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Peter Peitsch / peitschphoto.com

Peter Peitsch / peitschphoto.com

Pré-publicação: o novo livro de António Lobo Antunes

Este é o capítulo 6 de "Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera", o novo título do autor português, que chega às livrarias no dia 18 de Outubro.

O autor já o disse antes: não escreve histórias, não escreve romances, o que faz são exercícios de ambição. Ou como disse numa das suas crónicas semanais na revista Visão, procura que as pedras se tornem mais leves que água. Um exercício contínuo, apurar e apurar outra vez.

O mais recente resultado, que já está pronto há uns meses mas que só no dia 18 é publicado, tem por título “Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera”. No centro do texto há uma atriz que luta contra o tempo, o mesmo que lhe rouba a memória. O Observador faz a pré-publicação de um excerto do livro, o sexto capítulo, desta que não é uma história, este que não é um romance.

Para Aquela Que Está Sentada no Escuro à Minha Espera

“Para Aquela que Está Sentada no Escuro à Minha Espera”, de António Lobo Antunes (Dom Quixote)

“Em Faro tínhamos um quintal pequeno nas traseiras no meio dos quintais pequenos dos vizinhos a seguir à porta da cozinha e ao tanque de lavar roupa no qual a minha mãe se debatia com um alguidar de lençóis e pijamas ou seja tínhamos um pedaço de terra entre pedaços de terra, um canteiro de dálias de caules já escuros e eu a separar ervas procurando insectos, a senhora de idade para mim a enxotar-me

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– Está a sujar-se toda a mexer na loiça por lavar
e como explicar-lhe que não era na loiça, eram flores, lesmas, pedrinhas e por baixo daquilo se calhar um tesouro, a minha mãe
– E se deixasses de fazer porcarias?
enquanto eu descobria cascas de caracóis, búzios, um gafanhoto com uma pata que se mexia ainda, mostrei -o à minha mãe e a minha mãe com medo
– Tira-me isso da frente
sem que eu compreendesse o pavor que as mulheres têm dos bichos miúdos, uma repulsa pelo que gostavam dantes, a senhora de idade para mim
– Mudei-lhe o camiseiro e repare nessa nódoa aí porque não vai para a sala e me deixa em paz com os talheres?

a mim que apenas queria brincar no quintal sem incomodar ninguém, na sala só cadeiras, a mesa, coisas de adultos que não servem para nada, não aquelas que podiam alegrar-me, o chinês de loiça a quem parti uma orelha, o toiro de madeira com que não me deixavam distrair-me, ao chegar a casa o meu pai movia-os um centímetro ou dois corrigindo-lhes a posição e deixando-os no mesmo sítio que na cabeça dele era outro, o galgo saltou do avental a fim de cheirar a senhora de idade que dava brilho a uma caçarola e regressou num pulo tão desbotado que mal se notava já da mesma forma que começo a desaparecer dos espelhos, se voltasse a trabalhar no teatro que espectador me via e se por acaso falasse qual o som da minha voz, a minha mãe

– Não oiço nada do que dizes rapariga
nos últimos dias da doença nenhum ruído a afectava, olhava em torno intrigada
– Não consigo escutar -vos
voltando-se para uma prima, uma vizinha, para mim
– Emudeceram todas?

comigo não em Lisboa, às voltas com a terra do canteiro há muito tempo, muito longe, sob pombos que se instalavam no céu a meio de uma volta e permaneciam à espera, a senhora de idade a guardar a caçarola num prego
– No céu?
o sobrinho do meu marido
– Não merece a pena contrariá-la para quê?
até se sumirem todos para além dos telhados na direcção da cooperativa, a minha mãe na cama
– Já não oiço nem vejo onde estão vocês?
chamando o marido que não sei por que carga de água tratava pelo apelido
– Sampaio
nunca o primeiro nome
– Sampaio
e a seguir
– Não me dás uma ajuda agora Sampaio?

o Sampaio morto, o dono do talho morto, todos no cemitério como os búzios no quintal, a minha mãe a esfregar -me na banheira
– Volta-te de costas
mais ou menos na época em que o peito começou a endurecer, perguntei à minha mãe
– O que é isto?
e a minha mãe
– É a mudança de idade não te assustes

na sala só cadeiras, a mesa, coisas de adultos que não servem para nada, não aquelas que podiam alegrar-me, o chinês de loiça a quem parti uma orelha, o toiro de madeira com que não me deixavam distrair-me, ao chegar a casa o meu pai movia-os um centímetro ou dois corrigindo-lhes a posição e deixando-os no mesmo sítio que na cabeça dele era outro

a pele pendente agora, os músculos caídos, se me sentasse na terra afundava-me, a minha mãe calou-se a fitar o silêncio e o que posso eu diga-me, o sobrinho do meu marido para a senhora de idade
– A minha tia continua a maçá-la muito?
a senhora de idade às voltas com uma caçarola
– Um bocadinho desinquieta talvez
ou seja daqui a pouco a chamar por meu turno
– Sampaio
sem resultado nenhum, o meu pai sentava -me nos joelhos em Faro virada para ele repetindo
– Cavalinho cavalinho
até que a minha mãe da porta
– O que é que te disseram a respeito de esforços?
porque no exame ao coração uma válvula a perder qualidades, o médico
– Andar devagarinho e quanto a exageros stop

e o que me pareceu ridícula a palavra stop na boca daquele sujeito digno, de bata, imaginava-o em casa a mandar calar a família
– Stop

a esposa digna e os filhos a tornarem-se dignos também embora no fundo as pessoas não amadureçam stop, a válvula do coração oxidada que o médico tentava olear com gotas, a senhora de idade para mim
– Se tenho medo de morrer?
e depois de pensar um bocado de sobrancelhas uma por cima da outra
– Com toda a honestidade não sei

esta frase ao contrário das restantes que se sumiram todas ficou-me, nos momentos em que não está comigo o que faz, a senhora de idade que nunca pensara nisso
– O que faço realmente?
ainda atordoada pelo cunhado que descobriram no sótão com um colega da oficina, ela
– Não pode ser

mas era, enforcou-se na semana seguinte, com a saia da irmã e a cara pintada, a girar na ponta de uma corda metido em chinelos de mulher que lhe escorregavam dos pés, só mulheres também no enterro, os homens com vergonha que pensassem mal deles, à senhora de idade já lhe havia chegado o zunzum mas quem neste mundo não diz mal de nós, uma ocasião a propósito de não sei quê a viúva contou que o marido não cumpria desde o nascimento da filha
– Por respeito à criança
argumentava ele
– Por respeito à criança
e apesar de sentir a falta admirava-lhe a delicadeza, a senhora de idade para o sobrinho do meu marido
– Merece a pena insistir nos remédios se está cada vez pior isto não se soluciona com doutores

e na realidade não se solucionava fosse com o que fosse, o que aconteceu hoje por exemplo, o que aconteceu ontem, acho que me entretive na cozinha mas não estou certa se foi ontem ou há muito tempo ou hoje, a senhora de idade para mim
– Continua mergulhada na tralha por lavar
confundindo-a com as flores mortas e a terra do quintal de Faro, o médico para o sobrinho do meu marido
– A sua tia está a cair mais depressa que eu julgava

enquanto eu, passando-lhe os dedos na secretária, descobria cascas de sementes, um bloco de receitas, búzios, canetas, uma lesma que se movia ainda, mostrava -a à minha falecida mãe de repente muito mais nova que eu agora, a minha mãe apavorada
– Põe-me isso lá fora já

e eu a achar graça, já disse isto, ao medo que as mulheres, qual crescem, sentem pelos animais pequenos, em pânico com aquilo de que gostavam dantes, o sobrinho do meu marido para mim
– Esteja quieta tia
o sobrinho do meu marido para o médico
– E agora?
o médico a escrever uma receita com a lesma
– E agora oxalá surja uma infecção que a leve

olhando o sobrinho do meu marido por cima dos óculos, no meio da armação viam-se os poros da pele e as pestanas uma a uma, ao chegar a casa o motorzito do gato pulou da cama a percorrer-me as pernas enquanto a senhora de idade aspirava o tapete
– Larga pêlo que se farta esse bicho

e eu tão linda no espelho, pelo menos assim de repente menos rugas agora, conheci o meu primeiro marido na época em que comecei no teatro, era irmão do director e ocupava-se das contas num cubículo esconso, um homem mais ou menos da idade do meu pai

porque o tempo avançava para ele também coitado, comia menos, uma das orelhas mirrada, o meu pai poisou -me a mão na nuca e senti a pele dele, senti o cheiro mais profundo do corpo e um crucifixo que se pôs a bater contra o espaldar no interior de mim
– Um dia destes vamos a Marrocos filha

e nunca fomos, víamos os barcos de pesca na praia, à noite nem sequer barcos, só candeias aos pares acima da água e abaixo da água, acima da água fixas, abaixo vibrando, o polegar do meu pai afagava-me devagarinho, a minha mãe pendurava roupa na corda do quintal tirando molas das algibeiras com medo das vespas, a senhora de idade já não me dava peixe nem carne, dava-me uma espécie de sopa como a minha mãe quando eu era pequena
– Não tens que mastigar engole

se for agora ao cabeleireiro sozinha como é a direito não me perco mas tenho vergonha porque já não me visto como dantes, um roupão sempre e as pernas que custam, a senhora de idade que nunca me acompanhava a segurar-me o braço
– Daqui a nada atravessamos a rua
e a minha cabeça, não eu, a repetir
– Daqui a nada atravessamos a rua
o médico para o sobrinho do meu marido
– Temos o problema de existir quem dure eternidades assim e de vez em quando as ideias lúcidas antes de se dissolverem para sempre

uma cantiga que me pegava ao colo caminhando para um lado e para o outro da sala a embalar-me
– Dança o cão dança o gato dança o feijão carrapato
não a minha mãe que fugia das vespas nem o meu pai com Marrocos na ideia, eu
– Já foi a Marrocos pai?
a voz dele de súbito outra
– Falta o dinheiro filha

sem que eu compreendesse a relação entre Marrocos e dinheiro, não era preciso, bastava avançar mar adiante, o sobrinho do meu marido para o médico
– Durante quanto mais tempo
e perdi o resto, quanto mais tempo o quê, a dona do cabeleireiro a apontar-me às empregadas depois de me sentarem
– Não pára quieta coitada enquanto me mexiam no cabelo que sobrava
– Pinta-se à mesma de loiro apesar dos estragos?

e eu tão linda no espelho, pelo menos assim de repente menos rugas agora, conheci o meu primeiro marido na época em que comecei no teatro, era irmão do director e ocupava-se das contas num cubículo esconso, um homem mais ou menos da idade do meu pai mas observando melhor não, mais velho, sessenta e dois, sessenta e três anos, o director do teatro reprovador
– Tu que eras sossegado foste ficando gaiteiro podia ser tua neta tem juízo

o irmão sem casaco, com o coração dentro do bolso no cabide que para multiplicar não são precisos sentimentos e a gravata um nó de suicida hesitante, às risquinhas, a marca da aliança de uma viuvez recente a entristecer-lhe o dedo, quando se aproximava de mim sentia-o observar-me não de olhos nas órbitas, pendurados delas pedindo e um crucifixo não sei onde mas distante porque uma batidela fraca, a minha mãe para o meu pai, também distante, com metade dos lençóis ainda por lavar no quintal
– Com mais cuidado tem paciência não vá a miúda dar conta

o meu primeiro marido envergonhado sem que eu descobrisse o motivo, envergonhado de quê, porquê, como, não falámos sequer, passei apenas já sem me lembrar dele parado no corredor a olhar-me e qualquer coisa na cara que sem coragem de pedir pedia, sem coragem de falar falava, trazia o almoço numa marmitinha, comia entre facturas onde deixava pingos, se ao ir-se embora ao fim da tarde calhava encontrar -me inclinava a cabeça, tão tímido, pagava-me o ordenado mais depressa que aos colegas com uma ou duas notas acrescentadas por acaso e a recusar que eu lhas devolvesse
– Está bem assim
agradeci o aumento ao director do teatro e o director do teatro a franzir-se
– Aumentei-te?
a disparar para o cubículo e a trancar a porta, escutei
– Vais ganhar menos tu
a sair como se eu fosse invisível
– Já nasceste palerma

a reentrar no cubículo e silêncio, nenhum comentário, nenhum som, aposto que se fitavam calados ou que o director do teatro para o irmão
– Desde que nascemos que tomo conta de ti

o meu marido na cama dele se os padrinhos com quem vivia a discutirem, o director do teatro defendia-o dos restantes rapazes, jogava pedras aos cães que lhe ladravam, quando a professora o ameaçou com um ponteiro quebrou-o no joelho
– Livre-se de magoar o meu irmão

e a professora sem lhe responder, medrosa, no funeral da cunhada que os ovários levaram deu-lhe o braço no cemitério, trouxe-o de volta a casa, ficaram horas juntos a fitarem -se na mesa de jantar, arrebanhou-o para o teatro a pretexto de fazer falta quem se ocupasse dos números, ordenou
– Até pescares a próxima vens morar comigo
começou a olhar -me com mais interesse, a fazer-me perguntas
– De Faro
vasculhou a vida dos meus pais, vasculhou a minha
– Talvez séria
uma rapariga sem os vícios de Lisboa, ainda tímida, humilde
– Para atravessar a cena duas ou três vezes não precisa de aprender grande coisa
explicou-me
– Pões os miosótis na jarra e somes-te
ou
– Dizes boa noite senhor marquês e desapareces logo
vigiava-me as companhias de longe, a madrinha do irmão do director do teatro para o director do teatro
– Ainda bem que tomas conta dele é um inocente
e o director do teatro tomava, despediu um carpinteiro que respondeu torto
– Com o meu irmão não brincas
um dia sem aviso chamou-me ao gabinete
– Casas com ele e subo-te para o dobro
falou com o irmão
– Está apaixonada por ti
levou-nos a jantar a casa
– Ficam óptimos um para o outro
o crucifixo desta feita umas pancadinhas mais intensas, o director do teatro para mim
– Ofereço-te um segundo pai escusas de me agradecer

– Gostas de mim?
eu com um esforçozito
– Gosto
o sobrinho do meu marido para a esposa
– Como seria a vida dela antes de o encontrar?
os meus pais calados o casamento inteiro, a minha mãe
– Deus queira

e foi assim, com pormenores que se apagaram mas mais ou menos assim, quase nunca tinha estado com um homem na cama e não me incomodou muito, apenas o suficiente para deixar de incomodar-me, comecei a ajudá-lo
– Espere aí
até ele resolver o assunto, depois de resolvido
– Gostas de mim?
eu com um esforçozito
– Gosto
o sobrinho do meu marido para a esposa
– Como seria a vida dela antes de o encontrar?
os meus pais calados o casamento inteiro, a minha mãe
– Deus queira
com o meu pai já doente a amparar -se a mim
– Não fomos a Marrocos
e ainda estamos a tempo paizinho vai ver, mal melhore metemo-nos no barco e não nos metemos, o meu pai da cama
– Não olhes para mim que me dá pena

embora conseguisse o que ele pensava um sorriso e não era um sorriso, eram os olhos parados, era a boca aberta, era o peito quieto, eram um dedo ou dois a procurarem-me às cegas e a deterem-se sem me encontrarem numa prega da colcha, era eu
– Pai

e a minha mãe a ajeitá-lo, tudo tão perto das amendoeiras, tudo tão perto das redes de pesca, tudo tão longe de nós, pai pai pai pai pai, as coisas dele no armário, uma das pantufas esquecida no soalho que não caminha porquê, lembra -se da gente a passear no porto, lembra-se da gente a correr de mão dada, lembra -se de eu ser sua filha, o meu marido
– Estás triste?
e eu logo
– Não
e depois a esquecer -me devagarinho, o director do teatro
– Enquanto o meu irmão cá estiver não te deixo cair
e enquanto o irmão lá esteve não me deixou cair, o senhor Barata para mim, o que terá sucedido ao Salta Pocinhas
– Está cada vez mais actriz

comecei a vestir-me melhor, a usar anel, a ganhar nome nos programas mesmo em letras cá em baixo onde ninguém via, subi uma linha ou duas, subi três linhas, um jornal mencionou-me, outro jornal a seguir, o encenador satisfeito
– Andas a tornar -te uma estrela

comecei a agradecer aplausos juntamente com os restantes, não ao centro claro mas cada vez mais perto, uma ocasião recebi flores de um sujeito enquanto o meu marido ia murchando com o tempo, colocava-lhe o guardanapo, ajudava-o a comer, comprava-lhe fraldas no fim, o director do teatro a abraçar -me no cemitério
– Foste boa com ele

eu que nunca o vira chorar, com o queixo e a garganta a saltarem e pássaros quietos nas árvores excepto os melros bicando entre as lápides sem mencionar libelinhas, besouros, o meu nome quase a meio do cartaz, mais para o segundo terço do que para o primeiro, se o Salta Pocinhas ali estivesse segurando a ratazana morta pela cauda
– Eu não disse eu não disse?
a minha mãe
– Não sei se mostrares o corpo a tanta gente não é pecado
o director do teatro
– Continuas connosco
acompanhando -me do cemitério a casa e no fim
– Obrigado

já de costas a descer as escadas, foi a única ocasião que me pareceu com muito mais anos que aqueles que tinha e não voltei a vê -lo andar na rua a assoar -se, no dia seguinte lá estava a gritar com o cenógrafo, eu na sala sem acender as luzes depois da noite chegar com as árvores a murmurarem no escuro, um grupo a rir-se em baixo para além dos que vasculhavam o lixo e um camarada de cócoras no passeio a beber, não sei o que sentia pelo meu primeiro marido, não sei o que sinto por ninguém excepto o meu pai, a voz dele
– Filhinha
dentro da minha cabeça, mesmo ontem no cabeleireiro de repente
– Filhinha
e eu a procurá -lo sem o encontrar
– Assim não consigo penteá-la madame

– Um motor de arranque daqueles dava-nos jeito
ao aproximar-se de mim o meu pai aflito
– Não ouviste nada pois não?
eu para o meu pai
– Que um motor de arranque daqueles dava-nos jeito não ouvi

e de facto começou a faltar-me o cabelo e depois o resto, o corpo muda tanto, emagreci ou os ossos cresceram, o director do teatro deixou de me bater à porta, o tamanho do meu nome foi diminuindo nos cartazes, entrava numas peças, não entrava nas restantes, cessaram de me cumprimentar, não se incomodavam por mim, não me faziam perguntas, o que substituiu o meu marido no cubículo uma sinalefa e adeus, o senhor Barata a esconder o cigarro na mão
– Ai menina

dormia num quartito nas redondezas e simpatizava comigo, conheci o meu segundo marido na pastelaria, começámos a conversar nem sei porquê, uma tarde sem que eu esperasse pegou -me na mão e o crucifixo de regresso, mais enérgico, isto na altura em que a memória começou a secar, os actores à espera que eu falasse e não falava, sabia quais eram as deixas e no entanto um muro entre mim e elas que não caía, não caía, carregava com o pé no chão e não caía, o director do teatro
– Vais descansar uns tempos talvez isso melhore
o meu segundo marido
– O que é feito da sopa?

e não havia sopa, esqueci -me, não havia jantar, esqueci-me, ele com o avental do galgo que ladrava sem que desse por isso a aquecer na cozinha o tacho da véspera, se a minha mãe ali estivesse
– Meu Deus
o senhor Barata
– Tenho ordens para não a deixar entrar desculpe

a impedir-me a porta com o corpo, não me recordo do falecimento do meu segundo marido, o sobrinho dele durante o funeral
– Estive aqui ontem no velório esqueceu-se?

e talvez vagamente, duas ou três pessoas, dois ou três ramos de flores, duas ou três parentes que não conhecia a gritarem de surdez umas às outras
– Como?
além das velhas um senhor a tossir a um canto, creio que primo, recusando apresentar-se
– Actrizes nem pensar venho de gente séria
o médico para o sobrinho do meu marido que não sei porquê me aceitava
– Há medicamentos que atrasam a doença
e não havia medicamentos nenhuns que atrasassem a doença, o raciocínio sem nexo, a memória pior
– O empregado da porta do teatro senhor quê?

como se chama a terra do meu pai, Abrantes, Évora e de repente, como um milagre, Faro, o sobrinho do meu marido espantado e eu tão contente
– Faro
porque existindo Faro existia o meu pai
– Tive um pai tive um pai
a inquietar -se
– Não sente febre pois não?
colocando a palma na minha têmpora e a minha mãe sem me olhar, toda no interior do crochet
– Mas que febre basta ver a cor dela
a minha mãe
– Se tivesse febre sentia-a logo em mim nenhuma mãe falha essas coisas
e nenhuma mãe falha essas coisas realmente só que não passeava connosco
– Este músculo outra vez não há pomada que acerte

de modo que o meu pai e eu aos domingos à tarde na rua, demorava-se com um compincha a apreciar a dona do quiosque
– Um motor de arranque daqueles dava-nos jeito
ao aproximar-se de mim o meu pai aflito
– Não ouviste nada pois não?
eu para o meu pai
– Que um motor de arranque daqueles dava-nos jeito não ouvi
ouvi boa tarde senhora
o meu pai agradecido a beijar-me
– Foi exactamente isso gosto da maneira como entendes as coisas
e enquanto o motor de arranque desaparecia a gente os dois a piscarmos o olho um ao outro”

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