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"Para a crónica ser verdadeira tenho de ir para um lugar vulnerável"

Assume-se como muito intensa e vem a Portugal apresentar o livro de crónicas onde se expõe sem medos. Entrevista com Maria Ribeiro, atriz brasileira que ainda tem dificuldade em dizer-se escritora.

Uma crónica existencialista pode acabar a falar de camisas Comme des Garçons e Hermann Hesse pode estar logo ao lado do jogo Pokémon Go. Como diz Maria Ribeiro, a frivolidade salva, sobretudo quando aos 10 anos já se sente a angústia de ter perdido alguma coisa dos nove.

Esta quinta-feira, a atriz brasileira de 40 anos, conhecida sobretudo pelo filme Tropa de Elite, vem a Portugal apresentar o seu primeiro livro, Trinta e Oito e Meio. São crónicas sobre os trintas, a passagem do tempo e a maternidade, uma espécie de confissões pessoalíssimas de uma mulher que diz só saber viver intensamente, que gosta de Madonna e de Girls, de João Gilberto e de Roth, que está preocupada com a passagem do tempo, que ama e odeia o smartphone, que perdeu o pai, que compra na Zara, que se divorciou e redescobriu o amor com um homem que acorda bem-humorado e ainda por cima sabe “fazer cappucino com aquela espuma profissional”.

“A crónica tem uma gentileza que se disfarça de tola”, afirma Maria Ribeiro, que ainda não consegue dizer que é escritora sem achar que isso é pretensioso. Como confessa a partir do Rio de Janeiro, numa entrevista por Skype dada ao Observador poucos dias antes de apanhar o avião para Lisboa, prefere dizer que é meio escritora, meio atriz, meio realizadora. Tal como o seu livro é metade melancólico, metade alegre, inteiramente arrebatador por ser ao mesmo tempo profundo e leve, comovente e irónico.

capa trinta e oito e meio

Maria Ribeiro está na capa do livro e estará também, esta quinta-feira, dia 15, às 18h30, na Livraria Bertrand de Picoas, em Lisboa, para o lançamento da edição portuguesa. A apresentação é de Matilde Campilho.

Logo na primeira crónica diz que viu o Oito e Meio de Fellini e não percebeu o filme. Isso tem alguma coisa a ver com o título do livro? Aos Trinta e Oito e Meio, ou agora aos 40, continua a tentar perceber quem é?
Continuo. Faço muito análise. Tanta análise que às vezes fico de saco cheio e quero entrar no cinema e esquecer totalmente quem sou (risos). Mas a ideia do Trinta e Oito e Meio, além do medo de chegar aos 40 e de deixar de ser jovem — como se os 40 fossem o segundo tempo da vida, mas pior –, também tinha esta coisa da febre. Eu sou muito febril, muito intensa, eu sofro muito, eu sou muito feliz… Sou tudo em muito. E para além do Fellini havia também outra coisa: aqui no Brasil dizer “meio” é uma forma de trazer para a literatura a linguagem coloquial do dia-a-dia. O livro do António Prata, que também vai ser lançado aí [pela Tinta da China], chama-se Meio Intelectual Meio de Esquerda. “Meio” é assim… além de não ser inteiro, é uma coisa que não se leva muito a sério. Eu tenho a sensação que sou meio atriz, meio escritora, meio diretora. Dizer “meio” é uma despretensão.

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Então não se leva muito a sério?
Levo sem levar. Eu gosto de fazer má propaganda de mim mesma. Acho até que é um serviço. Quando vejo a Lena Dunham no Girls, ou o próprio Ricardo Araújo Pereira… Me sinto bem quando leio gente que se deprecia um pouco (risos). As pessoas vão rir da gente, por isso mais vale rir primeiro.

retrato MariaRibeiro_24

Maria Ribeiro tem mais de 10 filmes e 20 novelas no currículo, entres eles Tropa de Elite, de José Padilha.

“Nada se compara a fazer 30. Que alívio não precisar acampar e não ter que ver o show da Madonna no Maracanã. A idade das mulheres de Balzac me trouxe o homem com quem pretendo ficar até ao fim dos meus dias e outro filho pra levar aos bailinhos, honra suprema da existência. Mas estaria mentindo se não dissesse que tenho medo do porvir. Sei que perderei meus pais, que alguma doença aparecerá (e torço pela surdez, mal de família), e que meus filhos logo vão preferir os amigos a mim. Sem falar na perda da juventude. Espero ter humildade e desapego pra acompanhar cada um dos meus tempos no que eles tiverem pra oferecer, e se der pra continuar vestindo 38 aí então é a glória.” (Trinta e Oito e Meio, pág. 74)

O livro é muito atravessado pelos 30. A passagem do tempo preocupa-a?
Que idade você tem?

Trinta e três.
Eu comecei a escrever o livro com 33, grávida do meu segundo filho, e a última crónica escrevi já com 40. E sim, a questão do tempo é muito importante para mim. Se estou a viver uma situação com os meus filhos, eu lembro de mim criança e penso que quero fazer com eles coisas que eu sentia falta que fizessem comigo, ou então reproduzir coisas de que eu gostava, mas ao mesmo tempo olho para eles e penso nos adultos que eles vão ser. É claro que agora com 40 a passagem do tempo vai dando mais medo, mas eu sempre tive isto. Com 10 anos já pensava “ai meu Deus, vou perder alguma coisa dos 9.”

Aqui temos esse existencialismo e alguma nostalgia. É uma inevitabilidade da vida adulta? Ou já se nasce nostálgico?
Eu sempre fui nostálgica e sempre me achei nostálgica, mas na verdade hoje em dia já não acho. Num processo de psicanálise, e até na maternidade, você vai resignificando episódios da sua vida e eles vão ficando diferentes. O seu ponto de vista sobre determinadas coisas que viveu vai ficando mais fino, e muitas vezes você pode até manipular e melhorar algumas situações, ou piorar outras. Mais do que a nostalgia, eu faço uso disso, talvez até exageradamente. Mais para a frente, eu gostaria de falar menos sobre mim. Não sei se sou capaz. Quando eu vivo as coisas, não há uma distinção entre a pessoa física e a pessoa jurídica. Às vezes passo por uma situação bonita e falo “hmm, vou escrever uma crónica sobre isso”. Eu estou vivendo e já estou pensando que vou usar aquilo. É quase uma coisa meio desleal.

"É claro que agora com 40 a passagem do tempo vai dando mais medo, mas eu sempre tive isto. Com 10 anos já pensava: 'Ai meu Deus, vou perder alguma coisa dos 9.'

No livro diz que não gosta de mudar e que se pudesse viajava sempre para o mesmo sítio, Paris, mas ao mesmo tempo é atriz, o que, tal como também escreve, envolve uma dose de empatia e de capacidade de mudança. Isto não é uma contradição?

Eu gosto de viver as coisas com tempo. Fui a Lisboa pela primeira vez em 2013. Desde então já fui três vezes, esta vai ser a quarta. O meu padrasto é francês, por isso eu tinha uma relação forte com Paris. Eu gosto de viver e de compreender um povo, gosto de voltar nos restaurantes… Sou um pouco conservadora. Já recusei inclusivamente um filme em que tinha de passar três meses na Amazónia. Fiquei com medo. Eu sou medrosa. Por exemplo, digressão de teatro para mim é um desespero. Fico desesperada, levo o meu travesseiro, pareço uma idiota. Mas exatamente pela questão da empatia, eu acho. Porque eu não consigo me relacionar superficialmente. Eu tenho de conhecer as coisas de forma profunda. E tudo para mim é intenso, me custa. Eu não vou para Lisboa para lançar meu livro profissionalmente. Eu não quero nunca ter uma postura profissional, no mau sentido, em relação ao meu ofício.

O que é uma postura profissional no mau sentido?
É achar que você chegou em algum lugar, é não se deixar afetar pela entrevista que você dá, é ter respostas prontas, se blindar. Eu não quero mudar de postura porque estou falando com você. Eu estou falando com você do mesmo jeito que estaria falando com meu filho se estivesse viajando. Por isso sempre tive muito medo de dizer que sou escritora. Eu sou atriz, é o que coloco na ficha do hotel. Acho muito pretensioso dizer que sou escritora. No entanto, fico muito feliz com os meus textos. Tenho autoestima, gosto do que escrevo, mas não quero ter uma personagem de escritora. Nesse sentido prefiro ser amadora, porque quando se é amador, como quando se faz um jornal na escola, tem-se uma pureza que eu não gostaria de perder, por mais que lance livros.

"Acho muito pretensioso dizer que sou escritora. No entanto, fico muito feliz com os meus textos. Tenho autoestima, gosto do que escrevo, mas não quero ter uma personagem de escritora. Nesse sentido prefiro ser amadora, porque quando se é amador, como quando se faz um jornal na escola, tem-se uma pureza que eu não gostaria de perder." 

Como é que a escrita apareceu, já agora?
Eu sempre quis escrever. Com seis anos, me lembro do dia em que cheguei em casa sabendo escrever. Me lembro da posição exata em que estava no sofá, da alegria e da excitação de conseguir escrever uma frase. E sempre fui péssima em desporto. Como escrevo no livro, descobri a angústia na Educação Física e a glória no Português. Eu conseguia compreender Fernando Pessoa, eu conseguia compreender Drummond, eu escrevia bem… Só que fui ser atriz porque achava que ser escritora era uma coisa assim muito… Clarice Lispector. E que ser atriz era mais acessível, mais “humildezinha”. Mas ao mesmo tempo fui fazer faculdade de jornalismo porque nunca deixei a ideia de escrever. E aí fui convidada para uma revista muito legal aqui no Brasil chamada TPM, Tempo para a Mulher. Mentira, não fui convidada. Fui dar uma entrevista para o diretor da revista, lançando acho que o Tropa de Elite, e me ofereci para lhe enviar um texto. Aí mandei o texto, ele gostou, e as crónicas começaram a surgir mensalmente, até que já tinha um volumezinho para virar um livro. Mas quando virou um livro, e eu li tudo seguido, pensei: “meu Deus, isso é uma egotrip absoluta”. Era uma exposição, um raio-x total. Eu não me dava conta disso, pingado uma vez por mês na revista.

A autora é mãe de dois filhos rapazes, sobre quem fala no livro.

“Que fique claro que escrevo aqui como quem se confessa, sabendo do risco iminente de aborrecer meus 18 estimados leitores.” (Trinta e Oito e Meio, pág. 55)

Falou na Clarice Lispector e foi precisamente a Clarice que admitiu, nas crónicas que escrevia no jornal, como tinha medo de se expor e de ser demasiado pessoal. A Maria nunca teve receio disso?
Não tinha. Só nesse momento em que as crónicas foram compiladas em livro é que me senti muito exposta.

Mas isso incomoda-a?
Eu sinto-me exposta mas ao mesmo tempo… sempre gostei de aparecer (risos). Então alterno entre sentir-me exposta, ficar preocupada com os meus filhos, e sentir um certo prazer. Talvez eu de facto tenha uma egotrip e tenha de assumir (risos).

Expor-se pode ser também uma forma de fazer a tal análise? Perceber-se e perceber uma situação ao escrevê-la, ao partilhá-la?
Sem dúvida. No Brasil eu faço um programa chamado Saia Justa que é um programa de opinião, e eu sou um pouco classificada aqui como polémica, ou provocadora. E a crónica… Para ela ser verdadeira eu tenho que ir para um lugar muito vulnerável. Então muitas vezes levanto-me da mesa do computador entendendo situações que sentei sem ter elaborado. Eu vou elaborando o que vou vivendo ao mesmo tempo que vou escrevendo.

“Confesso que não apenas respeito mulheres que não querem ser mães, como, principalmente, admiro. É preciso coragem pra vislumbrar a velhice sem um herdeiro pra empurrar nossa cadeira de rodas. Eu tive logo dois, já pensando no revezamento.” (Trinta e Oito e Meio, pág. 36)

Voltando ainda à Clarice, era também ela, ao tentar definir a crónica, que perguntava se ela seria um relato, uma conversa ou o resumo de um estado de espírito. No seu caso, é preciso então acrescentar que a crónica é um lugar de vulnerabilidade.
É. Eu cresci lendo crónicas, lendo o Rubem Braga, que é maravilhoso, e ainda agora um jornalista português me disse que o António Lobo Antunes também tem crónicas dulcíssimas, muito diferentes dos romances, e eu também quero ler. Eu acho que a crónica tem uma gentileza que se disfarça de tola. É quase como se dissesse “é só esta dorzinha aqui”, ou “é só esta alegriazinha aqui”, ou então é uma dorzinha em duas páginas. Porque eu acho que ela é muito funda mas como é um formato leve, e despretensioso, às vezes você chega em lugares sem que aquilo te pese.

"A crónica tem uma gentileza que se disfarça de tola. É quase como se dissesse 'é só esta dorzinha aqui', ou 'é só esta alegriazinha aqui', ou então é uma dorzinha em duas páginas. Porque eu acho que ela é muito funda mas, como é um formato leve, e despretensioso, às vezes você chega em lugares sem que aquilo te pese."

“Foi muito triste não poder mais acordar meu pai com as torradas na bandeja e ver ele sair pra cidade. Ele falava assim: tô atrasado pra cidade. Eu achava que ele ia para Gotham City. E esperava ansiosa ele voltar pra jogar Atari comigo ou colar figurinhas.” (Trinta e Oito e Meio, pág. 40)

Lugares comoventes e temas pesados, como acontece aqui, por exemplo, com a morte do seu pai.
Tem uma frase do Bergson que fala que “é rindo que se castiga mais”. A morte do meu pai foi uma coisa muito sofrida para mim, como é para todo o mundo. O meu pai foi um grande companheiro e um homem muito forte, mas ao mesmo tempo ele morreu numa boa, sem medo nenhum. Então… é um tema fundo, porque é uma coisa que eu senti, mas ao mesmo tempo que tento falar como se estivesse tudo bem. Claro que por outro lado é sacanagem, porque não está tudo bem! Porque a vida acaba. Mas ao mesmo tempo é preciso viver com isso. Então vamos lá. Vamos lavar o cabelo e ao cinema.

E comprar umas roupas.
E comprar umas roupas.

Ao longo de todo o livro faz muito esse jogo entre o sério e o quotidiano, e entre a baixa e a alta cultura.
Sempre brinquei que sou muito intensa, às vezes profunda, e ao mesmo tempo muito frívola. Eu me lembro que na missa de sétimo dia do meu pai — eu estava aos prantos, desesperada, não conseguia nem respirar –, veio uma amiga minha e me abraçou. Eu tirei a cabeça do ombro dela e falei: “meu deus, de onde é essa sua blusa?” . A frivolidade muitas vezes me salva, eu não quero abrir mão dela. Como eu casei muito jovem com um homem muito mais velho, sempre falei que tinha de ser engajada, ser culta, ler Bergson. E agora já acho que não. Talvez eu não precise ler Bergson. E está tudo bem.

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