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MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

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Assim se produz uma ópera, entre Lisboa e Los Angeles

Uma nova produção da ópera "Iphigénie en Tauride", de Christoph Willibald Gluck, estreia dia 5 de março no Teatro Nacional de São Carlos. Fomos acompanhar os últimos preparativos.

Um a um, os membros do Coro do Teatro Nacional de São Carlos entram no camarim apertado. Primeiro os homens, depois as mulheres. Ao todo são 34 os coralistas que irão participar em Iphigénie en Tauride, a famosa ópera de Christoph Willibald Gluck sobre a tragédia de Ifigénia, irmã de Orestes, que agora sobe ao São Carlos numa nova produção, com encenação do norte-americano James Darrah e direção musical de David Peter Bates.

Os ensaios começaram há quatro meses, mas esta é a primeira vez que todos os coralistas e solistas vão subir ao palco com os figurinos que foram feitos especialmente para eles em Los Angeles. O coro masculino despacha-se mais depressa, só tem de se preocupar com uma curta passagem pela zona de maquilhagem. Já as mulheres, cada uma com uma cabeleira feita à sua medida, têm de se sentar pacientemente em frente a uma cabeleireira durante longos minutos. “É de cabelo natural!”, exclama uma das coralistas falando da sua própria peruca. “Pois, nota-se logo! É brilhante!”, respondem-lhe os outros cantores, sentados num banco à porta do camarim aguardando a sua vez.

Para matar o tempo, uns agarram-se aos telemóveis, outros aquecem a voz. Tricota-se malha lilás e comenta-se a roupa dos outros, os cabelos. “Eu pareço que meti a cabeça na centrifugadora. Mas a tua…!” Fala-se de ópera, de arte, de Orestes, Iphigénie e daquele “grande filme” do Pasolini, Notes Towards an African Orestes, onde não há gregos nem troianos, apenas África.

Lá dentro, o trabalho é feito a contra-relógio. De um lado estão as cabeleireiras, do outro as maquilhadoras. Têm apenas uma hora para deixarem todos prontos para o ensaio e têm de se apressar. No dia da estreia também será assim. “Está a cair!”, exclama Antónia Ferraz de Andrade, enquanto a cabeleireira tenta prender a sua peruca com vários ganchos. “Cair nunca caiu, mas já me aconteceu escorregar quando estava em palco”, conta a coralista, enquanto segura a cabeleira com uma das mãos. “Desde que não caia, é o que interessa!”

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A maioria dos coralistas já estão vestidos. As mulheres com longos vestidos cinzentos e os homens de preto e maquilhagem pesada. No andar de cima, nos camarins dos solistas, as coisas estão mais atrasadas — há ainda quem não esteja vestido.

Faltam menos de 15 minutos para o início do primeiro ensaio com os figurinos de cena, e as maquilhadoras correm de um lado para garantir de que já estão todos maquilhados. Eyan Candini, assistente da figurinista norte-americana Chrisi Karvonides, anda de camarim em camarim a ver como ficaram as roupas. Ajeita os casacos, pergunta como os cantores se sentem e vê se será preciso fazer mais alterações antes do dia da estreia.

Assim que ficam prontos, os cantores dirigem-se para o palco e ocupam as suas posições. Os homens ficam nos bastidores, as mulheres do lado de fora, alinhadas ao longo do palco. O cenário, cinzento como os figurinos das coralistas, parece uma antiga fábrica, iluminada pela luz de um gigantes globo que não se parece com a lua nem com o sol. Olhando em volta, esta tragédia grega parece ter pouco de grego. Mas foi exatamente isso que James Darrah quis.

O primeiro de cinco passos

Alexandra Deshorties, Iphigénie em cima do palco, ajoelha-se. Compõe a saia e deita-se no chão. Em seu redor estão cinco bailarinos, também eles deitados. “Boa tarde, minhas senhoras!”, grita o diretor musical, David Peter Bates, sentado no fosso de orquestra. “Boa tarde!”, gritam-lhe as coralistas de volta, sentadas ao longo das altas paredes do cenário. O ensaio é realizado ao som do piano, sem orquestra, mas tenta reproduzir-se ao máximo o dia da estreia. O próximo, o pré-geral, já será acompanhado pela Orquestra Sinfónica Portuguesa.

Iphigénie é interpretada pela soprano canadiana Alexandra Deshorties

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O pano cai de repente, e o São Carlos ilumina-se como se não fosse tudo a fingir. “Tu ainda não estás aqui, David”, diz James Darrah percorrendo o corredor da plateia e referindo-se à entrada do maestro que, numa situação normal, só aconteceria depois da orquestra ocupar o seu lugar. Batem-se palmas e o pano sobre. E tudo começa.

“Está tanta luz em palco”, comenta o encenador. “Pede para diminuírem”, responde-lhe David, sem tirar os olhos do palco. Durante hora e meia, o tempo que dura o ensaio, James também se mantém atento, tirando notas no iPad e dando algumas indicações sempre que necessário. “Os homens estão de saída!”, vê-se obrigado a gritar já perto do intervalo, depois de o coro masculino não ter saído de cena na altura certa. Repete a deixa, mas ninguém parece ouvir. Mas logo alguém levanta um braço e aponta para a saída. Relutantes, o coralistas lá começam a sair.

“Jesus Cristo…”, suspira James. E, de repente, tudo escurece.

Ao intervalo, James Darrah parece preocupado. Anda de um lado para o outro da plateia falando com este e com aquele. “A roupa dela devia estar mais escura”, diz, explicando que ainda faltam acertar alguns pormenores, limar algumas arestas. “Na verdade, faltam-nos alguns dos figurinos porque os fizemos todos em Los Angeles. Decidimos acabá-los lá porque há pessoas que os estão a tingir”, refere. “O figurino da Iphigénie está longe de estar terminado. Ela tem um corpete de cabedal que vai ser enviado de Los Angeles e as senhoras todas têm capuzes na cena final. Faltam vários detalhes deste género e pequenas coisas que ainda vamos ter de aperfeiçoar.”

É por esse motivo que o São Carlos faz sempre questão de fazer um primeiro ensaio com todos os figurinos antes da estreia, para que haja tempo de fazer todas as alterações. “Fazemos isto para o caso de querermos mudar alguma coisa ou para vermos o que queremos mudar. Trata-se de deixar tudo perfeito e de termos tempo para o fazer”, explica o encenador. Até dia 5 de março, há muitas coisas que serão alteradas. O cabelo de algumas das coralistas será diferente e a saia de Iphigénie estará mais escura, porque ainda “só está no primeiro de cinco passos”.

“Uma mulher de Los Angeles vai viajar para Lisboa e vai fazer o tingimento e o envelhecimento do tecido. Isso é feito manualmente e é preciso tempo. Precisamos de ver a saia no palco para sabermos como é que a vamos acabar.” Essa mulher é Maria Smithbird, que há vários anos trabalha no cinema. Também ela de Los Angeles, acabou em Lisboa por causa de um favor.

O diretor musical, David Peter Bates (à esquerda), e o encenador, James Darrah (à direita)

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“Basicamente, cobrei-lhe um favor para a trazer”, diz divertida Chrisi Karvonides, sentada num corredor escuro do teatro lisboeta. Com cerca de dez anos de diferença, as duas conheceram durante a produção de uma série televisiva. “Já fizemos três séries juntas, mas ela trabalha com muitos filmes grandes, como os Piratas das Caraíbas. É uma pintora incrível!”, diz sorridente. “É a única pessoa que conheço que consegue reproduzir exatamente aquilo que pintei. Já pintámos muito juntas (porque eu adoro pintar) e ela percebe o que quero sem ter de dizer muita coisa sobre a cor, o ritmo, a maneira como flui ou sobre como será o produto final. O que ela faz é muito sofisticado.”

Entre Lisboa e Los Angeles

Chrisi Karvonides, figurinista com mais de 25 anos de experiência em televisão, cinema e teatro, começou a trabalhar nas roupas para Iphigénie en Tauride em junho, altura em que James chegou ao pé dela e lhe disse: “Sabes, tenho uma ópera em Portugal. Queres fazê-la?” Estava então a trabalhar com o encenador numa outra ópera, Breaking the Waves, e também já se tinha comprometido com uma série de televisão. “Por isso, não tem sido a coisa mais fácil de sempre. Tenho viajado para trás e para a frente”, admite.

Como toda a equipa criativa estava toda em Los Angeles, James optou por construir parte da cenografia e os figurinos nos Estados Unidos da América. “Como eu, a cenógrafa e o designer de iluminação também lá estávamos, acabámos por produzir os protótipos — as primeiras amostras dos figurinos — lá. O James adorou-os e, como ele também participou no design, perguntou-me se podíamos acabá-los, ajustá-los e alterá-los lá, uma vez que toda a gente estava lá. E, por isso, fizemos assim.”

Na altura pareceu-lhes muito mais fácil do que acabaria por ser. “Gosto de manter o projeto no país onde estamos a trabalhar, mas desta vez não aconteceu assim”, refere Chrisi. “Mas todos os ajustes estão a ser feitos aqui, em Portugal. Assim é melhor.” Desde então, já esteve três vezes em Lisboa, sempre acompanhada pelos figurinos. Tem sido uma loucura, mas uma loucura boa, e isso nota-se pela maneira como sorri. “Não temos edifícios assim tão antigos lá!”, diz referindo-se ao São Carlos. “Isto aqui é lindíssimo!”

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O longo e moroso processo de fazer os figurinos começou com uma conversa com James. “A primeira coisa que temos de fazer é comunicar com o diretor musical porque somos nós que tornamos as suas ideias reais”, explicou a figurinista. Foi apenas depois disso, que Chrisi começou a fazer a pesquisa. “Olhei para influências da Grécia Antiga, para influências do tempo em que a ópera foi escrita por Gluck, e depois olhei para interpretações contemporâneas.” Resultado: centenas e centenas de desenhos, que ainda traz guardados no email. “Divido o meu tempo por quatro estúdios diferentes — o meu, o da Universidade da Califórnia, o da série em que estou a trabalhar e este aqui. Tenho de trazer sempre tudo comigo.”

Depois foi a vez de fazer os primeiros protótipos, de procurar os tecidos e de pensar em como é que estes iam ser pintados. “Depois, no final de novembro, finalmente recebemos as medidas. Começámos a fazer as roupas em dezembro e janeiro, e depois viemos para aqui no início de janeiro para as provas. Fizemos todos os ajustes aqui.”

O processo foi acompanhado diretamente por Eyan Candini, assistente de Chrisi, enquanto esta estava em Los Angeles a trabalhar nos seus outros projetos. “Ele esteve cá nas últimas seis semanas. Trabalhou com a assistente daqui e depois foram para o sótão e pintaram os figurinos, enquanto estavam pendurados numa corda. Tiveram de os escurecer muito, porque no início estavam muito claros. Não ficavam bem com o cenário, e eles tiveram de os ajustar.”

E “depois trouxe a Maria”, que acabou de pintar os figurinos, no mesmo sótão “com uma luz incrível” onde Eyan passou as últimas semanas.

Na ópera, participam 17 membros do coro feminino do Teatro Nacional de São Carlos

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Chegar à essência da história

Apesar do trabalho dos figurinistas e cenógrafos, James Darrah também teve um papel importante na criação das roupas e do cenário. O resultado final é, em grande medida, a visão dele. “O James Darrah é muito visual”, salienta Chrisi Karvonides. “Ele tinha uma ideia do que queria — queria algo simples, intemporal, moderno, talvez com uma pequena alusão à Grécia, mas que não desse a entender em que tempo a ópera se passava. Isso é algo de que ele realmente gosta, porque ele quer chegar à essência da história. Não quer algo demasiado decorativo.”

A ideia “era que se passasse num período que parecesse que foi criado, por isso não é uma produção de época”, explica por sua vez o encenador. “Não é que tenha fatos e gravatas e vestidos modernos. Mas parece que não é deste mundo. É como um sonho.” Um bom exemplo disso é o gigantesco disco que foi construído pela cenógrafa Emily MacDonald e que está pendurado por cima do palco. “Obviamente que faz lembrar o sol ou a lua, mas tem uma forma oval para que a pergunta fique sempre no ar — mas uma pergunta que é mais enigmática do que elucidativa. Podíamos simplesmente ter pendurado um sol ou uma lua, mas assim é mais abstrato.”

Emily é casada com Cameron Mock, o designer de iluminação responsável pela produção da ópera. “Trabalhamos muito com esta equipa”, conta James Darrah. “A Emily e o Cameron já fizeram muitos espetáculos comigo. E o Cameron tem iluminado quase tudo o que tenho feito. É incrível o que ele consegue fazer com a luz, como ele consegue esculpir o espaço desta maneira.”

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Apesar da obra de Gluck se passar depois da Guerra de Tróia, James admite que tentou criar um mundo alternativo, “uma espécie sociedade estranha”, dominada por um rei “vaidoso e orgulhoso”. “É suposto passar-se numa ilha onde fica este tempo de Diana, a deusa, que foi dominado por este grupo de pessoas vestidas de preto. São como pagãos sangrentos. Eles acreditam no ritual de sangue e o líder deles, o rei [de Táurida], decide que vai começar a matar todas as pessoas que dão à costa. É por isso que parece um sítio que costumava ser muito agradável, mas que agora é como se o tivessem esfregado.”

A inspiração, garante, não foi buscá-la a outro mundo, mas à música e ao próprio texto, escrito por Nicolas-François Guillard. “A forma como a peça grega foi adaptada e a forma como for construída musicalmente tem tudo o que é necessário — a maneira como se move e como tudo deve acontecer, é tudo muito musical. Está tudo na música.”

Iphigénie en Tauride estará no Teatro Nacional de São Carlos nos dias 5, 7, 9, 11 (sempre às 20h) e 13 de março (às 16h). Bilhetes entre os 10 e os 50 euros.

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