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Qual o caminho do bem? David Brooks sabe

Há um novo livro do colunista do New York Times, ensaísta que enche os textos de palavras como “comunidade”, “amor” e “moral”. Um bom motivo para o conhecer melhor, ouvindo as opiniões de quem o lê.

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Na introdução de O Caminho para o Caráter (editado agora pela Marcador), David Brooks, professor, ensaísta e colunista do New York Times, recorre a uma distinção feita pelo rabino Joseph Soloveitchik em Lonely Man of Faith: a que defende existirem dois relatos da criação no Génesis, representando dois lados opostos da natureza humana, o Adão I e o Adão II. O Adão I quer carreira e currículo. O Adão II quer sacrificar-se pelos outros. O Adão I tem a ambição de conquistar o mundo. O Adão II olha para a vida como um dilema moral e quer melhorar como ser humano. “Enquanto Adão quer seguir em frente, Adão II aspira regressar às suas origens e saborear o calor de uma refeição em família.”

São duas formas distintas de encarar a vida e sabe-se que grande parte das sociedades está organizada de forma a fazer afirmar o primeiro e esquecer o segundo. Nos jornais e nas redes só os religiosos se atrevem a falar de assuntos nestes termos. De resto, o discurso recai em geral, de forma cínica, sobre “os poderes” e sobre quem está “lá em cima”. Tentar fazer uma pausa e fazer indagações sobre comportamentos éticos e morais não é assunto prioritário. O bom é falar dos outros, subentendendo o leitor que quem escreve está nos píncaros da verticalidade.

Ainda no arranque do livro, o narcisismo é apresentado em números por David Brooks. Entre 1948 e 1954, psicólogos questionaram mais de dez mil adolescentes sobre se se achavam pessoas muito importantes. 12% responderam que sim. Em 1989, as respostas à mesma pergunta foram outras. 80% dos rapazes e 77% das raparigas achavam-se o máximo. Outro dado: em 2007, 51% dos jovens disseram que um dos seus principais objetivos era ser famoso.

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“O Caminho para o Caráter”, de David Brooks (Marcador)

The Road to Character (o título original) é apenas a consagração em livro de uma opção que o autor, em tempos repórter e editor do Wall Street Journal e do The Weekly Standard, tomou há um tempo de abandonar as ocorrências da semana, sobre as quais gritam tantas vozes, para ocupar um território vago. O mesmo que, por exemplo, o filósofo francês André Comte-Sponville ocupou ao escrever o Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, editado em Portugal pela Presença em 1995, no qual o filósofo propõe um regresso laico, sem necessidade de recorrer a Deus, a virtudes como a polidez, a prudência, a temperança, a compaixão, a humildade, a boa-fé, o humor e o amor. Ambos, unidos pelo estoicismo e distanciados por fontes e influências, querem seguir “o caminho do bem”, para usar o título de uma canção de Tim Maia. Um trilho de aperfeiçoamento solitário, através de valores de alcance comunitário, para lá do ruído da indignação precoce. Brooks, filho de uma família judia, apesar de afirmar não ser necessária uma ligação transcendente e de sublinhar a importância dos prazeres para uma vida realizada, ocupa domínios de fronteira, recuperando a desusada palavra pecado, que nomeia, num sentido próprio, para além de óbvios fanatismos.

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O pecado é a origem

Esta passagem define bem o seu entendimento sobre o termo e o seu significado: “O pecado é parte indispensável da nossa estrutura mental porque nos recorda que a vida é uma questão moral”. Segundo o autor, por mais que tentemos reduzir tudo à química cerebral determinista e o comportamento ao “tipo de instinto de manada que se regista nas grandes bases de dados”, por mais que nos esforcemos em “substituir o pecado por termos amorais (como ‘engano’, ‘erro’ ou ‘fraqueza’)”, as partes mais importantes da vida são questões de responsabilidade individual e de escolha moral: “se devemos ser corajosos ou covardes, íntegros ou desonestos, compassivos ou insensíveis, fiéis ou desleais”.

Para ilustrar – e perseguir — esta convicção, recorre a biografias de pessoas que, aos seus olhos, se superaram na tentativa de se pensarem e de passarem a respirar para além do egoísmo. Do segundo ao décimo capítulo apresenta a história de brancos e negros, mulheres e homens, religiosos e pagãos. Gente que combateu fragilidades e fraquezas, não as eliminando, mas ganhando respeito próprio com a luta. Nomes como o presidente Eisenhower (a sua simplicidade construída, a sua prudência, o seu equilíbrio), a jornalista e escritora católica Dorothy Day (dizia aos colegas que deviam começar por trabalhar onde viviam, com as pequenas necessidades concretas que os rodeavam), o general George Marshall (com uma estrutura moral devedora de Homero e dos estoicos), o activista A. Philip Randolph (duro e polémico, sem resvalar para o ataque pessoal), Santo Agostinho (que trocou o culto da personalidade pelo autocontrolo), Samuel Johnson (alguém que concebia a literatura como “projecto moral”), Montaigne (um moderado que procurou uma aceitação auto-irónica). Figuras que aliavam “uma convicção extrema e um enorme ceticismo pessoal”.

Tal como a humildade, a coragem, a honestidade e a gratidão, o amor tem, para ele, um papel decisivo. Estar apaixonado é esquecer por um momento o ego, em benefício da entrega a alguém.

Todas estas personalidades passaram por um período doloroso, de melancolia e depressão. Como se costuma dizer, bateram no fundo – e foi isso que, nota Brooks, as fez repensarem as suas prioridades. Apesar de se demorar aqui e ali elogios excessivos, destemperados, a quem se entregou a fervores espirituais e violentos ascetismos, escreve: “Não me refiro a um sentido estritamente religioso. Refiro-me a considerarmos a dor como parte de uma narrativa moral e tentarmos redimir algo mau tornando-o em algo sagrado, num ato de serviço sacrificial que nos coloque em fraternidade perante a comunidade em geral e os requisitos morais eternos”.

Tal como a humildade, a coragem, a honestidade e a gratidão, o amor tem, para ele, um papel decisivo. Estar apaixonado é esquecer por um momento o ego, em benefício da entrega a alguém. Um dos paradigmas a que recorre é a relação entre a escritora George Eliot e George Lewes. Além de elevar o sentimento, privilegia a acção comunitária circunscrita e lenta. Eliot é apresentada como alguém que, como autora e pessoa, desconfiava de declarações amorosas à humanidade, preferindo a pessoa que tinha à frente.

Leitores em Portugal

Estruturalmente um conservador, na linha de um Edmund Burke, confessa-se devedor da cultura grega clássica. O passado e o conhecimento que dele se herda representam a fonte decisiva para perceber o mundo. O advogado e docente universitário Pedro Lomba, que segue há vários anos os seus textos, caracteriza-o assim: “O Brooks é um burkeano e é também um discípulo do Niebuhr. Aliás, há uma coluna em que ele recomenda vários livros para estudantes universitários e está lá o Niebuhr, como está o Tocqueville”. No entender de Lomba, integra-se numa tradição americana de defesa da liberdade numa sociedade travejada por vínculos sociais e comunitários. “Depois, como outros, ele descobre os avanços da economia behaviourista, os estudos sobre o comportamento humano, as neurociências, e tenta ligar umas coisas às outras. Por exemplo, não é um pessimista antropológico, que é um traço comum de um conservador”. A ênfase que coloca na moral ou na virtude representa, para Pedro Lomba, “a dimensão comunitarista do conservadorismo dele”.

Joaquim Bastos e Silva, engenheiro civil e comentador político (na RTP Açores), é um leitor assíduo e regular da opinião do New York Times desde o fim dos anos 90. Começou a acompanhar Brooks em setembro de 2003, quando este iniciou a sua coluna bi-semanal, substituindo o (também) conservador William Safire. “Pareceu-me, desde o início, revelar um pensamento conservador (‘moderate conservative’ como se intitula) que defende uma sociedade dinâmica na economia e na tecnologia mas equilibrada por uma componente ética e de coesão cultural”.

Um dos motivos pelos quais Bastos e Silva admira David Brooks é o facto de não excluir do seu pensamento a dimensão social. Lembra textos como “The Age of Reaction”, publicado a 27 de setembro de 2016, e “Obama’s Christian Realism”, de 15 de dezembro, de 2009, sobre o discurso de Oslo na cerimónia do Prémio Nobel da Paz e os muitos artigos sobre a desigualdade que trouxe para a agenda conservadora. Como, por exemplo, “The Wrong Inequality”, publicado a 31 de outubro de 2011. Um artigo que marcou Pedro Lomba foi um texto de 2007 (9 de Outubro), intitulado “The Odyssey Years”, coluna sobre uma nova etapa na vida de uma pessoa: “Os anos da odisseia, de adiamento, indecisão e deambulação”. E sobre o significado político dessa realidade.

david brooks

David Brooks

O professor universitário e colunista João Pereira Coutinho conta que se aproximou de David Brooks há uns anos, com Bobos in Paradise, livro sobre uma nova classe social que ele via emergir nos Estados Unidos: os “bourgeois bohemians”, filhos da contra-cultura dos sixties que chegavam ao novo milénio e se viam a ocupar os cargos da elites que antes contestavam. Pereira Coutinho comenta: “Esta ironia era resolvida pelos ‘bobos’ de forma simbólica: sim, eles podiam dirigir empresas, mas recusavam-se a usar gravata e iam de ténis para o escritório”. Para o colunista da Folha de São Paulo, Brooks era genial nas observações, que se estendiam à vida doméstica, aos hábitos de consumo, às preocupações ambientais, etc. “Lembro-me de ter escrito sobre ele no Independente e creio que fui o primeiro em Portugal”. A viragem de Brooks para temas éticos não o espanta: já o conheceu na fase de transição em que abandonava o comentário político mas também porque o próprio, em entrevistas, falava abundantemente das questões de carácter – ou, se preferirmos, das questões sobre a natureza humana que, segundo Coutinho, “são as únicas que importam”.

Brooks está numa posição desconfortável entre conservadores radicais e liberais com alergia a tudo o que cheire a moralismo (o curso que leccionou em Yale sobre humildade foi considerado extremamente pretensioso por Matt Taibbi, na Rolling Stone). É contra a pena de morte e a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Bastos e Silva, que seguiu esta posição, opina: “No caso do casamento homossexual, a posição conservadora que defendeu, já em 2003, é paradoxal e foi a de ‘we should insist on gay marriage’, no texto ‘The Power of Marriage’, e publicado 22 de novembro de 2003, permitindo a todos os casais o acesso à ‘fidelidade matrimonial’ e à relação de amor comprometida e duradoura”.

Quanto vale um dilema

Não se pode acusar Brooks de cinismo, temperamento habitual em que ocupa um palanque da análise. Em contraponto à cultura do impulso, revela a importância do dilema moral interior como ponto de partida para um aperfeiçoamento em direcção à comunidade. Joaquim Bastos e Silva acha importante que haja quem escreva a partir de uma perspectiva moral. “Mais do que escrever sobre moral, nesta atmosfera de relativismo que afecta a nossa sociedade, em que os julgamentos individuais são, na maior parte dos casos, baseados nos estados de alma em cada momento, em que se verifica uma erosão dos quadros morais partilhados a par do crescimento do individualismo, em que as pessoas não se sentem envolvidas numa paisagem moral que as transcende”. As crónicas “morais” — “moral revival is what this country actually needs” – que tem escrito são, na sua maioria, muito interessantes para refletir sobre a vida e os valores da sociedade, principalmente a justiça. A maior parte delas aborda os princípios da filosofia política que devem governar a nossa sociedade na tradição moderada (Hamiltonian tradition in “A Moderate Manifesto”, 3 de março de 2009)”.

“O Brooks não é, de facto, um cínico. E é um defensor de uma das melhores tradições liberais: o melhorismo”, diz Pedro Lomba. A ideia de que qualquer ser pode melhorar a sua condição, através da liberdade, da economia, da liberdade de expressão.

Será importante recuperar a moral para a conversa pública ou o movimento pode descambar em homílias involuntárias? Perante a interrogação, Pedro Lomba dá esta resposta: “Foi preciso que viessem o politicamente correcto do século XX e as muitas variantes do relativismo ético para o ‘moralismo’ e a ‘moral’ ganharem má fama. O século XVI, XVII e XVIII estão cheios de ‘moralismo’ e de autores moralistas, isto é, de autores que acreditam numa psicologia e numa ética inerente aos fenómenos políticos”, uma forma de distinguir e separar. Dá o exemplo de Montesquieu. Nesse sentido, considera, não é surpreendente este novo interesse pelo discurso das virtudes aristotélicas. “A nossa cultura é que se tornou inimiga da distinção”, alega. E acrescenta: “O Brooks não é, de facto, um cínico. E é um defensor de uma das melhores tradições liberais: o melhorismo”. A ideia de que qualquer ser pode melhorar a sua condição, através da liberdade, da economia, da liberdade de expressão.

Sobre os livros: Bastos e Silva leu O Animal Social (editado em 2012 pela Dom Quixote), em que o autor, narrando a história de um casal, persegue o objetivo de destacar a importância do inconsciente — criativo — nas opções e conquistas de cada um, recusando a pulsão para racionalizar a partir das ocorrências biográficas. (O livro foi acompanhado de uma conferência TED na qual se pode encontrar, além de uma tese feita de estudo em vários domínios científicos e intelectuais e uma alusão às teses de António Damásio sobre razão e emoção, o sentido de humor, culturalmente incorreto, de David Brooks).

animal social

“O Animal Social”, de David Brooks (Dom Quixote)

Além disso, já se demorou em O Caminho para o Caráter. Considera serem livros que revelam grande humanidade. Fazem refletir, de novo, na condição humana e “os valores que nos devem guiar na vida, num estilo cativante e culto, bem distinto da corrente do facebook”. Pedro Lomba leu todos os livros dele, à exceção do último, agora editado pela Marcador, e que merece mais do que a decisão, erradíssima, de ser remetido para a secção de livros de auto-ajuda. Ele pensa o homem mas também o mundo, cruzando todo o tipo de referências, introduzidas de uma forma natural, orgânica. “A sua preocupação com a construção do caráter vem de Reinhold Niebuhr e de Max Weber, mas sobretudo da constatação de que as sociedades americana e europeia perderam a as suas forças, estão desorientadas, enfraquecidas”. David Brooks, consciente da sua contingência, assertivo, mas desconfiando de si próprio, tenta oferecer uma bússola.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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