A primeira vez que Graziela Figueiredo pôs os pés em Porto Brandão foi aos sete anos. Vivia em Sacavém e, por ter ficado órfã de pai, a mãe entregou-a aos cuidados da Obra Social do Porto Brandão, fundada naquela aldeia piscatória do concelho de Almada pela neta do rei D. Miguel, Maria Adelaide de Bragança. Nessa altura, nos idos de 1940, a ponte sobre o Tejo era uma miragem e o rio atravessava-se como sempre: de barco. “Eu nunca tinha ido a Belém. Lembro-me de chegar lá e perguntar ‘foi aqui que Jesus nasceu?'”.

Jesus não nasceu em Belém, mas Deus nasceu em Porto Brandão. Graziela ainda não o sabia quando desceu do barco na praia da aldeia, mas o Tejo ia ser omnipresente na sua vida. Nascera ali um rapaz, Carlos Alberto, por quem Graziela se enamorou. Ele e a família sempre tinham usado o rio como sustento, e isso não mudou. Carlos Alberto pilotou barcos entre as duas margens, conduziu rebocadores, reparou navios. E ainda foi do Tejo que partiu para a guerra em Angola, onde ficou conhecido como o “Deus de Cabinda”…

2016, Joao Pedro Pincha, ponte 25 de Abril, Lisboa, Rio Tejo, porto brandão,

O movimento que estas águas já viram…

Quando Carlos Alberto Figueiredo era muito miúdo, houve um ciclone em Porto Brandão. Ou, pelo menos, foi assim que aquele acontecimento extraordinário, que trouxe as vagas do Tejo até meio da aldeia, ficou registado na memória coletiva. “O meu avô tinha uma fragata grande que ficou destruída”, conta. Mas parar não era opção. Na Outra Banda, centenas de pessoas dependiam da venda de produtos na capital. “Arranjou um bote e levava as hortaliças e os barris de vinho para Belém. Depois eram levados para a Ajuda.”

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Muito antes de ele nascer, e muito antes de se cruzar com Graziela nos bancos da escola, já o avô e o pai de Carlos Alberto estavam ligados ao rio, no transporte de mercadorias e pessoas. E antes deles, milhares de outros. Antes de a Ponte 25 de Abril ser sonhada, desenhada e construída, o Tejo era uma via rápida em permanente engarrafamento. O rio é navegado desde tempos imemoriais e, até meados dos anos 70, ainda por lá se encontravam centenas de embarcações aperfeiçoadas através dos séculos: os varinos, os cangueiros, as fragatas, os botes, as faluas, as canoas, os catraios, os cacilheiros.

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Se não havia ponte, a única maneira de atravessar com viaturas era de ferry. Cá está ele, com a primeira torre da futura ponte já construída, ao fundo (Fotografia da Casa Garcia Nunes/ Arquivo Municipal de Lisboa)

O barco é uma passagem para a outra margem

Em Porto Brandão, um conjunto de barqueiros decidiu unir-se em meados da década de 1920 para assegurar as travessias regulares entre Lisboa e a outra margem. Formaram a Cooperativa de Catraeiros do Porto de Lisboa, uma sociedade que tinha pequenas lanchas à vela e a motor que andavam sempre de lá para cá. O pai de Carlos Alberto, Saul, era mestre de lancha e, quando a cooperativa construiu um barco maior e mais robusto, o “1 de Abril”, tornou-se a primeira pessoa a fazer a carreira regular entre Belém e Porto Brandão.

Por essa altura, a concorrência no Tejo era grande. Havia três empresas a assegurar ligações entre a Praça do Comércio e Cacilhas, outra que navegava até à Trafaria, uma quinta que ia até Alcochete e ainda a companhia de caminhos-de-ferro, que ligava Lisboa ao Barreiro.

2016, Joao Pedro Pincha, ponte 25 de Abril, Lisboa, Rio Tejo, porto brandão,

O ciclone de Porto Brandão levou a água do Tejo até à capela. Hoje, desse local até à praia existem inúmeros edifícios e restaurantes.

Graziela chegou a Porto Brandão a bordo do “1 de Abril” com sete anos. Pouco tempo depois, conheceu Carlos Alberto. “Com nove anos já namorava o meu marido.” Aos 15, era idade para ir ganhar a vida. Ela foi para a capital trabalhar como criada em duas casas, ele foi correr os ancoradouros de Lisboa para ganhar uns trocos. “Andava a apanhar os cabos das muralhas dos navios de Alcântara, Rocha, Jardim do Tabaco, Matinha”, conta Carlos Alberto, que viu os barcos do Tejo mudar a grande velocidade. No tempo do avô dele, era “tudo à vela, não havia cá motores”, embora as grandes empresas já tivessem vapores. O pai conduziu lanchas a motor, que em menos de dez minutos cruzavam as duas margens. “Com mau tempo ou com bom tempo, aquelas lanchas navegavam sempre, era um regalo.” E ele, depois de aprender o ofício de torneiro mecânico, foi pilotar os ferry-boats que asseguravam a passagem de viaturas de um lado ao outro.

“Aqui passavam centenas de pessoas por dia. Isto às cinco e meia da manhã já estava carregado de camiões para irem para Lisboa. Chegou a haver cinco autocarros aqui a fazer carreira.”

2016, Joao Pedro Pincha, ponte 25 de Abril, Lisboa, Rio Tejo, porto brandão,

O modelo do primeiro vapor que fez a ligação entre Lisboa e Almada está exposto no Museu Naval de Almada

Adeus ao Tejo

Outros tempos. “Esquecemo-nos completamente do Tejo enquanto via de comunicação”, lamenta Fernando Carvalho Rodrigues, cientista e professor universitário que é igualmente um entusiasta das embarcações tradicionais do rio que banha Lisboa. O mesmo se sente em Porto Brandão e em Cacilhas, onde a indústria naval teve um papel de destaque ao longo de décadas.

Armando, dono de um pequeno café em Porto Brandão, é mais novo do que Carlos Alberto e, por isso, já não se lembra de ver muitos barcos de madeira por ali. Mas lembra-se bem dos 13 anos que viveu até a ponte ser inaugurada, em 1966. “Ia quase todos os dias a Lisboa, que a minha mãe era vendedora ambulante. Íamos ao Mercado da Ribeira no primeiro barco, às 5h30”, recorda. Mal a ponte abriu, tudo mudou. “Passei a ir de carro, era mais rápido. Mesmo para ir às compras, punha-me mais rapidamente em Alfragide do que em Palmela.”

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Encaixado num vale e relativamente longe de outras localidades, Porto Brandão esteve sempre muito dependente da relação com o rio. Segundo os dados de Fernando Carvalho Rodrigues, a meio do século XIX havia mais de dois mil barcos — desde os mais pequenos botes às maiores fragatas, que podiam transportar muitas toneladas de carga — em Lisboa e Almada. Foi nesses anos que entrou em funcionamento o primeiro barco a vapor do rio Tejo, que originou uma pequena revolução no transporte de passageiros e mercadorias. Ainda assim, e apesar de terem aparecido inúmeras empresas a operar barcos a vapor e depois a motor, os barcos mais tradicionais resistiram sempre.

Um século depois, a Ponte 25 de Abril mudou radicalmente esse panorama. Em Porto Brandão e Cacilhas, de onde saíam ferry-boats carregados de viaturas em direção a Lisboa, o movimento diminuiu ao ponto de esse serviço ser encerrado. Duas empresas de navegação ficaram praticamente na falência. Em 1975, o Governo decidiu nacionalizar as travessias do rio e criou a Transtejo, empresa que ainda hoje existe e assegura a ligação entre margens. Mas o cenário nunca mais foi o mesmo de antigamente. Porto Brandão é hoje ponto de passagem entre Belém e a Trafaria. O último barco sai daqui em direção a Lisboa às 21h40, quando antes saía à meia-noite. Já só há uma carreira de autocarros — e é dos pequenos.

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O “Deus de Cabinda” que viu crescer a ponte

Um dia, Carlos Alberto estava à beira da estrada a olhar para a enorme fila que se amontoava para entrar no ferry de Porto Brandão, quando reparou que um automobilista tinha deixado cair a carteira. Foi apanhá-la e descobriu que era de um capitão do Exército. O militar ficou tão agradecido que, juntamente com uma moeda de vinte escudos, veio a promessa de que Carlos Alberto ia safar-se da tropa. Só que ele foi à inspeção numa hora em que o capitão não estava lá e não se livrou de ir para Cabinda, em Angola.

Diz que foram quase umas férias e que era conhecido como o “Deus de Cabinda”, porque as suas habilidades como torneiro mecânico faziam dele um dos homens mais requisitados por militares e civis para resolver problemas que outros não resolviam. Esteve lá quatro anos e, quando voltou, a ponte já estava quase pronta. Tinha ele 26 anos. Porto Brandão era bancada com vista privilegiada para as obras, que decorriam não muito longe dali. “Daqui via-se a crescer a ponte. As peças passavam aqui todas à frente”, conta Carlos Alberto, que assistiu da margem aos testes de esforço à nova estrutura. “Encheram a ponte de uma ponta à outra com camiões-cisterna carregados. Abateu seis metros, notava-se bem o arco”, recorda.

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Há inúmeras associações navais no estuário do Tejo que se dedicam à preservação e divulgação das embarcações tradicionais (Fotografia: Horta Pereira/ Marinha Portuguesa)

“Isto era tão diferente”, suspira Graziela. “Isto era o paraíso, agora é que não é nada”, chega a dizer. Embora não a demonize, até porque também a usou centenas ou milhares de vezes, ela lamenta que a abertura da ponte tenha significado uma mudança tão profunda em Porto Brandão, na Outra Banda e no sul do país. Porque as filas de trânsito que iam até ao Monte da Caparica desapareceram, e com o tempo foram desaparecendo outras coisas: as mercearias, os cafés, as crianças, as pessoas…

A ponte abriu e o país mudou. Mas Carlos Alberto e Graziela não, continuaram a ter no Tejo o sustento de sempre. Quando deixou de pilotar ferries, ele foi para a Lisnave conduzir rebocadores. Andou pela barra do rio, pelas barras de outros portos portugueses, pelo estrangeiro. Mas voltava sempre a Porto Brandão. “Eu sabia quando ele estava a chegar a casa pelo barulho dos motores do rebocador, pum pum”, imita Graziela. “Pode haver muitas terras, mas como esta não há”, acrescenta Carlos Alberto, de olhar perdido no rio de que ajuda a contar a História.