Os organismos reagem e comportam-se de maneira diferente quando estão na Terra ou no espaço. Como se controla o movimento dos braços ou das pernas se não se sente o peso do corpo? Como se consegue trazer para Terra amostras de solo marciano? Como se comportam os líquidos quando não são “puxados para baixo”?

A única forma de perceber, na Terra, como reage o organismo de um astronauta enviado para a Estação Espacial Internacional ou como irá funcionar um determinado equipamento numa missão espacial só é possível a bordo de aviões que realizem voos parabólicos, quando as manobras realizadas pelo avião dão aos ocupantes a sensação de uma força gravitacional igual a zero. Com esta finalidade, a Agência Espacial Europeia (ESA) organizou, de 8 a 12 de setembro, pela sexagésima primeira vez uma campanha de voos parabólicos a bordo do airbus A300 Zero-G.

Considerados voos de teste, os voos parabólicos realizam manobras em forma de U invertido (parábolas). Em cada uma das 31 parábolas, feitas num único voo, é possível ter a sensação de ausência de peso – porque a soma das forças que atuam sobre o corpo equivale a 0G – durante 22 segundos em cada uma, como se se estivesse em queda livre. Mas antes e depois disso, na fase de hipergravidade da parábola (quando a soma das forças chega a 1,8G), a sensação é de que o corpo ou qualquer outro objeto pesa mais ou menos o dobro.

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Para esta campanha de voos parabólicos, que partiu do aeroporto de Bordéus, a ESA escolheu 11 experiências com objetivos variados: analisar o comportamento de líquidos e metais, estudar a coordenação motora e outros aspetos fisiológicos em humanos e avaliar o desempenho de equipamentos que serão enviados em missões espaciais. O Observador apresenta-lhe algumas dessas experiências.

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Os voos parabólicos são realizados na Europa desde o final dos anos 1980 pela Novespace, empresa responsável por estes voos e subsidiária da agência espacial francesa CNES (Centro Nacional de Estudos Espaciais). Antes disso, os cientistas europeus ou as agências espaciais da Europa tinham de alugar o avião da NASA (agência espacial norte-americana), que manteve os voos parabólicos para treino de astronautas e investigação desde os anos 1960 até ao início do século XXI.

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O coração bate em todas as direções

Por vezes, quando o coração bate com mais força, sentimos o sangue correr nas veias e o corpo tremer, como quando se passa algum tempo na sauna. Também durante o voo parabólico, quando as manobras realizadas pelos pilotos de teste simulam forças gravitacionais próximas de 2G, o coração é obrigado a bater com mais força para levar o sangue a todas as partes do corpo.

Mas no espaço a sensação é a oposta, como se o corpo deixasse de ter peso. Embora tanto no voo parabólico, como na Estação Espacial Internacional (EEI), a força gravitacional da Terra não deixe de atuar sobre os corpos ou materiais, a sensação é que equivale a zero. O coração relaxa e diminui o ritmo dos batimentos cardíacos. Um efeito nefasto para quem está exposto à sensação de ausência de peso durante longos períodos de tempo, como os astronautas.

Para vigiar as modificações ocorridas no músculo do coração e na atividade cardíaca, os astronautas na EEI podem, tal como os restantes habitantes do planeta, realizar um ecocardiograma, com a desvantagem de que os astronautas têm de o conseguir fazer a si próprios. Um método que permita, de forma simples, medir a força de contração do coração foi proposta pela equipa de Pierre-François Migeotte, investigador no Departamento de Cardiologia da Universidade Livre de Bruxelas.

“Cada vez que o coração bate há um momentum de sangue [uma massa de sangue em deslocação a uma determinada velocidade]. Depois há uma força de reação [em sentido contrário], que está relacionada com a força de contração [do coração], e é medida pela balistocardiografia”, explicou o físico. Este método, que permite detetar os movimentos do corpo causados pelo batimento cardíaco, é mais completo que o eletrocardiograma que mede apenas a atividade elétrica do coração. O ecocardiograma mede a eficiência do coração, mas requer a presença de um operador.

A balistocardiografia é uma técnica antiga, usada em meados do século XX, mas apenas numa dimensão: mediam-se os movimentos do corpo na direção horizontal (cabeça – pés). “Mas a fisiologia não é unidimensional, é tridimensional”, referiu Pierre-François Migeotte. “Tridimensional significa medir também a componente dorso-ventral e lateral (da esquerda para a direita).” O investigador considera este método mais apurado que o anterior porque a força máxima é obtida a partir da soma das forças que atuam nas três dimensões.

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Para calibrar esta metodologia a equipa realiza, durante a fase de ausência de peso do voo parabólico, o registo balistocardiográfico do indivíduo – como o corpo flutua quando é simulada a gravidade de 0G, pode movimentar-se em qualquer direção. Comparando o balistocardiograma com o ecocardiograma, que também é realizado durante a fase 0G, os investigadores podem, por um lado, comparar e relacionar os dados obtidos pelos dois métodos, por outro, calibrar o balistocardiógrafo para usar na Terra, onde a força gravitacional é 1G, usando um valor de correção. Assim, no futuro, este método poderá ser usado pelos doentes em casa, para registar a atividade cardíaca.

A equipa do Departamento de Cardiologia encontra-se a fazer ensaios com doentes sujeitos a cateterização (colocação de uma sonda num canal do organismo), “para ver se o balistocardiograma pode fornecer o mesmo tipo de informação com menos risco”, mas a aplicação médica sistemática ainda é um objetivo distante. Antes disso a metodologia será testada na Estação Espacial Internacional com astronautas. Embarca já no final deste mês.

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Andreia Reisinho Costa

O cérebro é um órgão adaptável

Se o coração é o motor que dá ao organismo força para trabalhar, o cérebro é o painel de controlo que vai comandando as ações. Tem um programa predefinido, mas mostra-se adaptável a situações novas. Ser sujeito a condições que simulam a gravidade zero é uma condição nova para muitas pessoas, mas frequente para os astronautas que passam vários meses na Estação Espacial Internacional. Perceber que alterações ocorrem no cérebro devido a estas condições é o objetivo da equipa de Floris Wuyts, especialista em Física Médica e Neurologia.

O cérebro integra a informação enviada pelo sistema vestibular, no interior do ouvido interno, responsável pelo equilíbrio, sistema visual e restantes sistemas sensoriais, incluindo os propriocetores, que dão informação sobre a posição do corpo. “O que descobrimos, numa fase preliminar com sete indivíduos, é que há mudanças no cérebro nas áreas que lidam com a integração da informação”, referiu ao Observador o investigador na Universidade de Antuérpia, na Holanda.

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Agora pretende criar um atlas com as imagens das ressonâncias magnéticas ao cérebro de várias pessoas sujeitas a condições equivalentes a gravidade zero, como os sujeitos a bordo do A300 Zero-G, e compará-las em vários momentos para ver se existem diferenças – 10 dias antes do voo, um ou dois dias antes, no dia do voo após o regresso, quatro dias, duas semanas e seis meses depois.

Perceber as alterações que ocorrem em determinada região do cérebro ajuda não só os astronautas que regressam do espaço e têm dificuldade em integrar a informação quando estão sob uma força gravitacional de 1G (normal na Terra), mas também as pessoas que têm perturbações nessas áreas e que portanto têm maior probabilidade de perder o equilíbrio e cair.

“Quando o sistema vestibular e o sistema visual captam informações diferentes enjoamos”, esclareceu o físico clínico, mas o cérebro acaba por se adaptar. Outra forma de “baralhar” a informação que o sistema visual envia ao cérebro é usando óculos que invertem as imagens que estamos a observar – o que está em cima vê-se em baixo, o que está à esquerda vê-se à direita. O investigador contou como um indivíduo sujeito a esta experiência durante um mês, acabou por reorganizar a forma como mexia os olhos para observar o que o rodeava.

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Nesta campanha de voos parabólicos também embarcou uma experiência com óculos de visão invertida – a inversão da imagem observada foi provocada por lentes em forma de prisma triangular deitado – gerida pela equipa de Gilles Clement, investigador na Universidade Internacional do Espaço, em França. O objetivo era avaliar o desempenho dos indivíduos quando a força gravitacional (ou a simulação desta) é 1G, 1,8G e 0G. Na ausência de sensação de peso tanto o sistema vestibular como o sistema propriocetor dão uma informação deficitária ao cérebro. Como a visão está adulterada pelos óculos especiais, os indivíduos têm dificuldade em perceber onde estão as mãos.

Vladimir Pletser, coordenador das campanhas de voos parabólicos da Agência Espacial Europeia, participou nesta experiência como sujeito. Apesar de estar bastante habituado às reações do organismo em voos parabólicos – já completou 6.716 parábolas – disse ao Observador que tinha sido “surpreendentemente difícil”. “O jogo de crianças era mais fácil porque podíamos sentir. Tocar no ecrã com 1G ou 2G [1,8G] era possível porque sabia onde apontar, mas em 0G não havia qualquer referência”.

Perceber como o desempenho é afetado pelas diferentes gravidades (ainda que simuladas) permitirá desenvolver equipamentos e procedimentos mais apropriados nas missões espaciais. “Estamos a analisar os dados [da campanha de setembro], mas não conseguiremos tirar conclusões antes do final da próxima campanha [com início a 6 de outubro]”, disse ao Observador Angie Bukley, que também faz parte do estudo.

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Andreia Reisinho Costa

Os músculos não contraem quando caímos no chão, mas antes

Não nos interrogamos porquê, mas quando saltamos os músculos das pernas e do resto do corpo reagem a tempo da aterragem, prevendo o momento em que vamos tocar no chão e a força do embate. Os investigadores têm demonstrado que quando a informação chega convenientemente ao cérebro e não temos qualquer lesão muscular, os músculos reagem precisamente 100 milissegundos antes do impacto.

Para fornecer informação de contração aos músculos, o cérebro recebe informação da visão, do sistema vestibular, no interior do ouvido interno, responsável pelo equilíbrio, e do sistema sensorial, em particular de um tipo de recetores – propriocetores – que dão informação sobre a posição do corpo. Qualquer alteração nestes sistemas ou na informação que fornecem condiciona a capacidade de reação do corpo antes dos pés tocarem numa superfície.

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Anneke Le Floc’h/ESA

Cair no escuro ou de olhos fechados sem noção de onde se encontra o fundo é uma forma de perturbar a reação normal do organismo. Outra é sujeitá-lo a forças gravitacionais (simuladas) de intensidades diferentes como num voo parabólico. Perceber onde o cérebro vai buscar as informações que necessita para ativar os músculos nestas situações é o objetivo da equipa liderada por Bénédicte Schepens, investigadora no Laboratório de Biomecânica e de Fisiologia da Locomoção, na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.

O sistema vestibular está permanentemente sobre a ação da força gravitacional de 1G quando está na Terra, mas durante um voo parabólico há uma sensação temporária de que se deixa de estar sobre o efeito da gravidade. Para se manterem “presos” ao chão os sujeitos da experiência são puxados para baixo, de forma artificial, por elásticos que exercem forças de intensidade diferente, que simulam: 0,8G, 0,6G, 0,4G e 0,2G. “O que queremos é perceber o papel destas fontes de informação: do sistema muscular e do sistema vestibular”, disse ao Observador Patrick Willems, responsável pela condução da investigação em Bordéus.

Com as cinco campanhas de voos parabólicos já realizadas, a equipa de investigadores tem inúmeros dados para analisar. Quer perceber “se o sujeito ativa os músculos sempre 100 milissegundos antes”, mas também pode, olhando apenas para os dados das primeiras parábolas, avaliar quanto tempo leva o indivíduo a habituar-se à nova situação. Este tipo de experiência permitirá ainda avaliar as alterações no controlo motor nos astronautas que estão na Estação Espacial Internacional, para os preparar para o regresso à Terra. Os dados também podem ajudar a perceber porque é que certas pessoas estão constantemente a torcer os pés – pode ser um falha num dos sistemas: visual, vestibular ou propriocetor.

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Andreia Reisinho Costa

Trazer solo marciano para Terra

As missões espaciais são complexas e dispendiosas, por isso cientistas, engenheiros e astronautas procuram garantir que todos os passos da mesma corram dentro do planeado e que para cada momento crítico tenham um plano B. Testar o funcionamento de um equipamento, com ou sem operador, na ausência de gravidade – como acontece na Estação Espacial Internacional ou na órbita de um planeta -, pode ser conseguido durante um voo parabólico. O A300 Zero-G levou a bordo um equipamento do programa de Preparação da Exploração Robótica de Marte (MREP), para ser testado pela equipa de Peter Falkner, investigador no Centro Europeu de Investigação e Tecnologia Espaciais (ESTEC), da ESA.

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Em 2018 será enviado para Marte um veículo – ExoMars rover – que terá como missão recolher amostras de solo marciano. Mas é necessário assegurar que a cápsula de seis quilogramas que conterá cerca de 300 gramas de solo consegue regressar à Terra nas melhores condições. Primeiro tem de ser colocada na órbita de Marte por um veículo propulsor – Mars Ascent Vehicle (MAV) -, depois recolhida por um satélite Orbiter que já se encontrará na órbita do Planeta Vermelho e por fim será enviada para a Terra. Nesta campanha de voos parabólicos foi testada a capacidade do módulo do Orbiter recolher a cápsula com as amostras na ausência de peso.

Num dado momento estarão cápsula e satélite na mesma órbita à volta de Marte. O Orbiter terá uma velocidade ligeiramente superior para gradualmente se ir aproximando da cápsula até a capturar num funil preparado para o efeito. Sensores dentro do funil detetam a presença da bola com 23 centímetros e ativam um braço mecânico que conserva a bola no interior até ser totalmente recolhida, explicou ao Observador Jonan Larragana, investigador no ESTEC e que coordenou a experiência em Bordéus.

iMARS Working group

A bordo do voo parabólico, o primeiro teste foi perceber se o braço mecânico aguentava o impacto da bola. Embora durante a parábola ou na órbita de Marte a cápsula possa parecer que não tem peso, na Terra pesa seis quilogramas e se projetada contra o braço mecânico poderia causar estragos. Mas passou no teste. O teste dos sensores também foi bem-sucedido. Depois foi preciso perceber se pequenas variações no local onde a bola entra no funil, ou na velocidade a que o faz, condicionavam o desempenho do mecanismo. “Verificámos que qualquer impacto que tivéssemos no braço durante a transferência não causava problemas e que a transferência poderia ser feita numa parábola”, disse Jonan Larragana, acrescentando que esta etapa foi completada com sucesso.

Agora existem outras tecnologias para desenvolver e mais testes para fazer antes de o MAV ser enviado para o espaço. O lançamento pode acontecer entre 2024 e 2034. Vai depender do apoio que as agências espaciais norte-americana (NASA) e russa (Roscosmos) dêm à europeia (ESA), do financiamento dos Estados-membros e do tempo de vida da cápsula (que agora está estimado em 12 anos). Desde a primeira ideia sobre uma missão espacial até que se obtenham na Terra dados para análise no final da missão, podem passar dezenas de anos.

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Andreia Reisinho Costa

Os opostos atraem-se

As propriedades físico-químicas da água, a molécula mais abundante no planeta Terra, tornam-na não só um excelente solvente como um componente essencial à vida. Embora na superfície terrestre possa ser encontrada em qualquer um dos estados – sólido, líquido e gasoso – está sempre sujeita a uma força gravitacional constante (1G). A possibilidade de simular um ambiente em gravidade 0G, a bordo do A300 Zero-G, permite estudar as propriedades dos líquidos noutras condições.

Quando no estado líquido, as moléculas de água ligam-se umas às outras permitindo que a gota de água que cai sobre a mesa se mantenha sempre arredondada ou que os alfaiates (pequenos insetos de patas finas) consigam caminhar sobre a água. Esta propriedade, chamada de tensão superficial, mantém-se mesmo quando se simula um ambiente sem gravidade. Com gotas arredondadas e “sem nenhuma força” a atuar sobre elas – na verdade, o somatório das forças que atuam sobre a gota é igual a zero – os investigadores do Grupo de Investigação e Aplicações de Física Estatística, da Universidade de Liège, na Bélgica, conseguiram avaliar o comportamento das gotas carregadas eletricamente quando se tenta que colidam umas com as outras.

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Em cada um dos três dias de voos parabólicos desta campanha, a equipa liderada por Martin Brandenbourger realizou uma experiência diferente: colisão de gotas carregadas negativamente, colisão de gotas carregadas positivamente e colisão de gotas com cargas diferentes. Apesar de a equipa ainda se encontrar a analisar os dados, o físico considera que “esta campanha foi um sucesso” e que conseguiram muito bons resultados. “Gotas com a mesma carga elétrica tendem a evitar a coalescência [fusão numa única gota] enquanto gotas com cargas elétricas opostas tendem a aumentar a coalescência”, disse ao Observador Martin Brandenbourger.

Os resultados desta experiência podem ser usados pelos fabricantes de impressoras. “Por causa das cargas, as gotas [de tinta] respondem a campos elétricos”, explica o físico. O que pode fazer com que as gotas se fundam em gotas demasiado grandes para uma impressão a jato de tinta, criando um problema de precisão. “[Também] é possível perceber como o aumento ou diminuição da coalescência influencia a produção de nuvens de tempestade”.

Martin Brandenbourger/GRASP

Durante os períodos em que as forças se anulam dando a ilusão de ausência de gravidade, seres vivos e materiais sofrem alterações fisiológicas ou físicas e químicas, respetivamente. A investigação realizada nos voos parabólicos permite melhorar o desempenho na realização de missões espaciais, trazendo ao mesmo tempo melhorias para as atividades realizadas na Terra.

 

Mais sobre o que é um voo parabólico: Flutuar como um astronauta num avião em queda livre