha perdido popularidade nas últimas semanas. As sondagens divulgadas na semana passada indicam que a maioria pode não só não sair reforçada — como parecia que iria acontecer nas sondagens em abril — como pode evaporar-se.

Na última semana saiu um estudo de opinião do YouGov, encomendado pelo The Times, que além da votação total (trabalhistas a apenas 3 pontos abaixo de May, contra os 24 pontos anteriores) fazia estimativas sobre as votações nos diferentes círculos eleitorais, essas, sim, decisivas para o número de deputados que cada partido irá conquistar. Com uma grande margem de erro, o estudo admitia que os conservadores poderiam perder 20 assentos parlamentares, em relação à maioria de 17 que têm atualmente.

As últimas sondagens apontam para resultados díspares mas parecem confirmar uma margem escassa de Theresa May, na percentagem total de votos. O YouGov dá 42% aos conservadores e 38% aos trabalhistas. Uma sondagem da Survation, feita dia 3 de junho, coloca os dois partidos ainda mais próximos — 40% e 39%. “O risco de May não ter uma maioria aumentou, de forma significativa, a julgar pelos nossos dados“, afirmou o fundador da Survation, Damian Lyons, citado pela Reuters.

Contudo, uma sondagem feita pela ICM para o The Guardian, entre os dias 2 e 4 de junho (ou seja, já apanha o atentado de Londres), dá uma vantagem mais folgada a Theresa May — 45% para 34%. O mais importante, contudo, é o número de deputados obtidos, já que o sistema eleitoral funciona por círculos eleitores — por isso, por exemplo, o UKIP teve 12% dos votos totais mas apenas elegeu um deputado.

Jeremy Corbyn diz que, se não houver qualquer partido com maioria, não irá formar coligações

As sondagens mais favoráveis a Jeremy Corbyn (a YouGov da semana passada) admite que o trabalhista poderá ganhar até 30 deputados, em relação ao número atual — May perderia até 20 lugares. Caso o Labour vença as eleições, sem maioria, a promessa é que irá formar um governo minoritário — uma garantia de Emily Thornberry, do governo-sombra trabalhista, rejeitando as acusações dos conservadores de que uma vitória dos trabalhistas resultaria numa “coligação caótica” entre o Labour, os Democratas Liberais e, eventualmente, o Partido Nacional Escocês e os Verdes.

Para Jeremy Corbyn, “um bom resultado é vencer as eleições“. O resultado final poderá, têm defendido alguns analistas, depender da proporção de eleitores mais jovens que efetivamente forem votar — em teoria, seria benéfico para o Partido Trabalhista. Mas o resultado é muito incerto, até a própria empresa de sondagens YouGov reconhece que existe uma grande margem de erro porque a amostra em cada círculo eleitoral foi pequena.

Confrontada com a queda nas sondagens, Theresa May garantiu que a única sondagem que lhe interessa é a que é feita no dia 8, nas urnas. Mas se os conservadores perderem a maioria, em teoria pode haver um governo minoritário ou uma coligação com um partido mais pequeno, para obter deputados suficientes para revalidar a maioria. Mas, na prática, May sairá muito fragilizada politicamente, numa altura em que já passaram dois meses desde que foi ativado o Artigo 50 do Tratado de Lisboa e já começou a contar o relógio para a saída da UE.

Falta saber que impacto terá (se tiver algum) o atentado de sábado à noite, em que Theresa May endureceu o discurso contra o “extremismo islâmico”, sublinhando que “é tempo de dizer chega“.