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NICOLAS ASFOURi/AFP/Getty Images

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Quando eles mudaram a Presidência

Eanes, Soares, Sampaio e Cavaco foram Presidentes muito diferentes com os mesmos poderes. Afinal até onde cada um foi mais longe no exercício do cargo?

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Mário Soares foi o primeiro a querer ser o “Presidente de todos nós” e abriu em Belém o espaço político para influenciar a política do Executivo. Jorge Sampaio foi mais longe no uso dos poderes constitucionais. Cavaco Silva tentou inovar ao promover um pacto que não aconteceu. Ramalho Eanes deu posse a governos de iniciativa presidencial. Afinal os poderes do Presidente mudaram muito ou foram as ações dos protagonistas que mudaram a perceção que os portugueses têm da Presidência da República?

Ser chefe de Estado em Portugal não é como ser a Rainha de Inglaterra. Os poderes existem mesmo (embora não sejam ilimitados). E nem todos os Presidentes fizeram o mesmo uso deles. Uns foram mais criativos, outros tentaram originalidades e falharam, outros viveram períodos de crise que os levaram a pensar noutras soluções. Todos eles mudaram um pouco a Presidência nas mais diferentes áreas: política interna, política externa e de defesa, formação de Governo, uso da ‘bomba atómica’. “Os poderes do Presidente da República não mudaram muito desde 1976, apesar da alteração de 1982. Há no entanto a ideia que têm sido os Presidentes a definir o que é a Presidência”, diz o historiador Rui Ramos. E o que fizeram para a mudar?

Faz-se política em Belém para influenciar São Bento

Os livros, que é como quem diz, a Constituição, separam bem as competência de um Governo das do Presidente da República. Este tem nas mãos a arma da pressão. E cada um usou-a à semelhança da sua personalidade.

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Belém como centro político forte foi, talvez, a marca mais importante dos mandatos de Mário Soares enquanto Presidente. Soares inaugurou as presidências abertas que tanto incomodaram o Governo de Cavaco Silva, porque funcionavam, sobretudo no terceiro mandato de Cavaco Silva, como contrapoder. Mostravam o que ainda faltava fazer, contrariando o discurso otimista e de modernização do primeiro-ministro, ora falando de pobreza, ora de ambiente, por exemplo.

A maneira de ser Presidente de Soares mudou depois da reeleição. Se no primeiro mandato, o Presidente tinha uma atitude mais de “congregação e consenso” – sem desprimor das pequenas picardias e pressão política – o segundo mandato mudou os contornos e foi mais político. Tanto assim foi que Cavaco Silva apoiou a reeleição de Soares. Só não teria noção do que estaria para vir. E o que lhe seguiu foram anos de guerrilha política com trincheiras em Belém e São Bento. Em Belém só? Não. Sobretudo na rua. Soares queria mostrar que era o Presidente do povo e que era quase omnipresente.

Soares “define a Presidência na conceção de um Presidente que se dirige diretamente à população e não como o general Eanes que falava no 5 de outubro e no 25 de Abril – e eram discursos sempre esperados com muita expectativa -, mas sim de um Presidente que andava na rua, estava em todo o lado, fazia parte de tudo”, conta o historiador. E nesta mudança de atitude, há alguns momentos emblemáticos.

  • A presidência aberta de Lisboa – Durante quinze dias, Soares mostrou tudo o que de mau havia para mostrar nos concelhos da Área Metropolitana de Lisboa, mas só aqueles sem liderança PSD. Era o país que não tinha desaparecido apesar dos êxitos dos dinheiros europeus e que sofria em pleno regresso da crise – tudo bem perto do Palácio de Belém. Não era uma realidade distante, eram os problemas do distrito da capital. A descrição da Fundação Mário Soares para esses quinze dias não poderia ser mais clara sobre as intenções de Soares e qual a imagem do país de Cavaco que queria passar: “O Presidente conviveu diretamente com a dura realidade das grandes zonas urbanas: as barracas; as dificuldades de habitação e transportes; as carências de saneamento básico; os atentados ao ambiente, ao património e à qualidade de vida; a pobreza ao lado da ostentação; a droga; a violência, o racismo; a solidão; o desenraizamento e o abandono dos idosos”, lê-se. A comunicação social estava em expansão, com o aparecimento das televisões privadas, e Soares aproveitou-o. Num desses dias quis mostrar as dificuldades de quem morava na zona de Vila Franca e Loures e das filas intermináveis que essas pessoas tinham de enfrentar todos os dias. O Presidente decide fazer o trajeto num autocarro cheio de jornalistas e sem a ajuda dos batedores. A ideia era mostrar a realidade tal como ela acontecia e tal como era chateava o suficiente o primeiro-ministro. E foi nessa viagem que Soares desce do salto da Presidência e se transforma num português como os outros.

A frase “ó Senhor guarda, desapareça!” fica na história dos insólitos da Presidência. Mas esta presidência aberta ficou na lembrança de Belém por outros motivos. Soares influenciou os Conselhos de Ministros de Cavaco Silva – o que o Presidente via na rua entrava pela agenda de São Bento adentro. E o próprio primeiro-ministro foi obrigado a ter um encontro semanal com o chefe de Estado em Setúbal, na altura uma cidade ainda com mais dificuldades.

  • Presidência como “sistema de som” dos críticos de Governo – Não eram apenas as cirúrgicas fugas de informação para jornais – isso já de si, seria caso bastante para pôr Belém e São Bento de costas voltadas. Nem tão pouco os comunicados ou as declarações à imprensa a marcar posição – e Soares fazia-o com muita frequência, além de ter um núcleo político em Belém que faziam passar o que queria a jornais. Era mais do que isso. Eram as audiências constantes aos críticos do Governo de Cavaco Silva.”A Presidência era o único espaço onde quem tinha coisas contra o Governo, tinha espaço para se dirigir”, diz Rui Ramos.

A forma de Mário Soares pressionar o Executivo a fazer ou recuar em algumas políticas que não eram do seu agrado passava assim por vários instrumentos. Mas o de fazer eco dos críticos – e às vezes uma receção aos críticos é pedra no caminho de um governo quanto baste -, foi uma ferramenta a que Cavaco Silva recorreu mais tarde. E neste ponto, mudou a perceção da Presidência, usando as armas que tinham sido utilizadas contra si por Soares. E fê-lo, por exemplo, no caso do aeroporto da OTA.

Aeroporto da Ota. Um PR que obriga Governo a mudar de decisão

O candidato Aníbal já tinha avisado o que poderia fazer o Presidente Cavaco. Preto no branco era assim: pedir mais estudos custo/benefício porque não estava convencido da vantagem do projeto do aeroporto da Ota. Nas entrelinhas, o que dizia era que iria tentar de tudo para que o Governo de José Sócrates recuasse no projeto de 3,5 mil milhões de euros do aeroporto da Ota. Dito e feito.

Em 2005, Cavaco Silva estava na estrada para a sua candidatura a Belém e fez sair um livro-entrevista onde defendia: “Investimentos como os do novo aeroporto da Ota e do TGV, mesmo não existindo restrições orçamentais, só devem ser realizados se a totalidade dos benefícios sociais, ao longo da vida dos projetos, for maior do que os respetivos custos sociais”. Aviso o suficiente.

Cavaco foi eleito e dois anos depois tinha os críticos, leia-se sobretudo o PSD, a bater-lhe à porta do Palácio cor-de-rosa. Marques Mendes, então líder dos sociais-democratas, foi ouvido, mas não foi o único. Cavaco aceitou um estudo da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) que sugeria Alcochete como a melhor localização. A pressão pública fez-se sentir e o Governo acabou por acordar com o Presidente da República que a decisão seria do Executivo, mas com consulta ao chefe de Estado. Em 2008, José Sócrates anunciava que Alcochete era a possibilidade “globalmente mais favorável” para a construção do novo aeroporto.

No plano legislativo ou de grandes opções de política, Cavaco teve, nos dez anos de Presidência, uma ação que passava também pela pequena alteração, que acabava por mudar muito. Cavaco Silva tinha uma equipa forte de juristas que trocavam informação constante sobre legislação com os governos. Sobretudo com o de Passos Coelho onde assumiu, em muitos dossiês o papel de quase “co-legislador”.

No campo da influência de políticas, há frases que ficam para a história e pelo menos na cabeça de Durão Barroso houve uma que ecoou durante anos. “Há vida além do défice”. Sampaio diria mais tarde que não foi isso que disse, mas a frase foi citada vezes sem conta e serviria para colocar pressão no Governo de coligação PSD/CDS. Em resumo, “para um Presidente que disse que tinha uma visão parlamentarista, isto não o era”, sintetiza Rui Ramos.

Política externa e de defesa. Mandas tu, mas mando eu

O mundo vivia dias conturbados. Os Estados Unidos da América tinham sido atingidos no coração, com os ataques da Al-Qaeda às Torres Gémeas e ao Pentágono, e juravam uma demanda contra o terrorismo. E Portugal entra no centro da crise ao ser o anfitrião – com muita motivação à mistura – da chamada Cimeira da Guerra, nas Lajes, nos Açores, que ditou a intervenção militar externa no Iraque, em 2003.

Durão Barroso, então primeiro-ministro, já tinha mostrado vontade de se colocar ao lado dos parceiros na luta contra o terrorismo. Tinha sido recebido em Washington, na Sala Oval, com George W. Bush no final de 2002 e acertaram tudo para que no meio do Atlântico, Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, José Maria Aznar, primeiro-ministro espanhol, George W. Bush e Durão Barroso protagonizassem a decisão da invasão do Iraque, como a argumentação de que o país de Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça. Seria apenas o início selado do envolvimento português.

(L-R) Britain's Prime Minister Tony Blair, Spanish Prime Minister Jose Maria Aznar, US President George W. Bush and Portuguese Prime Minister Jose Manuel Durao Barosso listen at their joint press conference following meetings to discuss prospects for resolving the Iraq situation peacefully with diplomacy in final pursuit of a United Nations resolution 16 March, 2003, at Lajes Field on the island of Terceira in the Azores, Portugal. The four leaders, all facing anti-war opposition of varying degrees at home are the sponsors of a UN resolution that would set the stage for war on Iraq. (Photo by Luke FRAZZA/AFP/Getty Images)

Tony Blair, Jose Maria Aznar, George W. Bush e Durão Barroso em março de 2003, durante a Cimeira das Lajes

Depois da Cimeira, começou o braço de ferro entre o Executivo e o Presidente da República, à época Jorge Sampaio, sobre quais os moldes da intervenção portuguesa. Sampaio recusava uma intervenção militar sem que fosse enquadrada nas Nações Unidas. E fê-lo saber num discurso duro sobre o que deveria ser a política externa portuguesa, mas também – e sobretudo – sobre o que deveria ter sido a posição sobre o Iraque. Sampaio estava em choque com Barroso.

"Para Portugal, é imperativo não se alhear deste processo de múltiplas recomposições da Ordem Internacional, que abarcará tanto a ONU como a União Europeia e a OTAN, pois em qualquer delas tem interesses próprios a defender. Se não o fizermos, outros o farão por nós – e não decerto em nosso benefício. Os portugueses conhecem a minha posição sobre as condições em que foi lançada a ofensiva militar contra o Iraque. Findo o conflito, derrubada uma odiosa ditadura, esperemos que, a partir de agora, se procure repor e reforçar o papel das Nações Unidas, na consciência de que nunca como hoje foi tão necessária uma regulação das relações internacionais, assente no respeito do direito, que recuse posições hegemónicas e decisões unilaterais"
Jorge Sampaio, 25 de Abril de 2003

O braço de ferro continuou durante mais alguns dias. Sampaio não aceitava a participação de militares portugueses numa iniciativa que não fosse enquadrada na ONU. Barroso decidiu assim enviar um contingente da GNR. Apesar de serem militares, a GNR é tutelada pelo Governo, não dependendo assim do Comandante Supremo das Forças Armadas, o Presidente. Perante a iniciativa do Governo, Sampaio acabou por recuar deixando a decisão e a responsabilidade para Durão Barroso. E o primeiro-ministro decidiu enviar um contingente de 120 militares da GNR e anunciou-o num debate mensal. No mesmo debate, Barroso admitia a possibilidade de enviar mais tarde uma força militar, mas apenas enquadrado numa força de paz das Nações Unidas. Meia vitória para cada um.

Sampaio registou a posição e recuou: “O Governo decide, falou comigo, consultou-me, não tenho que fazer mais comentário nenhum. E acho que é bom, penso eu, fazermos um grande esforço para desdramatizarmos uma questão que é difícil, mas em que é possível encontrarmos caminhos úteis para Portugal, porque temos, com certeza, questões, ao mesmo tempo, igualmente importantes, igualmente decisivas, como por exemplo, o problema do nosso crescimento económico e, por isso, deixemos espaço a uma coisa e outra”, disse.

Era reconhecido aos Presidentes uma palavra decisiva nas Forças Armadas. Sobretudo depois de Mário Soares ter pedido, em 1991, pareceres aos constitucionalistas Vital Moreira e Gomes Canotilho sobre os poderes presidenciais nas áreas de defesa e de política externa. Os dois constitucionalistas defendiam que no âmbito constitucional, assumem “especial profundidade os deveres governamentais de informação e consulta, bem como de consideração pelas opiniões do Presidente da República, pois nada do que interessa às relações externas – e à defesa – lhe pode ser alheio”. E mais, que no que tem a ver com política externa, devem pautar-se por “um estrito respeito do princípio da lealdade institucional e um espírito de cooperação e concertação institucional”.

Se Soares tinha pedido o parecer, Sampaio usou-o. Não só no caso do Iraque. A Presidência do segundo socialista chefe de Estado nos tempos democráticos ficaria marcada por outro acontecimento histórico no que à política externa diz respeito: a independência de Timor.

Timor, um exemplo de esforços conjuntos

Foram dez anos históricos para o Presidente Jorge Sampaio. Não só tinha assistido à transferência de Macau para a China, como quiseram as voltas no tempo que fosse ele, o Presidente, a ver Timor tornar-se independente da Indonésia, apesar de Portugal ser considerada potência administrante.

Cá está, a política externa ao Presidente pertence – pelo menos a este nível – e Sampaio não teve problemas em assumir que Timor era uma ambição do mandato: “Espero assistir, ainda no meu mandato, ao nascimento da nova nação de Timor. Não é uma utopia minha mas uma ambição”, disse em entrevista ao Expresso pouco tempo depois de tomar posse como Presidente da República.

“Espero assistir, ainda no meu mandato, ao nascimento da nova nação de Timor. Não é uma utopia minha mas uma ambição”

INDEPENDENCE, Jorge Sampaio durante à chegada para as cerimónias da independência de timor

Jorge Sampaio durante à chegada para as cerimónias da independência de timor, em 2002

E foi por essa ambição que foi trabalhando diplomaticamente junto da ONU. Na retina fica a pressão que Sampaio fez numa entrevista à CNN onde defendeu a independência do país e que ficou marcada como uma das ações mais marcantes do Presidente. As negociações tripartidas Portugal/Indonésia/ONU levaram a Indonésia a ceder à realização do referendo de 1999 e à consequente independência do país.

Timor estava lá longe, mas Sampaio insistiu na proximidade do problema. Conta a biografia do Presidente no site da Presidência, que durante vários dias foi constituído um “gabinete de crise” para acompanhar os desenvolvimentos do referendo, com a presença do Presidente e muitas vezes do primeiro ministro.

"Sem modéstia e com orgulho sincero. (...) Tivemos um papel inestimável na garantia do exercício democrático do direito de auto-determinação e da independência de Timor-Leste (...) Exigiu da nossa parte uma grande determinação e firmeza, muito empenho político e diplomático e uma contribuição significativa."
Jorge Sampaio (2006) sobre a independência de Timor

Foi um dos momentos em que o papel do Presidente ofuscou a ação do Governo no mesmo assunto. Sampaio foi a cara de todo o processo e foi por isso que encerrou o mandato com uma visita a Timor, em 2006. “Se tivesse de escolher um facto positivo internacional marcante da última década não teria muitas hesitações em nomear Timor-Leste”, disse na altura. Portugal cumpriu-se na independência da “terra de milagres” e o chefe de Estado chamava os louros ao trabalho desenvolvido. “Sem modéstia e com orgulho sincero. (…) Tivemos um papel inestimável na garantia do exercício democrático do direito de auto-determinação e da independência de Timor-Leste (…) Exigiu da nossa parte uma grande determinação e firmeza, muito empenho político e diplomático e uma contribuição significativa.”

Influenciar a escolha de ministros? Já houve de tudo um pouco

Muito se falou de tradição depois das últimas eleições legislativas. Mas a tradição já não é o que era e quase nunca o foi por muito tempo. Já houve Presidentes a forçarem demissões de membros do Governo, a recusarem dar posse a outros, mesmo que tenha sido nos bastidores, a escolherem primeiros-ministros que não tinham ido a votos e até a dissolverem a Assembleia da República, às vezes quase tudo com o mesmo Governo. Dar posse a quem não ficou em primeiro lugar nas eleições, como fez Cavaco Silva com o Governo de António Costa, foi a solução depois de respeitar a (suposta) tradição. E neste campeonato, Jorge Sampaio foi aquele que foi mais longe… outra vez.

Durante os dois mandatos de Jorge Sampaio, surgiram várias histórias da influência do Presidente da República. Uma delas foi ainda com o Governo de António Guterres. Decorria o ano de 2000 e Sampaio estava em plena campanha para a recandidatura. O Governo passava por uma série de pequenas crises incluindo as suspeitas que recaíam sobre Armando Vara e Luís Patrão, por causa da Fundação para a Prevenção e Segurança. Os dois, criaram a Fundação, que se dedicava à promoção da Segurança Rodoviária, mas esta foi envolta em polémica por causa da gestão e do financiamento direto do Estado. A oposição pedia a cabeça dos dois homens, à época Armando Vara já era ministro da Juventude e Desporto, e estes acabam por sair. Não antes sem saírem cá para fora notícias de que a demissão foi forçada pelo Presidente da República.

Ficará para a história como uma das ingerências da Presidência num Executivo. Sampaio, durante uma reunião semanal com o primeiro-ministro, terá pressionado Guterres a demitir Vara e Patrão. Os dois saem do Executivo, mas a justificação oficial do gabinete de Guterres será sempre a de que a decisão foi interna, sem a interferência de Sampaio. Contudo, o Presidente não se tinha coibido de tecer comentários públicos sobre a situação do Governo. Primeiro numa entrevista à TSF deu o empurrão aos dois para fora de São Bento: “É preciso ter algum cuidado na feitura destas coisas e houve alguma ligeireza, embora não esteja em causa a honestidade das pessoas”. Não precisava dizer muito mais. Uma acusação de “ligeireza” saída de Belém era prova provada que Sampaio não podia mais esconder a falta de confiança. Mas o Presidente não se ficou por aqui e lançou um comunicado e quem quisesse via tudo nas entrelinhas: “As instituições públicas e privadas financiadas pelo Estado devem ser constituídas com procedimentos insuscetíveis de crítica em Estado de direito”.

Está escrito nos poderes do Presidente da República que este dá posse aos ministros escolhidos pelo primeiro-ministro e que lhe cabe assim a última palavra sobre o elenco governamental. E Sampaio fez o maior uso disso no episódio mais anti-tradição da história da formação de governos da democracia. Sampaio e Santana, quem mais?

Uma história do poder do Presidente em dois atos. Sampaio e Santana

Portugal já tinha conhecido governos de iniciativa presidencial, mas depois de estabilizada a democracia só conhecia chefes de Governo que tivessem ido a votos. Isso mudou com Jorge Sampaio. A história é conhecida de todos e foi relatada pelos próprios. Mas como mexeu com os poderes do Presidente? Por dois motivos: primeiro porque Sampaio foi o Presidente da República que optou por dar posse a um primeiro-ministro, que era o primeiro vice-presidente do partido que tinha vencido as eleições e nem estava no Parlamento; em segundo lugar porque esse mesmo Governo terminaria poucos meses depois com a dissolução da Assembleia da República decidida por quem? Pelo mesmo Chefe de Estado que lhe tinha dado a confiança política.

Vamos por partes. Durão Barroso foi convidado para presidir à Comissão Europeia e preparou Santana Lopes para o substituir. Santana era o primeiro vice-presidente do PSD, mas não estava na lista de deputados. À época era presidente da Câmara de Lisboa. Está em cima da mesa a primeira originalidade: a demissão de um primeiro-ministro não causaria eleições antecipadas, nem a substituição dentro do elenco governamental, com a subida do número dois, por exemplo. Essa foi uma das hipóteses faladas, com a substituição por Manuela Ferreira Leite, então ministra das Finanças.

Na tomada de posse, Sampaio fez logo o aviso ao primeiro-ministro que iria estar vigilante. E logo nesse dia, o novo primeiro-ministro começou a fraquejar. Santana Lopes sentiu-se mal e passou grandes trechos do discurso.

https://www.youtube.com/watch?v=ZYFZSK0fVIs

Foi o arranque falhado do ano escolar. Foram as notícias de dissonâncias entre os ministros das Finanças (Bagão Félix) e das Atividades Económicas (Álvaro Barreto) a propósito da descida de impostos, da sesta de Santana Lopes em S. Bento, do pagamento diferenciado das taxas moderadoras ou da polémica do barco do aborto com que aquele Governo teve que lidar. “Todas as quartas-feiras [véspera da audiência semanal do primeiro-ministro com o Presidente] havia notícias para fragilizar Santana”, contou ao Observador um dos membros daquele Governo (pode ler o nosso especial sobre os dez anos deste Governo, aqui).

Mas as histórias mais que precipitariam o fim antecipado de um Governo que nasceu torto acabaram por ser a polémica em torno das críticas de Gomes da Silva ao programa de Marcelo Rebelo de Sousa e a demissão de Henrique Chaves.

Menos de seis meses depois, Sampaio decide chamar Santana a Belém para lhe comunicar que o seu Governo tinha chegado ao fim, por via da dissolução da Assembleia da República. A decisão foi justificada com a existência de “uma grave crise de credibilidade do Governo” motivada por “uma série de episódios” e apontou também “sucessivos incidentes e declarações, contradições e descoordenações que contribuíram para o desprestígio do Governo e das instituições em geral”.

Para Rui Ramos, Sampaio acabou por ter uma “ideia da Presidência como instituição política”. E no caso da dissolução da Assembleia da República foi quando o Presidente “foi a jogo sem o dizer”. Isto porque, lembra o historiador, “soube-se mais tarde que Sampaio tinha pensado em demitir-se se Santana Lopes ganhasse as eleições de 2005”. Não ganhou. José Sócrates teria a primeira maioria absoluta do PS e a única até agora.

Em tempos, os governos já foram presidenciais

Foram três e não resultaram. A democracia ainda era frágil e o primeiro presidente eleito, Ramalho Eanes, teve um papel interventivo logo na formação de Governos. O primeiro Governo de iniciativa presidencial foi o de Nobre da Costa, logo em 1978. O programa do segundo Governo de Mário Soares (e segundo constitucional) não tinha passado no Parlamento e a decisão do Chefe de Estado foi a de enveredar por uma escolha sua.

Não foi o único. Durante um ano, Eanes seguiu a receita e nomearia ainda Carlos Mota Pinto e depois Maria de Lourdes Pintasilgo. Nenhum teve vida longa e ao fim de um ano, em 1979 já o país tinha ido a eleições legislativas que tinham resultado na vitória de Sá Carneiro.

Mas a iniciativa do Presidente da República não se ficaria por aqui. Eanes patrocinou, umas vez de forma mais visível outra de forma menos visível o PRD e com isso “cria ali uma realidade política e foi o grande partido parlamentar que apareceu” fora do quadro já conhecido, lembra Rui Ramos. Nenhum Presidente foi tão longe na constituição de governos. Mas a verdade é que todos eles tinham ligações a partidos. Soares e Sampaio, dois socialistas, e Cavaco Silva, do PSD. Todos juraram ser o Presidente de todos os portugueses, e todos foram criticados por fazerem eco das vontades dos partidos a que pertenciam.

A tentativa falhada de um consenso de regime

Uma das palavras que o atual Presidente da República mais repetiu ao longo dos últimos anos de mandato terá sido “consenso”. Disse-a tantas vezes que algum dia tentaria fazer um. É do conhecimento público, até porque o chefe de Estado não o escondeu, que desejou por mais do que uma vez um “bloco central” em algumas áreas. Mas o mais emblemático foi a tentativa de “compromisso de salvação nacional” em 2013, depois da guerra no Governo de Passos Coelho e de Paulo Portas.

A crise aconteceu em pleno programa de ajustamento, depois da demissão de Paulo Portas. No verão quente de 2013 Cavaco Silva jogou nos bastidores da política com conversas regulares com os intervenientes políticos, mas também com uma posição pública assumida.

"No contexto das restrições de financiamento que enfrentamos, a recente crise política mostrou, à vista de todos, que o País necessita urgentemente de um acordo de médio prazo entre os partidos que subscreveram o Memorando de Entendimento com a União Europeia e com o Fundo Monetário Internacional, PSD, PS e CDS.

É esse o caminho que deveremos percorrer em conjunto. Darei o meu firme apoio a esse acordo, que, na atual conjuntura de emergência, representa verdadeiramente um compromisso de salvação nacional. Repito: trata-se de um compromisso de salvação nacional"
Cavaco Silva, discurso a 10 de julho de 2013

Depois da demissão de Portas, Passos Coelho apresentou ao Presidente uma solução de Governo (que viria depois a concretizar-se) e que passava por uma reformulação profunda do Executivo, com mais peso para o CDS, incluindo a passagem de Paulo Portas a vice-primeiro-ministro. Cavacou ouviu, mas não aceitou de imediato. Antes tentou o tal “compromisso de salvação nacional”, que implicava que PSD, CDS e PS, na altura liderado por António José Seguro, chegassem a um acordo para a governação até ao final do programa de ajustamento. A moeda de troca seria a realização de eleições antecipadas em junho de 2014.

A tentativa de pacto de regime de Cavaco Silva, “é importante porque é um momento em que o Presidente propõe uma outra solução de governo. Um governo que ele acharia que deveria ser a base de entendimento”, diz Rui Ramos. Mais que não seja, acredita o historiador, “essa intervenção teve o efeito de disciplinar a maioria parlamentar”. Foi mais uma leitura diferente dos poderes do Presidente. Cavaco, interventivo, tentou jogar com os poderes que tinha para forçar uma solução de governo.

E a tentativa falhou.

https://www.youtube.com/watch?v=Y_QkDzpWvQs

Depois de reuniões com memorandos de intenções entre o Rato, o Caldas e a Lapa, a solução saiu gorada.

Três anos depois, Cavaco Silva tentaria o mesmo: depois das eleições de outubro de 2015, o Presidente não deu posse imediata a Passos Coelho e convidou-o a que conseguisse formar Governo estável com outras forças políticas, leia-se, PS. O resto da história já é bem conhecida. António Costa e Passos Coelho não chegaram a acordo, o Governo tomou posse e caiu logo de seguida e o Presidente que tentou o bloco central acabou por dar posse a um Executivo com apoio da esquerda.

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