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Joana Linda

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Salvador Sobral: "Quero escrever as minhas canções. Depois de ouvir o Jacques Brel, percebi que é essencial"

Arrumar o passado e desdobrar o futuro em sonhos e projetos. A música, a pandemia e tudo o que cabe no meio. Uma entrevista com Salvador Sobral, antes do 1º de 6 concertos no Maria Matos.

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Foi por telefone que chegámos até ele, na manhã da última sexta-feira, estava então Salvador Sobral “no meio da Galiza, a norte, aqui na floresta”. Tinha ido, contou, “passar uns dias com a minha namorada” — e aproveitar para retemperar forças antes de um ciclo de concertos em dose tripla que começará esta segunda-feira no Teatro Maria Matos, em Lisboa.

O ciclo começa esta 2ª e 3ª, 10 e 11 de agosto, com atuações do cantor e intérprete com o seu projeto musical “Salvador Sobral canta Brel”. Os espectáculos prosseguem nos mesmos dias da semana seguinte, 2ª e 3ª, 17 e 18, com atuações da banda Alma Nuestra — de que é vocalista — e terminam também segunda-feira e terça-feira, dias 24 e 25, com o seu projeto musical em nome próprio, com o qual já editou os discos Excuse Me, de 2016, e o mais recente Paris, Lisboa, de 2019.

À boleia do regresso pujante de Salvador Sobral aos concertos em Portugal, com seis atuações em Lisboa e no Teatro Maria Matos agendadas só este mês, ouvimo-lo falar sobre espectáculos já feitos fora do país — as experiências em Espanha e Itália que o deixaram certo de que Portugal é um país “mais Covid-consciente” —, o concerto online que fez antes mesmo de ser decretado confinamento generalizado (e a moda de streams que se seguiu) e o impacto que teve na sua música e na sua vida a audição dos discos de Jacques Brel, que o fizeram perceber que é mesmo “essencial” escrever as canções que se canta.

Na entrevista, o cantor, compositor e músico português desvendou ainda o conceito do seu próximo álbum, que deverá sair em março de 2021 — as canções contam a história da última noite de um teatro e estão cheias de personagens que ali se deslocaram para o último concerto —, recordou a passagem pelo Festival Eurovisão da Canção, que venceu, e pelo programa “Ídolos” e assumiu: “O meu público deixou de ser Portugal inteiro para ser um público mais reduzido, de pessoas que gostam da música que faço. Quero tocar para pessoas que queiram ouvir a minha música, não quero que queiram ver-me porque estava na televisão“.

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“Toquei em Itália e ninguém tinha máscara. Portugal é mais Covid-consciente”

Os concertos estão a voltar por estes dias. Já fez alguns e terá outros pela frente este verão. Quão complicado foi não poder fazer isto durante uns tempos? Sentiu-se bem com ter tempo para fazer outras coisas, esse tempo foi proveitoso, ou a falta de palco já estava a complicar-lhe o sistema?
Na verdade, é um cliché enorme o que vou dizer mas o que mais gosto na vida é tocar para as pessoas. Quando não estou no palco, todas as outras áreas da minha vida ficam influenciadas. A minha confiança em geral, a minha auto-estima, a minha vontade de acordar de manhã… quando não posso estar em palco fico com uma percentagem muito alta de tristeza na minha vida.

O resto — os discos, as entrevistas, tudo isso — são só consequências do que realmente gosto de fazer, que é estar no palco. Por isso sim, foi muito difícil psicologicamente, emocionalmente. Só mesmo a esse nível, porque financeiramente felizmente sou um privilegiado, trabalhei muito desde a Eurovisão. Há pessoas que passaram mesmo mal financeiramente, técnicos por exemplo, agora emocionalmente é verdade que passei muito mal. Também é verdade que foi produtivo, escrevi muitas canções, compus, li muito, vi [a série] “The Wire” inteira, que nunca tinha visto… mas não aguento mais, gosto é de tocar para as pessoas.

“Relativamente a Espanha e Itália, onde estive, Portugal é um país mais Covid-consciente. Notei isso logo nos aeroportos, na maneira como estão organizados os embarques e a saída do avião. Depois, os concertos: em Itália toquei para 200 pessoas num sítio fechado e ninguém tinha máscara, noutro dia toquei num sítio aberto e não havia distanciamento nem máscaras”.

Ainda não há muitos músicos a fazer digressões internacionais nesta fase. Já fez alguns concertos fora do país este verão, com a banda Alma Nuestra. Como foi a experiência de viajar e tocar fora do país nesta fase?
Houve uma coisa que achei interessante. Nunca sou aquele tipo que vai para as Caraíbas e diz “o Alentejo tem praias muito melhores”. Ou que come um polvo na Galiza e diz “o polvo é muito bom é em Portugal”. Aproveito sempre os sítios e estou sempre aberto. Mas neste caso devo dizer que relativamente a Espanha e Itália, que foi onde estive, Portugal é um país mais Covid-consciente neste momento. Notei isso logo nos aeroportos, na maneira como estão organizados os embarques e a saída do avião — quando chegámos a Lisboa havia três autocarros à saída e em Itália havia um com muita sorte. Depois, os concertos: em Itália toquei para 200 pessoas num sítio fechado e ninguém tinha máscara, noutro dia toquei num sítio aberto e não havia distanciamento nem máscaras. Fiquei com um orgulho patriótico: temos feito boas medidas e temos estado super conscientes da Covid-19.

É interessante ouvir isso, até por toda a polémica que surgiu na internet e nas redes sociais com os primeiros espectáculos no Campo Pequeno, de “Deixem o Pimba em Paz”: falou-se muito sobre uma alegada insegurança…
As pessoas refilam sempre, não é? Enfim, é assim.

Antes de falarmos dos concertos no Teatro Maria Matos, queria recuar a um outro concerto, de 14 de março, um sábado. Anunciou esse concerto online na véspera, numa sexta-feira em que a maior parte das pessoas ainda estava a trabalhar presencialmente mas já se percebia que vinha aí algum tipo de recolhimento ou confinamento. O que o levou a querer fazer um concerto ‘online’? O primeiro impulso naquele momento assustador, de incerteza, foi tocar com um amigo [André Santos] e dar música às pessoas?
Muito honestamente foi por isso, pela vontade de tocar com um amigo. Foi o que mais me estimulou a fazer esse concerto.

Em noite de isolamento, Salvador cantou em nossas casas. Não podia, mas cantou

Não antecipava na altura a quantidade de “streams” e concertos online que se seguiriam? Cá foi o primeiro concerto do género, penso.
Foi, foi. Não esperava nada. Sou um otimista e pensava: isto vai melhorar. Nunca pensei que depois ficássemos fechados tanto tempo e que os concertos online passassem a ser uma rotina. Foi só a vontade de tocarmos juntos e fazer aquilo. Foi muito giro. Claro, não se compara nunca a um concerto.

Achei graça ali a um momento, mais ou menos ao início, depois de cantar a “Só” do Jorge Palma, em que dizia ao André Santos: “Vamos dizer boa noite às pessoas? Se calhar não há ninguém…” Isso não é parte de um humor autodepreciativo seu, de uma diminuição propositada de expectativas? Porque é claro que estava lá alguém, estava muita gente a ver…
Faço sempre isso. Isso da auto-depreciação é uma auto-defesa minha. Todos os concertos que tenho e que marco, tenho a certeza que não vem ninguém. Mas todos, desde o tempo em que fazia os concertos na Fábrica Braço de Prata — pensava que não vinha ninguém — até ao Coliseu, em que continuei a achar que não vinha ninguém. Tenho essa coisa, não sei se é um mecanismo de defesa para um dia em que não venha ninguém.

Uma espécie de “esperar o melhor mas estar preparado para o pior”?
Exato. Sim, sim. Acho que é isso.

“Ainda bem que as pessoas algum dia acordaram e perceberam o valor dos enfermeiros. Pode ser que o Estado um dia também acorde e veja o valor dos enfermeiros. Pode ser no mesmo dia em que veja o valor dos artistas…"

Naquele concerto fez logo uma referência aos profissionais de saúde e aos enfermeiros. Até pela condição de saúde que teve anteriormente, aperceber-se-á melhor e talvez mais cedo do que outras pessoas a importância que têm. Esse período de saúde mais debilitada leva-o a ver os profissionais de saúde de forma diferente, hoje em dia?
Acho que as pessoas respeitaram sempre os médicos, tiveram sempre um enorme respeito e admiração e eu era mais uma dessas pessoas. Mas é verdade que com essa experiência fiquei com uma admiração nova e ainda maior pelos enfermeiros. Para mim já eram uns heróis. Tanto podem estar a mudar-te a fralda como podem no momento seguinte estar a salvar-te a vida. E fazem isso a ganhar uma miséria, a seguir têm de sair dali e ir para uma clínica qualquer para conseguir chegar ao fim do mês. Acho o ordenado que se paga aos enfermeiros uma das maiores injustiças.

A maior admiração que ganhei realmente foi por eles, já antes da pandemia, mas ainda bem que as pessoas algum dia acordaram e perceberam o valor dos enfermeiros. Pode ser que o Estado um dia também acorde e veja o valor dos enfermeiros. Pode ser no mesmo dia em que veja o valor dos artistas…

“Lembro-me de estar a sair do hospital, olhar para as rotundas e ficar impressionado ao ver o quão organizada é uma sociedade em que podemos todos entrar e sair de rotundas sem haver choques.”

É comum ouvir-se o cliché de que quando se passa por uma experiência de se estar gravemente doente, ou de estar perto da morte, o modo de viver muda. No seu caso, sentiu isso? E já agora, sente que isso fê-lo viver esta pandemia de forma diferente?
É verdade que quando saí do hospital, quando tive alta, lembro-me de me fascinar com tudo. Lembro-me de estar a sair do hospital, olhar para as rotundas e ficar impressionado, ao ver o quão organizada é uma sociedade em que podemos todos entrar e sair de rotundas sem haver choques. Uma pessoa está seis meses no hospital, sai e acha tudo incrível. Lembro-me de pensar: nunca mais vou refilar com o trânsito, vou abraçar o trânsito porque o trânsito não é um problema na vida, problemas são outros. Hoje, sempre que há trânsito o meu primeiro impulso é ficar chateado mas depois lembro-me daquilo que disse.

Infelizmente o ser humano adapta-se a tudo — e como me adaptei à doença, também já me adaptei à saúde. Já sou uma pessoa igual às outras… quer dizer, talvez não. Sinto que tenho um segredo: já vi o outro lado e sei que pode ser muito complicado. Sei mais qualquer coisa, não sei explicar. Sinto isso também na ligação com pessoas que passaram por coisas igualmente complicadíssimas, é como se fossemos uma sociedade secreta. ‘Tu também sabes, tu também sabes o que é estar à beira da morte; temos aqui um segredo em comum’.

Salvador Sobral. A vida do cantor que tem um segundo coração

Numa entrevista à revista Visão, que deu antes da pandemia, dizia: “Quando estava doente não havia futuro, não pensava no futuro”. Essa impressão de ausência de futuro foi uma sensação muito comentada sobre esta fase do mundo. O que passou antes ajudou-o a relativizar o que lhe poderia acontecer desta vez, ajudou-o a amenizar o medo? Mesmo sendo de um grupo de risco…
Não, não. Pelo contrário. Na altura não pensava no futuro porque sabia que era possível que não existisse. O problema aqui é que agora estava com muita saúde e cheio de futuro, tinha muitas coisas marcadas. Este período de espera foi muito difícil para mim emocionalmente — fisicamente não, obviamente. Em termos de ambição estava muito entusiasmado com o que aí vinha: ia para o Brasil, tinha mais concertos em Itália. Nesse sentido foi mais difícil porque sabia que tinha saúde para fazer concertos e andar na estrada. Antes, sabia que o futuro era impossível de planear.

Certo, certo. A minha dúvida aqui era mais em termos de saúde: se já ter vivido uma coisa tão complicada fê-lo ter menos pânico quanto ao que lhe poderia acontecer-lhe se a sua saúde fosse afetada pela Covid-19.
Mais ou menos. Tive os meus períodos de paranoia, muitos dias acordava a pensar que tinha Covid-19. Ainda hoje acontece. Além disso, se chegasse a ter o vírus seria muito complicado. Por isso, é verdade que tive as minhas alturas de paranoia — e tive cuidados, claro.

Joana Linda

Vamos falar dos concertos que terá no Teatro Maria Matos, mas antes há uma coisa que é inevitável perguntar porque está relacionada com a sua música. Houve alterações recentes na sua banda: a entrada do André Santos, guitarrista, e uma troca de pianistas. Saiu o Júlio Resende, que foi um músico importante no seu percurso — trabalhou consigo quer nas suas canções a solo, quer por exemplo na banda Alexander Search. Foi um divórcio amigável ou um divórcio complicado? 
Tínhamos uma grande ligação musical, é verdade. Ainda a temos, se amanhã voltarmos a tocar, mas já vinha a sentir a saída do Júlio há algum tempo. Sabia que ele tinha ambições diferentes com o projeto dele a solo. Confesso que se fosse há um ano ter-me-ia preocupado mais, porque sentia que o Júlio era o único pianista possível para a minha banda. Mas depois conheci o Max [Agnas, novo pianista], quando vivi um mês em Estocolmo a aprender sueco. É um puto, tem 23 anos. É um pianista prodigioso e muito louco em palco, um bocadinho parecido comigo, faz muitos malabarismos e também gosta de teatro. Quando o conheci fiquei um bocadinho mais tranquilo. Pensei logo que se um dia o Júlio se quisesse ir embora, poderia convidar o Max. Aconteceu agora durante esta pandemia: o Júlio ligou-me porque estávamos sempre a tentar combinar um encontro e nunca dava por causa da pandemia. Acabou por ser por telefone que falámos e que ele me disse que queria dedicar-se ao projeto dele a solo.

Uma rutura por telefone… é sempre complicado…
[risos] Claro, claro. Como aquelas namoradas, não é? Mas pronto, já sentia e já todos sentíamos um pouco que a partida dele estava iminente. Ele próprio também, claro. Então liguei ao Max e o Max veio viver para Lisboa. Já tocámos em Itália e foi muito giro. Felizmente houve essa conexão, porque não é fácil encontrar uma conexão musical com alguém, é como o amor. Felizmente o Max cumpre todos os requisitos para uma relação amoroso-musical.

O impacto de Brel: “Nunca tinha conhecido um artista, poeta, cantor, ator e músico assim”

O primeiro ciclo de concertos no Teatro Maria Matos será com um projeto de revisitação de canções do Jacques Brel. O que é que lhe deu para cantar Jacques Brel? Como se lembrou disso, como surgiu a ideia?
Isto começou há uns três anos. Quando tocávamos pela Europa, íamos a muitos sítios e as pessoas diziam-me que se percebia a grande influência que o Jacques Brel tinha na minha vida e na minha música. Pela minha teatralidade ao cantar, pela emoção, por essas coisas. Eu nunca tinha ouvido o Jacques Brel com atenção, nunca lhe tinha prestado muita atenção — sendo que já era casado com uma francesa-belga. À terceira ou quarta vez que me disseram isto depois dos concertos pensei: vou debruçar-me sobre este gajo.

"Ouvi a obra inteira do Jacques Brel e isso marcou um antes e um depois na minha vida musical. Nunca tinha conhecido um artista, um poeta, um cantor, um ator, um músico assim. Aqueles arranjos, tudo... era tudo perfeito, nunca tinha visto uma vida assim, a obra completa dele é uma obra de arte."

Ouvi a obra inteira do Jacques Brel e isso marcou um antes e um depois na minha vida musical. Nunca tinha conhecido um artista, um poeta, um cantor, um ator, um músico assim. Aqueles arranjos, tudo… era tudo perfeito, nunca tinha visto uma vida assim, a obra completa dele é uma obra de arte. Ainda por cima depois via vídeos dele a interpretar coisas e identificava-me com a maneira dele interpretar, como se tivesse efetivamente visto aquilo e imitado. Nunca o tinha feito. A minha maneira de agradecer a obra do Jacques Brel de uma forma meio mística era fazer concertos. Juntei um grupo completamente diferente do grupo dele, o dele era uma orquestra e uma big band e aqui não há orçamento para fazer esse tipo de coisas [risos]. Também queria fazer arranjos muito diferentes dos dele, para me distanciar. Então, juntei outros músicos e fomos para o Melides Art fazer arranjos de raiz para os temas do Jacques Brel. Esgotámos as salas do CCB, da Casa da Música e em Aveiro. Foi a experiência musical mais gratificante que tive na vida, na verdade. Agora vamos repeti-la e também já está esgotado, o que é ótimo.

Essa era uma das dúvidas que tinha: se a ideia inicial tinha sido logo interpretar os temas de modo muito diferente, não muito fielmente, procurando até fugir às versões originais, ou se havia algum temor, quase, em pegar numa obra sagrada e transformá-la…
Aquilo é perfeito. Logo à partida, está-se já a perder. Agarra-se uma coisa que é perfeita e já se está a perder pontos, é como o carro quando sai do stand: já perdeu não sei quantos mil euros [risos]. Aqui é a mesma coisa porque os arranjos originais são perfeitos. Com a banda que tínhamos não poderíamos colar-nos às versões originais, mas também não queríamos que isto fosse uma banda típica de tributo, em que me vestia igual ao Jacques Brel e eles vestiam-se iguais aos músicos.

Como aquilo é perfeito, acho que já é, por si, intocável. Não devemos estar a mexer naquilo, podemos fazer uma homenagem em jeito de agradecimento mas de outra maneira, até porque criativamente o processo de encontrar arranjos originais é muito mais interessante.

Tenho curiosidade sobre a reação de pessoas que conheciam muito bem a obra do Jacques Brel. Isso acontecerá com a sua mulher, por exemplo. Sendo ela franco-belga, conhecerá bem a obra…
Conhece perfeitamente, ouviu toda a vida dela. A infância dela foi vivida nos sítios de que ele fala, sobre os quais canta.

"O pior vai ser quando levarmos o Jacques Brel para França. Vamos a França tocar em novembro e é bem possível que sejamos chacinados. Um português que é suposto ser taxista ou porteiro em Paris vai lá cantar e tocar Jacques Brel..."

Seja de pessoas que conhecem muito bem a obra do Brel, como ela, seja de pessoas mais velhas e que geracionalmente acompanharam mais o que o Jacques Brel fez em vida, chegaram-lhe reações a que achou graça?
Lembro-me de uma crítica qualquer menos positiva ao concerto, não me lembro em que jornal foi publicado. Mas, claro, já estava preparado para isso. O pior vai ser quando levarmos o Jacques Brel para França. Vamos a França tocar em novembro e é bem possível que sejamos chacinados. Um português que é suposto ser taxista ou porteiro em Paris vai lá cantar e tocar Jacques Brel…

Há aquelas pessoas que são definitivamente muito fãs do Jacques Brel e que acham que isto não é o Jacques Brel. Pois não é, mas eu também não tenho essa ambição, tenho a ambição de dar um presente às pessoas que gostavam muito dele mas sempre com uma distância enorme. Não almejo ser o Jacques Brel, almejo ser eu próprio e escrever as minhas canções. Acho super legítimo as pessoas acharem que foi giro mas que não é o Jacques Brel…

Ainda assim, as pessoas interessam-se por isto: as salas cheias, que são um indicador de relevo, assim o indicam.
Pois, a maior parte das pessoas [gostou]. Lembro-me só dessa crítica negativa, a maioria das pessoas acho que adorou. A minha namorada gosta muito, mas ela é suspeita.

E estes Alma Nuestra, como nascem? Como começou este projeto que deu origem a um disco e que dará origem agora a concertos no Teatro Maria Matos?
Alma Nuestra começou em 2011, quando estava a viver em Maiorca, a trabalhar lá nos bares e nos restaurantes. Foi quando ouvi pela primeira vez o Caetano [Veloso] a cantar o “Ay, amor!” do Bola de Nieve, canção que está no disco Fina Estampa, que é só com músicas da América Latina. Há a descoberta mais recente do Jacques Brel e há antes disso essa descoberta do Caetano a cantar em espanhol, que me levou até aos boleros — também marcou um antes e um depois na minha vida.

A partir do Caetano comecei a descobrir as origens dessa música: o próprio Bola de Nieve, o Benny Moré, o José Antonio Méndez, a Maria Teresa Vera, esses nomes da música cubana e mexicana. Soaram-me a algo como se fosse jazz, mas com letras muito mais desgarradas, muito mais humanas, viscerais. Porque o jazz às vezes é um bocadinho higiénico em demasia, nas letras: “eu gosto de ti, tu gostas de mim, as folhas do outono e não sei quê”… Isto aqui são canções de desamor, desgarradas, que adoro interpretar. São muito divertidas de interpretar.

Foi o mote para esta nova banda?
Em 2015 conheci em Lisboa o [Victor] Zamora, que era perfeito para isto: é um pianista de jazz mas é cubano, tem a veia cubana quando toca. Quando o conheci, no [clube] Ondajazz, perguntei-lhe se queria fazer um grupo de música cubana. E ele disse que sim.

Em Espanha é um projeto que tem um pouco mais de saída, porque lá as pessoas cresceram com essa música. Nós não temos muita ligação com música da América Latina hispano-falante. Tem sido muito giro tocar em Espanha porque as pessoas cresceram com essas canções. Em Lisboa, fizemos concertos no [Teatro] Villaret e as pessoas também gostaram. Gosto imenso desta banda porque acho que é a minha banda mais jazzística, onde o jazz está mais presente e porque há liberdade de improvisação e teatralidade, porque estes boleros prezam-se muito a essa teatralidade. O Bola de Nieve, por exemplo, é também um ator.

"Não almejo ser o Jacques Brel, almejo ser eu próprio e escrever as minhas canções. Depois de ouvir o Jacques Brel percebi a beleza de escrever as próprias canções, percebi que é essencial. E pensei: epá, no meu próximo disco vou escrever todas as canções. Se der, deu. Se não der, o 'não' já está garantido."

Além destes dois projetos vai também fazer concertos com o seu projeto a solo, apresentando as canções que edita com o seu nome, Salvador Sobral. Tivemos um disco recentemente [Paris, Lisboa, em 2019] mas já anda a pensar em canções novas?
Sim. Estou proativamente a criar o próximo disco. Em janeiro do próximo ano vamos gravá-lo em quinteto, em França. Depois deverá sair em março. Mas as canções já as compus todas, com o meu amigo Leo [Aldrey]. Todas as canções do disco vão ser escritas por nós. Depois do Jacques Brel percebi a beleza de escrever as próprias canções, percebi que é essencial. E pensei: epá, no meu próximo disco vou escrever todas as canções. Se der, deu. Se não der, o “não” já está garantido — posso voltar a ser intérprete, já sei que tenho valências como intérprete, agora quero experimentar isto. Compusemos umas 17 canções mas para o disco só se aproveitarão umas dez ou 11, talvez. A gravação já está agendada e estes concertos no Maria Matos servirão também de ensaio. Vamos ver como tocamos com o quinteto, porque nunca tocámos juntos, os cinco.

Seja alguma estética musical, seja algum tema narrativo, há fios condutores que tenha notado nessas novas canções que tem escrito? 
Antes da pandemia fiz uma residência com o Leo [Aldrey] e criámos um conceito para escrever as músicas. Estes limites são na verdade a maior das liberdades. Pensámos num conceito que era: a última noite de um teatro. Talvez se chamará assim o disco, ainda não sei. Será sobre a última noite de um teatro, o último concerto que esse teatro vai ter.

Ainda não sabemos se o teatro vai ser demolido porque vai ser um parque de estacionamento ou se vai ser um Airbnb… mas começámos a construir personagens que estivessem nesse teatro nessa noite, no último concerto de um eatro. Temos um cantor que de repente ficou sem voz, que é uma coisa meio Saramaguiana: a canção chama-se “Sem Voz” e faz a ponte comigo, porque escrevi-a porque não estava a cantar. Acabou por ser muito autobiográfica porque sentia-me sem voz. Temos no disco a história de uma fã muito louca, daquelas muito obcecadas, que estava lá também nessa noite. Temos a cenógrafa, o senhor da limpeza… são tudo personagens que estão lá, embora se calhar à partida quando ouves a música não se perceba porque existem muitas pontes com a minha vida. Estava a escrever muito sobre mim próprio e às tantas já andava a forçar personagens no teatro que não tinham quase nada a ver mas como queria escrever aquela letra, meti a personagem lá para dentro [risos].

Esse período de sentir-se sem voz foi recente?
Foi o período da quarentena! Não podia cantar… é uma metáfora, a de um cantor sem voz, para falar do meu momento ali na pandemia, sem poder dar concertos.

"Tenho a sensação que este disco [o próximo] terá um som mais moderno. Tenho ouvido muita música a que chamam post-neo-soul, ali em torno do hip-hop se quiseres. Não vou fazer um disco de hip-hop, isso está claro, mas terá as suas influências. Talvez este disco tenha um som um pouco mais urbano."

Havendo alterações na banda, há a ideia de introduzir nuances musicais novas? Pensa em introduzir umas doses de algum estilo de música diferente ou a ideia será manter a receita do disco anterior e do percurso que está para trás?
Tenho a sensação que este disco terá um som mais moderno. As harmonias também são um pouco mais modernas. Tenho ouvido muita música a que chamam post-neo-soul, ali em torno do hip-hop se quiseres. Não vou fazer um disco de hip-hop, isso está claro, mas terá as suas influências. O [último] disco da Fiona Apple também terá a sua influência, nas percussões. Houve muitas coisas que nos influenciaram a mim e ao Leo [Aldrey] na hora de compor. O James Blake, também… coisas que se calhar não são óbvias mas que vão ter o seu impacto. Talvez este disco terá um som um pouco mais urbano, diria. Não sei.

É engraçado, falava dessa influência da música “urbana” e estava a lembrar-me da história que contou na “Prova Oral” da Antena 3, sobre o contacto com o Anderson .Paak.
Ah, exatamente! Ainda estou à procura de uma canção para lhe mandar um dia, se ele quiser colaborar comigo. Tenho de compor uma canção que sinto que encaixe com ele. Só tenho uma oportunidade para lhe mandar uma canção. Um dia que escrever, quero que sinta que fica bem nele e hei-de mandá-la pelo Instagram.

Foi pena não ter aproveitado melhor [o contacto] na altura, talvez, mas eu também não estava no Instagram, não percebo nada daquilo. Agora tenho uma pessoa que me gere as redes sociais e que talvez possa conseguir agilizar melhor isso. Quando acabar a canção vou enviar-lhe uma mensagem para ver se ele se lembra de mim: “lembras-te daquele gajo que conheceste num talkshow na Suécia?”

Aquele “cool cat”, não foi como ele o descreveu?
[risos] Sim.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

“A minha história na Eurovisão foi aquele momento: começou e acabou ali”

Esteve agora nomeado para uns prémios da música portuguesa, os Play. Toda a pressão que adveio da participação na Eurovisão, quer durante quer depois, faz com que lide com estes prémios e com estas nomeações de uma forma diferente do modo com que lidaria antes da Eurovisão? Em 2016, imaginemos.
Essa pergunta não é fácil… não faço ideia como lidaria nessa altura. Não ligo muito a essas coisas, mas se fosse 2016 e as pessoas não me conhecessem se calhar podia ser importante um prémio como esses. Não ligo muito aos prémios, nem aos Globos de Ouro nem essas coisas. Sou sempre cético em relação a essas coisas.

"Os concursos de música na televisão: "Se vais lá com 17 anos sem saber nada da vida e da música que queres para ti, se vais para lá cantar Whitney Houston aos gritos, não acho que seja muito bom. Mas também já estive nisso. tive a sensação de que aquilo [participou no "Ídolos"] é que era a música. E não é, aquilo é entretenimento. Esse é problema: o entretenimento está muito longe da música."

Há dias circulava no Facebook um texto muito partilhado, com declarações da Maria João Pires ao jornal Público em que falava de concursos de música de forma muito crítica: dizia que eram responsáveis pelo desaparecimento futuro da música, pela impossibilidade de os jovens poderem vir a exprimir-se e serem artistas e músicos na plenitude. Perguntava ela: “Como se pode ser um artista e o objetivo é ganhar? Mas ganhar o quê?”. Participou nos “Ídolos” e posteriormente na Eurovisão. Tendo em conta os prós e os contras que estes concursos lhe trouxeram para a carreira e para a vida, revê-se nestas palavras?
Para mim o único concurso que funcionou bem em termos de carreira foi a Eurovisão, obviamente. E funcionou porque já sabia o que queria e quem era artisticamente e pessoalmente. Sabia o que queria e sabia quem era. Acho que só nesses casos é possível que esses concursos ajudem. Mas não ponho os concursos no patamar dos prémios Play…

Claro, claro. É um outro assunto.
Acho que os concursos de talento só funcionam se soubermos quem somos, o que queremos fazer e como queremos que seja a nossa música. Se é para estar lá com 17 anos sem saber nada da vida e da música, se é para ir lá cantar Whitney Houston aos gritos, não acho que seja muito bom. Mas também já estive nisso.

É uma procura de validação que, se acontecer muito cedo, pode ser prejudicial, é isso?
No meu caso foi, porque tive a sensação que aquilo [“Ídolos”] é que era a música. E não é, aquilo é entretenimento. Esse é problema: o entretenimento está muito longe da música. Nesses programas o que conta é entreter a audiência, então moldam-se personagens para cada um dos concorrentes e eles tornam-se marionetas de um programa de televisão. Também há exceções: estou a lembrar-me do exemplo do Tiago Nacarato, que foi a um concurso há pouco tempo mas cantou o que era dele, a música dele, e hoje em dia está a ter concertos graças ao programa. Serviu para as pessoas o conhecerem e desse ponto de vista acho que os concursos podem ser uma boa rampa, mas só quando se está preparado para isso.

Há um tema que é inevitável falar, porque não se ganha a Eurovisão muitas vezes: quão encerrado está esse assunto? Há vontade de ter alguma ligação ao concurso, de o ver nos próximos anos, de ver e seguir o que se faz por lá ou houve aquele momento e agora já nem lhe interessa muito o rumo que aquilo vier a tomar?
Acho que a minha história com a Eurovisão foi aquele momento: começou e acabou ali. Tive agora esta participação no filme [“Eurovisão: A História dos Fire Saga”] em que estava a cantar e a tocar piano, um filme da Netflix que também não me comprometia nada. Pensei que poderia chegar a mercados do outro lado de oceano ao ser visto naquele filme.

De qualquer forma, tem-se falado dos resultados abaixo das expectativas dos candidatos portugueses que sucederem a si e à Luísa Sobral. Lembro-me inclusivamente de uma entrevista em que falava do Conan Osiris e em que dizia que achava que ele tinha um perfil que fazia dele um candidato forte a marcar a Eurovisão. Tem opinião sobre o motivo para estes resultados abaixo das expectativas? Será devido às músicas, aos intérpretes, a alguma desadequação ao formato que por outro lado também não será a suficiente para criar um impacto forte?
Acho que naquele concurso o segredo é o choque. Quem vai lá e choca mais, ganha. Pode chocar pela barba, por fazer sons de uma galinha ou por fazer uma canção boa — que é uma coisa estranha lá. No meu caso, foi porque fizemos uma música boa que ganhámos. Foi uma coisa diferente. Por isso é que achava que o Conan Osiris tinha possibilidades, porque a canção dele era muito diferente e a apresentação podia chocar, mas se calhar também não chocava o suficiente, talvez existissem coisas que chocavam mais, não sei. Mas acho que o que ganha lá é sempre o fator diferença.

"O meu público deixou de ser Portugal inteiro para ser um público mais reduzido, de pessoas que gostam da música que faço. Quero tocar para pessoas que queiram ouvir a minha música, não quero que queiram ver-me porque estava na televisão."

Fechando esse assunto: foi fácil convencer as pessoas que adoraram a “Amar pelos Dois”, que a viram na televisão e que se emocionaram naquela noite, a interessar-se depois por ouvir e por continuar a ouvir aquilo que foi fazendo a seguir? Sentiu que foi fácil trazer esse vasto público que gostou da canção para o resto da música que faz?
Não, acho que houve uma filtragem óbvia e clara do público. Com o passar do tempo, houve uma filtragem, uma divisão entre o público que estava lá pela fama e por aquilo que [a Eurovisão] tinha gerado e o público que estava lá mesmo pela música. O meu público deixou de ser Portugal inteiro para ser um público mais reduzido, de pessoas que gostam da música que faço.

Está confortável com isso? Não é algo que o inquiete?
Estou perfeitamente confortável. Quero tocar para pessoas que queiram ouvir a minha música, não quero que queiram ver-me porque estava na televisão.

Falávamos há pouco da conversa na “Prova Oral” e da revelação que fez sobre o contacto com o Anderson .Paak. Teve um outro momento em que falou da experiência de conhecer a Rosalía em Barcelona, de estudarem na mesma faculdade, de a ouvir cantar Frank Ocean numa jam de jazz. Por curiosidade, vendo-a naquela altura era percetível o fenómeno mundial em que se poderia tornar?
Todos nós na escola sabíamos que ela ia ter impacto na indústria da música. Era uma miúda muito focada e quando a vi cantar Frank Ocean com um arranjo dela… era uma pessoa que tinha uns horizontes enormes, que não estava ali para estudar os seus dois standards de jazz e que depois não iria ter futuro. Toda a gente da escola, tanto os professores como os alunos, sabia quem era a Rosalía e sabia que a Rosalía iria fazer coisas importantes.

A que grau é que a fama muda as pessoas? Estava aqui a pensar se a Rosalía seria hoje uma pessoa muito diferente — mas também no seu percurso, se sentiu que a dada altura isso podia estar a acontecer ainda que não lhe apetecesse nada que acontecesse.
No caso dela, nunca mais a vi… liguei-lhe uma vez por causa de um disco que ela fez, o Los Angeles, de que eu gostava imenso, na verdade é o meu disco preferido dela. E ela disse-me: um dia temos de tocar juntos. Depois veio o “Malamente”, a coisa rebentou e até acho que mudou de número de telefone e tudo, porque nunca mais consegui falar com ela. Não sei se ela mudou. Na altura era fixe, não sei se continua a ser fixe [risos].

Comigo o que aconteceu foi que a doença acompanhou temporalmente a fama. Então, andava meio chateado com as fotografias e a invasão da privacidade. Nesse sentido, a fama mudou-me porque tornou-me uma pessoa mais chateada, houve uma altura em que era uma pessoa muito mais amarga. Felizmente essa altura passou, as coisas têm tendência a acalmar e felizmente acalmaram. Acho que já estou de volta ao meu “eu” simpático e boa onda.

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