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Que inveja, seus croatas

O mundo teve que encolher numa aldeia para encontrarmos Domegoj e Stipe, dois croatas vindos da Austrália, em Lens. Um deles jogou com Mark Viduka e tem Josip Simunic, adjunto da Croácia, na família.

Os primeiros que vejo estão com má cara. Saio do quarto, o elevador leva-me para baixo, vou apanhar ar e lá estão eles na receção. São quatro e um ocupa-se da parte má, que é explicar algo numa língua que não é a dele a alguém que não a fala e se recusa a, sequer, a tentar arranhar. Como os percebo. Passei pelo mesmo há horas, pelo bufar de falta de paciência com a pessoa que recebe hóspedes num hotel, nos arredores de Lens, para quem o inglês é como o mandarim para nós. Pobres jornalistas croatas, boa sorte. Não volto a ver gente do país que está entre Portugal e os quartos-de-final do Europeu até à tarde do dia seguinte. São uma raridade, estranho.

O estádio, e ainda bem, está perto do centro e rodeado de casas. Pequenas, dois ou três andares, muitas com cor de tijolo, ruas compridas e com ar acolhedor, sem prédios. É um campo no meio de gente e para as pessoas, faz lembrar Inglaterra, onde a bola começou por ser para o povo. Bravo. Mas por ali eles não estão. Fujo do Stade Bollaert-Delelis com uma promessa feita — falo com os primeiros croatas que aparecerem. Nem dez minutos de caminhada passam e, feita uma curva, eles aparecem. São dois, distinguíveis pelo xadrez azulado que lhes pinta as camisolas. Falam e riem-se um para outro, parecem estar alegres, até que um resgata o telemóvel do bolso e fica uns metros para trás. Tenho que me chegar uns metros à frente.

Pergunto se fala o inglês que é a única forma de conversarmos. “Sim, claro, perfeitamente.” Estranho o advérbio, suspeito que está ali um gabarola. Nada disso e demoro pouco até o perceber. O sotaque denuncia Stipe, ele não pode ser apenas croata, a entoação das palavras atira-o para bem longe dali. Domagoj repara que alguém interrompe o amigo, recua na marcha e, mal abre a boca, penso o mesmo. Estes não podem viver na Croácia. Não vivem, confirmam-no, enquanto nos encaminhamos para o café onde se querem sentar com uma cerveja na mão. “Há dois anos tivemos uma conversa em que concordámos que tínhamos que fazer algo diferente. Decidimos meter isto na cabeça. Até que a ideia voltou, há cerca de dois meses, quando os bilhetes começaram a ser vendidos. Pensámos: ‘Vamos mesmo fazer isto!’”, resume Stipe, entre os primeiros goles de cevada.

Foi aqui que avistei Stipe e Domagoj, a caminharem numa rua pacata de Lens, a 10 minutos a pé do estádio

Eles vieram de longe, do outro lado do mundo que se liga a este com 22 horas de avião. Stipe e Domagoj são croatas, amigos com duas décadas de ligação, dois australianos de cidadania, trintões, que vivem em Melbourne. São rapazes fortes, matulões em tamanho, com braços generosos e ombros largos. O calor aperta, ambos estão de calções a mostrar as penas e de óculos a tapar-lhes os olhos. É raro vê-los. Compensam o esconderijo para o olhar azul com os risos e sorrisos que se fartam de dar. Estão tão estatelados no sofá da boa-disposição que me deixam confortável para lhes perguntar tudo. Cada pedaço da história deles que deitam cá para fora parece deixá-los ainda mais à vontade, é o que se quer.

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“Desculpem lá, mas virem da Austrália até aqui, só para verem a Croácia, não é aventura a mais, a começar pelo dinheiro?”

Há um dia, há cerca de dois anos, em que a conversa entre Stipe Dragović e Domegoj Modrić (sim, até tem este apelido, e não, não tem nada a ver com o craque) os levou ao Europeu. Decidem que viriam até França, porem-se a jeito de acabarem num café algures em Lens. Até há pouco mais de dois meses, pouco mais podiam fazer do que juntar dólares australianos e ousadia. A venda de bilhetes arrancou, eles candidataram-se, a sorte chegou-lhes no sorteio e aí sim, “vamos fazer isto”, pensaram. Bilhetes na mão, mão no computador, voos na internet e estão em França. “Depois tens uma coisa que se chama alojamento e outra que se chama beber, o que torna as contas muito robustas. Fica muito caro, claro”, resume Stipe, frase que lhe devia arrancar uma gargalhada, mas que o mantém calmo. Para isso está ali Domegoj.

Tem riso fácil, piadas na ponta da língua, descontração no gatilho que as dispara. À redundância do “dinheiro é dinheiro” faz seguir o desabafo de que sim, está a valer bem a pena estar ali. “Se antes me dissesses que o dinheiro se ia amontoar até este ponto, se me garantisses que ia custar dois milhões de euros, o que fosse, teria vindo na mesma, se soubesse o que sei agora. O ambiente, a aventura, é tudo de loucos, estou a adorar. Não havia dinheiro que pagasse isto”, explica, braços cruzados, com tatuagens, apesar de poucas, pintadas ao estilo do rock e heavy metal que é música para os seus ouvidos. Dentro do “isto” de que fala cabem coisas que, verdadeiras, ainda o fazem admirar-se como a criança cujos olhos brilham na primeira ida a um parque de diversões.

(o golo de Ivan Perišić que deu a vitória por 2-1 da Croácia frente à Espanha, visto das bancadas de Stipe e Domegoj.)

Aponta para a frente, para as minhas costas, indica a mesa que está no lado oposto da esplanada. Alberga outros cinco croatas. Conheceu um deles “no outro dia”, conta Domegoj, que lhe contou ter família na Austrália. “Vá, diz-me os nomes e vais ver”, desafiou-o, a troçar com as probabilidades. “E afinal cresci com o irmão do meio e conheço o irmão mais novo. Já viste? Cresceste no outro lado do mundo, conheces alguém e acabas por perceber que sabes quem são alguns familiares dele. É incrível”, conta. É isto que cabe dentro do “isto” que o faz pensar como as estrelas se alinham, encolhem o mundo numa aldeia e o fazem valorizar a aventura que está a ter — “Os croatas, todos eles, ficam admirados por termos vindo este caminho todo desde a Austrália”. Pudera.

Domagoj está ali, longe dos seus, quando tinha mais que razões para estar perto. É casado, pai de três aos 38 anos, mas a mulher, com os ouvidos fatigados de o ouvir divagar de como um dia queria perseguir a Croácia num Europeu, “quase o obrigou” a viajar para França. Está ali feliz da vida, mas engole em seco com o filho recém-nascido de quem se despediu antes de embarcar para França. Foi atrás do futebol, da coisa que ele e Stipe não têm em Melbourne, onde ficam “acordados até às três ou quatro da manhã” para verem “algo de jeito” pela televisão. É “um sonho” dizer presente nas bancadas, embora Domegoj pudesse tê-lo dito em campo. “Comecei a jogar em Zagreb, depois fui para Malta, clubes semi-profissionais, nada de muito sério. Era mais para me divertir, mas era pago para o fazer. À medida que fui ficando mais velho fui decrescendo o nível, até começar a jogar só com amigos”, resume, enquanto Stipe acena, suspira pelo defesa central que o amigo podia ter sido.

"Toda a gente fica admirada por termos vindo 'all the way down from' Austrália. Até os que estão naquela mesa. Estavam-se a passar. Pensam que a Austrália é pequena, que toda a gente se conhece, não têm noção. Há quatro milhões de pessoas em Melbourne, como é que vamos falar com todas? E a probabilidade de eu conhecer um dos primos dele era mínima. Disse-lhe: ‘Vá, diz-me os nomes e vais ver’. E afinal cresci com o irmão do meio e conheço o irmão mais novo. Já viste? Cresceste no outro lado do mundo, conheces alguém e acabas por perceber que sabes quem são alguns familiares dele. É incrível”.
Domegoj Modrić

Mas ele gostava mais de se divertir com outras coisas. As festas, os programas com os seus, as saídas à noite, os divertimentos fáceis, sempre adorou isso. Uma vez, vindo de uma dessas manhãs que lhe queimavam o corpo aquecido pela noite, tinha um jogo da equipa, em Melbourne. Era jovem, saído da adolescência. No balneário, o treinador avisou-os que na bancada estava um olheiro, alguém de um clube importante, que estaria de olho em dois jogadores. Domegoj encolheu os ombros, não ligou, tinha a cabeça a dar ordens. Jogou mal, reflexo da noite bem passada, foi substituído ao intervalo, ala para o banco.

Um dos observados era ele, que hoje se ri, brinca e goza com a história. Acha que está bem melhor ali, a jogar com a cerveja que segura na mão, sentado, a gozar do calor, desfrutar da amizade que trouxe da Austrália e da vida que lá tem, como engenheiro civil. “Basicamente, dão-me um pedaço de terra, divido-o, coloco lá estradas, dreno o terreno, trato das estradas, da parte elétrica, todas as infraestruturas… Aparentemente sou esperto”, resume, estalando uma gargalhada na mesa. Stipe prolonga o sorriso, ou melhor, antecipa-o, por adivinhar que vai puxar o meu com sua história com o futebol, que começou e acabou na segunda maior cidade da Austrália, no que hoje é o Melbourne Knights.

(e o primeiro golo croata neste Europeu, do pé direito de Luka Modrić.)

O tipo que tenho sentado à minha frente, rechonchudo, com alguns quilos a mais, cuja testa pinga gotas de suor quando umas dezenas de metros o fazem ir e voltar do multibanco, tinha jeito para a bola. Nesse clube, que antes estava no topo da liga que deu origem à A-League, o campeonato australiano, chegou a partilhar equipa com Mark Viduka, antigo avançado e capitão da seleção australiana, cujos pais são croatas. “Estive dois ou três anos nos juniores, mas, realmente, não tinha grande interesse em ser jogador de futebol”, confessa, desprovido de remorsos, antes de enriquecer a história e dizer que tem um primo “casado com a irmã” de Viduka. Afinal o mundo é um casebre dentro da aldeia, porque o padrinho de uma prima de Stipe é Josip Simunic, o hoje adjunto da seleção croata que, em 2006, viu três cartões amarelos num jogo do Mundial — contra a Austrália. Talvez seja antes uma tenda.

Aos 35 anos, Stipe trabalha no aeroporto de Melbourne, para uma empresa de catering. “Basicamente, empacoto comida, coloco-a nos aviões e vejo hospedeiras bonitas, todos os dias”, resume, com a pitada de humor que se torna cada vez mais condimento, à medida que um deles faz o vaivém até ao bar, em busca de copos cheios. A tarde avança, o calor aperta, a sede é uma esponja que lhes pede mais tragos de cerveja. Contam-me como os pais de ambos foram para Austrália há muito, “à procura de melhor qualidade de vida”. Stipe nasceu por lá, Domagoj aterrou já com dois anos. O primeiro gostava um dia de viver na Croácia, para o outro seria ideal “passar seis meses” em cada país e ir fintando os invernos.

"Quando a Austrália jogou contra a Croácia, no Mundial de 2006, havia uns dez ou onze jogadores na seleção que tinham origem croata. Ou seja, nós sabíamos o que eles estavam a pensar, o que estavam a sentir. Estavam a fazer o seu trabalho, a representar a Austrália, mas, ao mesmo tempo, seria um sonho jogarem pela Croácia. Vestir esta camisola, neste momento, significa tudo para mim."
Stipe Dragović

O vento já sopra há muito na conversa quando, do nada, aparece um irlandês. Tem um chapéu com as cores a condizer e uma camisola vestida, verde, que o denuncia. “Querem bilhetes?”, pergunta, nem olá nem ui. Quer ver-se livre dos pedaços de cartão que tem na mão, cada um vale 145€, a sina do sorteio pregou-lhe a partida de a Irlanda, afinal, ir jogar os oitavos-de-final a Lyon. A culpa dividiu-se entre Portugal e a Islândia, um por empatar, outro por marcar o golo que, no último minuto, fez o primeiro viajar para Lens. Stipe e Domagoj perguntam o preço, nem regateiam, interessam-se, pedem-lhe para esperar. Respeitam a entrevista que estão a dar, apesar de o que para ali vai não poder ser mais informal. São uns tipos porreiros, muito. O irlandês pragueja quando percebe que tem ao lado um português, enquanto os croatas lhe pedem para regressar em 10 minutos.

Penso, sem me denunciar, na inveja que sinto por andar ali a trabalhar e não a ser adepto, como eles. “É a melhor coisa deste tipo de competições, as amizades que crias do zero, que aparecem do nada”, conclui Stipe. Aceito a cerveja que há muito me insistem em pagar. Brindamos. Falamos do que uns querem e os outros desejam, opinamos, trocamos histórias, fazemos a ocasional pausa para eles darem resposta a bocas em croata que chegam da outra mesa. Amanhã [sábado] jogam contra Portugal e sabem que o resultado apenas lhes pode beliscar um pouco a alegria, não a aventura. Querem lá saber de petardos lançados para o relvado, de confusões, de tristezas ou de pancadarias — “Viajamos durante 22 horas para festejarmos e passarmos um bom bocado. Temos a sorte de sermos um pouco rebeldes e de, ao mesmo tempo, adorarmos a nossa cultura”.

Stipe, à esquerda, meio abraçado a Domagoj, enquanto pousam para um fotógrafo croata e seguram a cerveja que lhes rega a conversa

Despedimo-nos, mas demora. Trocamos números, e-mails para aqui, conselhos para acolá, promessas de contacto. Dali irão para onde lhes apetecer, como um dia apeteceu a Stipe, há 12 anos, ficar em Lisboa, ao fim de uma semana e meia intensa no meio do Euro 2004, de umas férias banhadas a calor, agitadas por uma relação casual com uma brasileira e aliciadas, no final, com uma proposta para ficar a trabalhar num hotel. Não conhece a palavra, mas conhece o que é saudade. Dizem-me que estão a dois dias de rumar a Bordéus, provocam-me, riem-se por ser a cidade onde, quem vencer, irá jogar os quartos-de-final. Levo a bem o que poderia levar a mal. Com ou sem mais futebol, querem alugar um carro, acelerar, parar na Alemanha, República Checa, Holanda e “por aí fora” até chegarem à Croácia. “A Europa é tão pequena, é ótimo. Se conduzir na Austrália durante cinco horas continuo no mesmo estado. Aqui atravesso dois países”, brinca Domagoj, puxando pela diferença de viveram num país que é um continente.

E esta conversa foi a ruela de uma aldeia pequena, só pode. Dizem que é coisa feia, mas a inveja, neste caso, só pode ser bonita. Até já, seus croatas.

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