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© Hugo Amaral/Observador

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Progeria: correr atrás do corpo

A esperança média de vida de uma criança com progeria é de 15 anos. Cláudia, que sofre da doença, faz esta quinta-feira 16 anos.

Cláudia corre atrás do corpo, tenta agarrar os pedaços de saúde que vai perdendo, estancando-os com medicamentos e tratamentos experimentais. Desde 2007, é uma passageira frequente para Boston, nos Estados Unidos da América, onde é acompanhada num hospital especializado em crianças. Este mês, volta a partir.

Sofre de progeria, uma deficiência genética rara, que provoca o envelhecimento precoce do corpo. Um em oito milhões. É esta a estatística, a probabilidade. Apenas um em oito milhões são afetados pela doença. Num país com 10 milhões de habitantes existem cinco casos, sabe o Observador, mas só três estão sinalizados, na associação nacional de doenças mentais e raras – Raríssimas.

A aluna que frequenta o décimo ano, num curso profissional de turismo, em Viseu, sofre das mesmas doenças que muitos idosos: artrites nos dedos que parecem tolhidos para dentro, delicados; reumatismo, já só tem alguns fios de cabelo soltos e a voz tem um tom agudo, que quando fala parece estar em esforço. Os olhos salientes, aquosos, da mesma cor que o carvão, não parecem ter a mesma idade do corpo da menina.

Mas Cláudia não é Benjamin Button, como no conto de Fiztgerald. O tempo vai passar por ela, desgastando-lhe a saúde. Ela não vai rejuvenescer.

Mãe e filha, no sofá da sala.

© Hugo Amaral/Observador

Cláudia dorme, encolhida, no sofá, agarrada a uma almofada. Tem uns óculos cor-de-rosa e o dedo mindinho da mão esquerda lateja. De vez em quando, espreguiça-se. Passaram três dias desde que o ano letivo começou e ainda não se adaptou aos horários.

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 A lógica da doença

Um dos sintomas da progeria é que os doentes nascem com bocas muito pequenas. Então, os dentes tendem a nascer encavalitados uns nos outros, provocando muitas dores. Cláudia acorda com dores. Pede gelo para acalmar o “calor” que sente na boca. Cristina Amaral, a mãe, vai, imediatamente, à cozinha e regressa com uma cuvete de gelo, embrulhada num pano, que entrega à filha.

Antes dos dentes, houve outros sintomas. Aos quatro meses, caíam-lhe pedaços de cabelo. Por mais que comesse, Cláudia não parava de emagrecer. “Apercebi-me muito mais rápido do que os médicos. É uma coisa de mãe”, diz Cristina, 32 anos, que trabalha como auxiliar de educação numa creche.

O diagnóstico chegou dois anos depois. “À facada”, lembra Cristina, imitando a voz seca do médico quando este lhe disse: “A Cláudia tem progeria. Pode morrer a qualquer momento.”

Cristina pensou: “Não vou apanhar amor para ela morrer amanhã”. Como se o amor fosse contagioso. Deixou a racionalidade no consultório, de onde saiu a correr, ignorando as explicações adicionais que médico e enfermeiras lhe queriam dar.

Tinha 16 anos e uma recém-nascida com progeria. Doença de que nunca tinha ouvido falar. Foi chorar para trás de uma árvore. Uma adolescente assustada. Cristina tem as unhas pintadas de azul-escuro, mas com o detalhe do dedo indicador estar polvilhado com brilhantes, o que condiz com o espírito jovial que mostra. Ser mãe adolescente nunca foi problema, antes a causalidade de um amor que até hoje se mantém.

Por final, uma enfermeira veio à sua procura e levou-a até ao consultório médico, de forma a esclarecer o que se tinha passado. “Mas ele disse aquilo à facada”, repete, para justificar a cena. Desde aí, não parou de procurar informações sobre a doença.

De um dos móveis da sala retira duas capas de argolas muito volumosas. “Está aqui tudo o que sei”, diz. Construiu um “atlas da progeria.”

Algumas amigas começaram por imprimir-lhe páginas da internet e pesquisas de imagens do Google. Uma vez, chegou a confrontar a médica que seguia Cláudia por ter publicado fotos da filha na internet, mas apercebeu-se que estava errada e que todas as crianças com progeria têm uma fisionomia muito semelhante. Destaca-se também um artigo científico da Sociedade Portuguesa de Pediatria, publicado em 2006, onde aparece detalhado o “envelhecimento precoce” de Cláudia.

Até 2007, Cláudia tinha sido acompanhada por uma médica do hospital de Viseu. Mas uma “benfeitora que não quer ser identificada” descobriu Cláudia na creche e acabou por fazer com que esta fosse encaminhada para o departamento de genética rara em Coimbra. Até aquele momento, Cristina não sabia da existência de qualquer hipótese de tratamento para a doença da filha. Quando lhe sugeriram levar a filha para os EUA para participar de uma série de tratamentos experimentais, respondeu ao médico: “Nem para pagar a renda tenho dinheiro, quanto mais ir para os Estados Unidos.” Depois de muita “luta interna”, que cedeu por causa da saúde da filha, acabou por aceitar ajuda da benfeitora. A Raríssimas, já mais tarde, veio juntar-se nos apoios.

Cláudia corre atrás do corpo, tenta agarrar os pedaços de saúde que vai perdendo, estancando-os com medicamentos e tratamentos experimentais. 

No discurso de Cristina está sempre presente uma afirmação que parece não conseguir, por mais que se esforce, digerir: “Os médicos não estão preparados para trabalhar com a raridade.” A mãe de Cláudia debate-se com um dilema ético: deve um médico especializar-se numa doença como a progeria e tentar ajudar cinco pessoas num país ou optar pela clínica geral e tentar ser útil à maior quantidade de pessoas possível. Qual é a resposta certa? “Os [médicos] dos EUA é que são…”, diz, sem chegar a completar a frase, com a mão a fazer um movimento de subida, num ângulo de 45 graus que parece ter como rumo o infinito.

Entre os dias 7 e 12 de Agosto deste ano, mãe e filha estiveram na Dinamarca, num encontro de famílias europeias com filhos que sofrem de progeria, organizado pela associação Progeria Family Circle. Todos os anos, este encontro repete-se e o país anfitrião muda.

Em 2012, Cristina, em conjunto com a associação Raríssimas, tentou trazer esse encontro anual a Lisboa, mas faltou “o cachê”. “Eu além de não ser nada, não significo muito”, resume. Precisavam de cerca de 70 mil euros e até já tinham conseguido alguns apoios, quando todos os esforços caíram por terra. “O Sr. [Pedro Passos] Coelho achou que não valia a pena”, diz, “e cortou verbas.”

2 fotos

Agora, diz, está a tentar organizar o evento em 2016. Se conseguisse, realizaria “o pequeno sonho de Cláudia.” “Estes encontros, não são para as mães. São para eles”, alerta Cristina. As crianças partilham uma sensibilidade comum, como um coletivo de artistas. “Parece que comunicam por telepatia. Gostam todos muito de música e de tirar fotografias”, diz. Os pais ficam a saber das novidades sobre os tratamentos. Durante o resto do ano, comunicam pelas redes sociais, principalmente no Facebook.

“Já não sou eu”

Na entrada de casa, estão expostas várias fotografias da família Amaral. Cláudia e a mãe, Cláudia e o pai, Cláudia com o irmão José e os pais. Mas, de todas as molduras, destaca-se um quadro pintado à mão, que tem um autocolante da Hello Kitty colado no vidro.

Quadro que Cláudia pintou durante o primeiro internamento nos EUA.

D.R.

Uma paisagem pitoresca, pintada em tons de verde, que faz lembrar algumas das obras do pintor pós-impressionista Van Gogh, em particular a paisagem do quadro “Campo de Papoilas”. “Já não sou eu”, diz Cláudia, algo incomodada por a mãe ter mostrado o quadro pintado durante o primeiro internamento nos Estados Unidos em 2007.

Cristina acorda Cláudia, sussurrando-lhe ao ouvido: “Acorda, Mana.” Mãe e filha não se tratam como tal. Abandonaram a estrutura comum dos graus de parentesco, para estabelecerem uma linguagem mais íntima, das duas.

“Não me chateies”, responde Cláudia, que esperneia para a mãe se afastar. Depois, envolve-se na coberta do sofá.

“Até pareces uma pita”, continua a mãe.

“Eu gosto de ser pita”, responde Cláudia, que esboça um sorriso terno ao olhar para a mãe. Quando acaba por ceder e acorda definitivamente, a primeira coisa que Cláudia faz é procurar aos apalpões pelo telemóvel.

Ela nunca quis saber [da progeria].Não se importa se é grande ou pequena. Vai a todo o lado. Quer é gozar a vida”, diz Cristina. À primeira vista, pode parecer negação da doença esta resposta. Mas falar da doença é dar-lhe demasiado valor, “demasiado espaço à mesa”.

Cláudia sempre gostou muito de dançar. Frequentou o ballet, durante alguns anos, até que os ossos se tornaram demasiado fracos para ter a elasticidade. Agora mudou de pista de dança: “Vai à discoteca e chega a casa às oito da manhã. E vai sozinha. Não quer a mãe ao lado, porque é ‘velha’”, diz, a rir-se, como se tivesse orgulho da rebeldia da filha, que ela não se deixe dominar pela doença.

Como fundo do telemóvel, Cláudia tem uma fotografia com os dançarinos do cantor Anselmo Ralph. “É doente por ele”, conta a mãe. Já foi ver dois concertos do músico angolano e num deles, em Mangualde, esteve no colo do seu ídolo, enquanto ele cantava a música “Não me toca”. O que Cláudia não sabe é que os óculos de sol do cantor não servem apenas uma questão de estilo. Como Cláudia, também Anselmo sofre de uma doença neuromuscular rara que causa fadiga e fraqueza rápida nos músculos e que ataca primeiro nos olhos – miastenia gravis.

(O Observador convidou o cantor a gravar uma mensagem para Cláudia.)

Cláudia guia-nos pela sua casa e leva-nos ao quarto do irmão, espaço em que está o computador da casa, para mostrar as fotografias que tem desse momento. A adolescente, que mede pouco mais de um metro, fica ao nível da secretária, de forma que conseguir apoiar os braços, ao mesmo tempo que faz pesquisas. Algumas das fotos, nem a mãe conhecia. Ao Observador, mostra um vídeo dela ao colo do artista a cantar.

3 fotos

Depois, conduz-nos ao seu quarto. Do lado esquerdo da cama, tem um baú, que serve de mesinha de cabeceira, e que tem uma carteira de padrão tigresa e um perfume da Shakira. Na parede em frente à cama, está afixado um relógio com cara de joaninha, com os olhos a oscilar ao ritmo dos segundos, que fazem lembrar uma das personagens do livro infantil Alice no País das Maravilhas. Por detrás de umas cortinas cor-de-rosa com borboletas de plástico penduradas, vê-se uma fotografia, de Cláudia ao colo do Cristiano Ronaldo, num acontecimento proporcionado pela associação Terra dos Sonhos. Desse encontro, Cristina lembra a “casmurrice” de Luís Filipe Scolari, que também esteve presente e tentou apressar o momento.

Cristina pensou: "Não vou apanhar amor para ela morrer amanhã". Como se o amor fosse contagioso. Deixou a racionalidade no consultório, de onde saiu a correr, ignorando as explicações adicionais que médico e enfermeiras lhe queriam dar.

Durante as férias de verão, Cláudia foi ao cinema ver um filme que a marcou: “A Culpa é das Estrelas.” Conta de forma simples, com palavras cuidadas, o enredo do filme. A pele engelhada, como de um idoso, acentua-lhe as expressões faciais. Dá para perceber quando o sorriso é sincero ou forçado.

Qual é a moral da história? “Que devemos viver a vida ao máximo todos os dias”, responde. Pode parecer uma resposta banal, a mais prosaica possível, mas quem enquanto adolescente não pensa que é imortal?

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