O Campeonato mais polémico de sempre em Portugal foi decidido, literalmente, até ao último minuto. Por um golo se ganhou, por um golo se perdeu. E a decisão esteve entre o Benfica e o FC Porto, com um dérbi no final da prova a fazer toda a diferença. Se está a pensar que este é um exercício de futurologia, desengane-se: aconteceu há quase 60 anos. Haverá agora um remake da história do célebre ano do Calabote?
Recuemos então à época 1958/59. Benfica e FC Porto tinham equipas fortes, daquelas que antes de entrarem em campo já estavam a ganhar, mas o início do Campeonato não confirmou todo esse favoritismo e à quarta jornada os encarnados já somavam dois empates (Caldas e Sp. Covilhã, ambos por 1-1) e os azuis e brancos uma derrota (CUF, 0-1) e uma igualdade (V. Setúbal, 3-3). De um lado estavam Costa Pereira, Coluna, Artur Santos, Cavém e José Águas, entre tantos outros; do outro Monteiro da Costa, Barbosa, Carlos Duarte e os homens-golo Teixeira, Hernâni e Noé. Mas as camisolas não ganhavam jogos. E os dragões iam perdendo terreno.
Até à 16.ª jornada, o FC Porto perdeu com o Belenenses e empatou com Caldas, Académica, V. Setúbal e Sporting. O título parecia uma miragem, não só porque o Benfica, mesmo com uma ou outra escorregadela, ia dominando mas porque outros azuis, aqueles que tinham a cruz de Cristo ao peito e Matateu na frente, prometiam andar na frente até ao final. Tudo acabaria por mudar, por culpa do Sporting.
Já reparou que até aqui ainda não tínhamos falado de Sporting? É verdade, foi mesmo de propósito – nessa temporada os leões até conseguiram um feito histórico mas, no plano interno, não existiram porque era uma época de viragem de ciclo. Assim, um dos poucos motivos de festa ao logo da temporada acabou por ser o facto de se terem tornado o primeiro clube português a passar uma eliminatória das provas europeias, eliminando os holandeses do DOS Utrecht com duas vitórias. O outro seria a vitória frente ao rival Benfica. Mas para os adeptos porque, na perspetiva dos jogadores da altura, as coisas eram bem diferentes.
“O Sporting tinha 12 adversários e um rival no Campeonato, o Benfica. Sempre foi assim em termos históricos, e na altura a proximidade entre os nossos campos era ainda maior, o que aumentava esse sentimento entre adeptos. E também havia polémicas como hoje mas a verdade é que a nós, jogadores, passava-nos ao lado. Queríamos era jogar futebol e tentar ser melhor do que o opositor em campo”, começa por explicar Mário Lino, açoriano que chegou no início dessa temporada ao Sporting, onde passaria nove anos como jogador, até terminar a carreira de forma precoce, com apenas 30 anos.
“Sabíamos que esse jogo poderia complicar as contas do Benfica, mas não era o tipo de conversa que tínhamos no balneário, longe disso. O Vasques e o Travassos, por exemplo, estavam naquela que seria a última temporada e até isso poderia levar a algum tipo de conversa especial mas nem isso. No Sporting da altura funcionávamos assim: queríamos ganhar todos os jogos, sabendo que contra o nosso rival era especial. Nesse ano ganhámos e cumprimos a nossa obrigação, mas só teria um valor especial se nos tivesse dado o título a nós”, esclarece.
“Foi um jogo de ânimos quentes, com expulsões e tudo. O Benfica tinha uma grande equipas mas fomos superiores e ganhámos com toda a justiça por 2-1. E o Vasques é que marcou o golo decisivo”, recorda.
Ficha de jogo
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Sporting-Benfica, 2-1
15 de março de 1959
25.ª jornada da Primeira Liga
Estádio José Alvalade, em Lisboa
Árbitro: Reinaldo Silva (Leiria)
Sporting: Octávio de Sá; Mário Lino, Morato, Hilário; Fernando Mendes, David Júlio; Hugo, Vasques, Travassos, Morais e Caraballo
Treinador: Mário Imbelloni
Benfica: Costa Pereira; Costa, Artur, Ângelo; Neto, Coluna; Alfredo, Palmeiro, Salvador, Cavém e José Águas
Treinador: Otto Glória
Golos: Hugo (13′), Cavém (16′) e Vasques (53′)
Ação disciplinar: cartão vermelho a Ângelo (85′) e Caraballo (87′)
Na penúltima jornada, era uma questão de honra que estava em causa. E a vitória do Sporting, aliada ao empate na repetição do jogo com o Belenenses, colocou o Benfica em segundo lugar com os mesmos pontos do FC Porto e em desvantagem nos golos marcados e sofridos. Assim se explicam os últimos minutos de loucos, com muitas picardias e as expulsões de Ângelo (que agrediu Travassos, um apanha-bolas, um vendedor de gelados e um diretor dos leões) e Caraballo (que também agrediu Coluna). E agora quer saber a parte mais curiosa da história?
“Quando os jogos acabavam, ficava tudo lá dentro. O que se tinha passado era passado. Queríamos ganhar porque era o Benfica, só isso, enquanto eles queriam ganhar porque havia também a questão do título. Mas depois íamos jantar juntos, como era muito costume da altura”, salienta Mário Lino, que via em José Águas o melhor exemplo dessa rivalidade sã: “Era um avançado com uma classe fantástica, de primeira água. Jogava como o Van Basten mais tarde fez, com requinte, muita técnica. Mas também era um desportista de eleição, um gentleman“.
Mário Lino, uma das quatro figuras do Sporting que foram campeões como jogador e treinador (como Fernando Mendes, Juca e Inácio), também é descrito assim, como um gentleman. E que gosta de recordar algumas histórias, como uma que houve mais tarde entre Figueiredo e Eusébio, que foram a um jantar a seguir a um dérbi com vários jogadores de Sporting e Benfica e ainda tiveram de levar nas orelhas de um empregado de mesa: “Então afinal nós ali na bancada andámos à chapada porque vocês era só porrada e afinal são amigos?”. Eram mesmo. Velhos tempos.
Esse Campeonato seria decidido uma semana depois numa história que ainda hoje é polémica e que envolveu o árbitro Inocêncio Calabote, que arbitrou o Benfica-CUF: os dragões, que se sagraram campeões por apenas um golo graças aos tentos tardios de Noé e Teixeira em Torres Vedras frente ao Torreense (3-0), queixam-se que o homem do apito começou o jogo dos encarnados mais tarde, que marcou três grandes penalidades e que expulsou três jogadores adversários; as águias, que ficaram a um golo do título apesar da goleada por 7-1 na receção ao CUF, queixam-se da forma como passou um penálti claro nas compensações e de outros lances que podiam ter engordado a goleada. Mas, no final das contas, quem acabou mesmo por decidir a Primeira Liga foi o outsider Sporting.
Quando o “Benfica campeão nacional” deu lugar ao FC Porto… campeão europeu
O gesto de Vítor Damas na baliza contrária após o golo do Sporting. Além de ter feito um “quase manguito” sem destinatário específico, apontou com os dedos para o chão e disse por gestos o que lhe ia na alma: “Estamos aqui”. Quando se mexe com o orgulho de uma pessoa ou de uma equipa, por mais que ela esteja em baixo vai buscar forças onde parece não existirem. Foi isso que aconteceu a 13 de abril de 1986, quando o Benfica campeão nacional deu lugar ao FC Porto campeão nacional… e futuro campeão europeu.
Também na penúltima jornada, desta vez num estádio da Luz completamente a abarrotar, o Benfica era campeão se ganhasse ao Sporting, ao passo que para os leões, que já não saíam do terceiro lugar, estava apenas em causa uma questão de honra e orgulho. E, já agora, vingança: um mês antes tinha perdido por 5-0 para os quartos-de-final da Taça de Portugal, com bis de Wando e golos de Rui Águas, Manniche e Álvaro.
Ficha de jogo
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Benfica-Sporting, 1-2
13 de abril de 1986
29.ª jornada da Primeira Liga
Estádio da Luz, em Lisboa
Árbitro: Carlos Valente (Setúbal)
Benfica: Bento; Veloso, Samuel (Nunes, 24′), Oliveira (José Luís, 76′), Álvaro; Shéu, Carlos Manuel, Diamantino, Wando; Rui Águas e Manniche
Treinador: Toni
Sporting: Damas; Gabriel, Morato, Venâncio, Romeu; Oceano, Carlos Xavier (Duílio, 81′), Jaime Pacheco, Sousa; Manuel Fernandes (Mário Jorge, 73′) e Meade
Treinador: Manuel José
Golos: Morato (11′), Manuel Fernandes (22′) e Manniche (60′)
Ação disciplinar: cartão amarelo a Romeu (70′) e Damas (72′)
A festa estava preparada e os encarnados nem disfarçavam: as mulheres dos jogadores num local especial do estádio, os cachecóis e t-shirts a dizer “Benfica campeão”. “Até com o hino do Benfica levámos no balneário”, recordou Morato, central que marcou o primeiro golo do encontro aproveitando a lesão de Samuel, que estava fora de campo. Ainda assim, entre as milhares e milhares de pessoas que enchiam a Luz havia alguns sportinguistas, que entraram no estádio a ouvir que seriam os “cabeçudos da festa” e saíram de sorriso nos lábios.
Depois do primeiro golo de Morato aos 11 minutos, Manuel Fernandes fez o 2-0 aos 22′ e, ao intervalo, o resultado até era simpático para os visitados. No segundo tempo, Manniche ainda reduziu a meia hora do fim mas nem quando Toni arriscou tudo com a entrada de José Luís para o lugar de Oliveira o desfecho final mudou.
O FC Porto, que tinha ganho pela margem mínima em Setúbal com um golo de Futre, ficava com os mesmos pontos do Benfica mas em vantagem e era notório que a derrota tinha sido um murro no estômago dos encarnados, que deixavam de depender apenas de si para ganhar o Campeonato. Assim, na última ronda, os dragões confirmaram o favoritismo em casa frente ao Sp. Covilhã, ganhando por 4-2, enquanto as águias perderam com o Boavista no Bessa por 1-0.
E o mais curioso nesta história é que foi esse título que permitiu ao FC Porto avançar para a Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1986/87, que terminaria com o triunfo frente ao Bayern por 2-1 com golos de Madjer e Juary.