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AFP/Getty Images

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Santos ou megalómanos? As vidas misteriosas de três homens que criaram religiões

Joseph Smith, L. Ron Hubbard e Simão Toco criaram movimentos religiosos que conquistaram milhares de seguidores. Eram carismáticos e sedutores ou paranóicos e megalómanos? Bruno Vieira Amaral responde

O que leva um homem a criar uma religião ou um culto? Vaidade, demência, paranóia, uma demesurada auto-confiança? Ainda mais misterioso: o que levará homens e mulheres a segui-lo, a acreditar na sua divindade ou nos seus alegados poderes, a defendê-lo quando todas as provas aconselham, no mínimo, alguma prudência? Que qualidades pessoais separam o líder que arrasta atrás de si multidões do louco que nem consegue convencer a própria família dos seus delírios? Como é que movimentos religiosos que nascem da imaginação de um único homem sobrevivem ao seu criador? Certos cultos, como certas experiências comunais, parecem desenhados para o silêncio e o isolamento, para se desenvolverem à margem do mundo, mas quando os observamos de perto vemos que a polémica é o seu fermento, os escândalos, o seu adubo, o conflito com o mundo, a sua razão de ser, as fragilidades e as contradições das suas doutrinas, as crateras onde os crentes depositam toda a fé. Mesmo quando de minúsculas seitas passam a gigantescas religiões organizadas, de hierarquias complexas e património infindável, a marca original da polémica nunca as abandona. Na semana passada, falou-se muito em Portugal de um livro polémico, mas um livro verdadeiramente polémico é aquele que, 186 anos após a publicação original, continua a gerar discussões inflamadas entre apoiantes e detractores, como se tivesse sido publicado ontem.

Há quinze dias, a página da Amazon do Livro de Mórmon, o texto sagrado para os fiéis da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, foi invadida por exércitos rivais de combatentes que, de um lado, atribuíam cinco estrelas ao livro, considerando-o uma obra-prima de inspiração divina e, do outro, não lhe davam mais que uma estrela (não podiam dar menos), na senda da apreciação de Mark Twain que o classificou como “clorofórmio impresso.” Só se consegue perceber como é que esta obra continua a gerar paixões capazes de provocar uma muito moderna guerra de recensões quando se conhece a história de Joseph Smith e da religião por ele inventada, o mormonismo.

A História de Joseph Smith

No Man Knows my History – The Life of Joseph Smith (Ninguém Conhece a Minha História – a Vida de Joseph Smith) é precisamente o título da famosa biografia escrita por Fawn M. Brodie, publicada em 1945 e reeditada, depois de uma extensa revisão, em 1970.

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no man knows my history

A 26 de Março de 1830 foi posto à venda, na única livraria da cidade de Palmyra, no Estado de Nova Iorque, um livro que contava a história dos povos pré-colombianos da América do Norte em jeito de saga épica, escrita no estilo grandiloquente da Bíblia do Rei Jaime. Poderia ter sido apenas um romance de aventuras e fantasia, mas rapidamente ganhou o estatuto de livro sagrado. De início, nem o seu autor, um jovem de 24 anos chamado Joseph Smith, terá percebido ao certo o potencial da obra que escrevera.

Nascido a 23 de Dezembro de 1805, no estado de Vermont, Joseph Smith cresceu num período de enorme fervor religioso, o chamado Segundo Grande Despertar, movimento iniciado por volta de 1790 que trouxe muitos fiéis às igrejas tradicionais, levou ao aparecimento de novas seitas e à proliferação de pregadores e profetas que rejeitavam as lições do Iluminismo, dando primazia ao espírito e às emoções. Era um tempo de prodígios e milagres, de promessas celestiais e fraudes bem terrenas, onde pastores itinerantes e falsificadores de dinheiro partilhavam os mesmos trajectos. Era também um tempo de optimismo e esperança com milhares de americanos a rumarem a Oeste em busca do Eldorado. O sonho muitas vezes revelava-se uma miragem e, em vez de prosperidade e terras férteis, encontravam dificuldades, solos rochosos e estéreis e condições tão ou mais duras do que aquelas de que fugiam.

Joseph Smith (1805-1844), fundador da igreja Mórmon

Sem nunca revelar um especial talento para fazer dinheiro, os Smith andavam de terra em terra à procura de oportunidades. Como frequentemente os negócios lhes corriam mal, iam vivendo dos magros rendimentos de professor do pai de Joseph e do duro trabalho na terra. Desde cedo, o rapaz revelou alguma impaciência para esse estilo de vida frugal. Dos antepassados herdara uma imaginação frondosa e uma tendência para a auto-mitificação que tinha conhecido o seu momento alto quando o avô materno conseguiu publicar, perto do final da vida, as suas memórias. No meio de gente humilde e pouco instruída, o livro granjeou ao seu autor e descendência o prestígio intelectual e a aura de diferença que, como único capital da família, era uma espécie de título nobiliárquico.

Depois de muitas mudanças, os Smith acabaram por se fixar numa quinta nos arredores de Palmyra, uma cidade no estado de Nova Iorque e que em 1820 tinha 3,724 habitantes (em 2010, tinha pouco mais do dobro). A cidade, que deve ao seu nome à cidade de Palmira, na Síria, ocupada pelo Estado Islâmico e entretanto resgatada, estava inserida numa área onde a actividade religiosa, a multiplicidade de seitas e a evangelização intensiva lhe valeram a designação de “região consumida” (burned-over district, um termo utilizado pela primeira vez em 1876, no livro de memórias do evangelista Charles Grandison Finney) como se o Espírito Santo já não tivesse mais matéria humana por onde arder. Aquela região tão propensa a profetas e pregadores carismáticos era terra espiritualmente queimada.

Se a história da família de Joseph Smith já pressagiava uma tendência hereditária para o inconformismo religioso, para a rejeição das religiões organizadas e a apetência por uma fé individualista, independente e sem mediações, é provável que as pregações ao ar livre e os grupos itinerantes, gritos de aleluia, crentes a falar línguas, seitas milenaristas, doidos que rasgavam as vestes e outros que nunca as despiam, paladinos do amor livre e anunciadores da segunda vinda de Cristo tenham marcado a imaginação já de si facilmente estimulável de Smith. Ao mesmo tempo, este ambiente de grande intensidade religiosa praticamente incomparável na história dos EUA ensinou-lhe uma lição que haveria de moldar o seu percurso religioso. Os cultos eram tão frenéticos, os sermões tão exaltados e as exigências, mesmo as físicas, eram de tal ordem que, em pouco tempo, os fiéis ficavam exaustos. Era impossível manter aqueles níveis pentecostais de adoração até porque a avalanche de revelações e de auto-proclamados emissários de Deus contribuía para o descrédito geral das igrejas. As seitas desapareciam quase tão depressa como surgiam e deixavam na sua esteira o desejo de uma igreja mais ordenada, de um regresso à razão. Smith, com alma de profeta e argúcia de vendedor, percebeu que a resposta à adoração caótica e fulminante teria de passar pela organização, pela sobriedade e pela ordem.

A Caminho do Livro

Porém, esse momento ainda estava longe. Smith interessava-se por assuntos menos espirituais e mais mundanos, em voga naquela época. Sempre avesso ao trabalho pesado, Smith ganhou fama pela posse de pedras mágicas através das quais supostamente conseguiria localizar fabulosos tesouros enterrados. Como o sonho de um enriquecimento rápido dominava os corações, os mais crédulos não hesitavam em seguir videntes e homens com poderes especiais que, munidos de pedras e outros artefactos, eram profetas profanos entre o saltimbanco, o religioso e o consultor financeiro. Quando a falta de resultados descobria a impostura vinham os processos judiciais e, quando as vítimas eram menos legalistas, os espancamentos por multidões enfurecidas. Em 1826, Smith foi condenado em tribunal por “perturbação da ordem pública” e reconheceu estar envolvido “em artes mágicas e na organização de expedições em busca de tesouros enterrados”. Esta história haveria de ser recuperada pela imprensa de Palmyra alguns anos mais tarde, referindo os hábitos perniciosos daquele rapaz preguiçoso e mitómano, embora de boa índole: “era um rapaz sociável, alegre, imaginativo, um líder nato, mas prejudicado pela escassa educação e pela pobreza extrema”, escreveu Brodie.

A par desses sucessos, com queixas de vítimas das suas patranhas esotéricas e tesouros que teimavam em permanecer ocultos, a mente voraz de Smith entretinha-se a consumir artigos sensacionalistas e especulativos com teorias rebuscadas e bizarras, quase sempre mal fundamentados, sobre, por exemplo, a verdadeira origem dos povos nativos da América. Uma das teses mais populares argumentava que os índios eram descendentes de uma das tribos perdidas de Israel. Num clima de fervor religioso e de autoridade absoluta da Bíblia, a ideia de ligar o povo escolhido de Israel à história do continente americano era muito razoável e bem-vinda. Ora, o Livro de Mórmon era a narrativa dessa migração que, no ano 600 antes de Cristo, levara Lehi e a sua família, de Jerusalém para o território que viria a ser a América. Mais do que um livro profético, era um produto típico (ainda que processado pela mente extravagante de Smith) daquele fervilhante caldo cultural que misturava experimentalismo religioso, liberdade política, conhecimento popular, ânsia de riqueza, pseudo-ciência e pura charlatanice. Smith dizia que, em 1827, recebera a visita do anjo Moroni, o último profeta que tinha contribuído para o Livro de Mórmon, um documento gravado em placas douradas em “egípcio reformado” e que estava enterrado num local desconhecido. Com a inestimável ajuda de Moroni, Smith encontrou as tábuas e também umas pedras mágicas indispensáveis para a tradução do conteúdo. Os pormenores das sessões de “tradução”, durante as quais Smith fixava o fundo de um chapéu que continha as pedras e ditava o livro aos seus diligentes colaboradores, são burlescos, mas pelos vistos não tão burlescos a ponto de destruir a credulidade de alguns, como Oliver Cowdery, David Whitmer e Martin Harris, que testemunharam por escrito a veracidade do conteúdo do livro. Harris, o primeiro escriba, confiava tanto no que Smith lhe dizia que hipotecou a sua quinta para financiar a edição. Além dos três homens, Smith, que conquistara uma sólida reputação de vidente e cujos poderes sobrenaturais eram reconhecidos, contava com vários familiares nas fileiras iniciais de fiéis.

O anjo Moroni, o guardião das placas que deram origem ao Livro de Mórmon, de acordo com os ensinamentos de Joseph Smith

Ter um público que quer acreditar: eis um ingrediente fundamental na criação de um movimento religioso. Os aleijões estilísticos e a cadência monótona não poderiam diminuir o prestígio de uma obra apresentada como documento histórico escrito e traduzido debaixo de inspiração divina. Como romancista, Smith seria apenas um escrevinhador mediano e esforçado. Como profeta, a sua cotação subia consideravelmente porque a autoridade do livro dependia menos da qualidade da escrita do que da vontade dos primeiros fiéis em acreditar no seu conteúdo. Mérito do líder, como refere Brodie: “O seu talento natural de liderança incluía em primeiro lugar uma compreensão intuitiva dos seus seguidores, o que os levou a acreditar que ele era mesmo dotado de capacidades de vidência.”

A 6 Abril de 1830, poucas semanas depois da publicação do livro, Smith fundava a sua igreja, uma organização que hoje conta com mais de quinze milhões de fiéis em todo o mundo. A biografia de Smith mostra a sua demorada evolução e transformação de jovem entusiasmado e um pouco fora da norma em profeta credível. Aproveitava todos os obstáculos para aperfeiçoar o seu ministério. As profecias falhadas, os colapsos financeiros, as dissidências, os conflitos com os irmãos de sangue, o choque entre mórmones e as populações das terras onde tentavam instalar-se, as perseguições, tudo isto foi sendo integrado numa narrativa em constante adaptação, que provava a elasticidade do pensamento de Smith mas também os seus limites. A história das suas visões, por exemplo, foi sujeita a várias alterações. Para efeitos da doutrina eclesiástica, terá sido na Primavera de 1820 que, num bosque perto de casa, enquanto orava e pedia orientação divina para saber qual a religião verdadeira, Smith foi visitado por Deus que lhe disse que todas as religiões eram falsas. Quis saber se deveria juntar-se aos metodistas, mas a resposta foi negativa. Não há provas de que Smith tenha falado sobre essa visão à época. É muito provável que tenha reescrito esta passagem da sua vida numa altura em que a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias já era uma realidade e, como escreveu Fawn Brodie, já tinha saltado definitivamente do mundo da magia para o mundo da religião.

O salto de L. Ron Hubbard, o fundador da Cientologia, terá sido ainda mais radical, visto que passou da literatura de ficção-científica para a religião. Mas o percurso dos dois homens apresenta alguns pontos em comum como se percebe pela leitura de Going Clear – Scientology, Hollywood & The Prison of Belief, do jornalista Lawrence Wright.

O Explorador, o Engenheiro, o Best-Seller e o Guru

L. Ron Hubbard nasceu em 1911, no seio de uma família metodista do Nebraska. Passou a infância no estado de Montana e a adolescência a viajar pelo mundo, a acompanhar o pai que se alistara na Marinha durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1930, ingressou na Universidade George Washington para estudar Engenharia. Este facto haveria de marcar a sua futura carreira enquanto líder espiritual, mesmo sabendo que foi um aluno medíocre e que não concluiu o curso. Nada que transpareça da biografia oficial divulgada pela Cientologia, na qual os elementos biográficos de Hubbard aparecem de tal forma melhorados que levantam suspeitas de doping curricular. No retrato que a igreja faz do seu fundador, Hubbard ainda mal sabia andar e já lia os clássicos, “grande parte da filosofia ocidental, os pilares da literatura inglesa e, de salientar, os ensaios de Sigmund Freud.” Além disso, teria sido nomeado o mais jovem Escuteiro Águia da nação e acumulado um total de 21 distinções antes dos treze anos. Mais tarde, e sempre de acordo com a Cientologia, tornou-se um fotógrafo de excepcional qualidade, um pioneiro da aviação civil e perito em acrobacias aéreas, um explorador intrépido, um viajante incansável, um cartógrafo inovador. É verdade que a juventude de Hubbard foi recheada de peripécias e que nem tudo o que a Cientologia diz é mentira. O método usado é diferente: parte-se de um fragmento verdadeiro e inventa-se uma história (quase) completamente falsa.

L. Ron Hubbard (1911-1986), fundador da Cientologia

Por exemplo, é verdade que, em 1932, Hubbard organizou uma expedição às Caraíbas com o objectivo declarado de filmar paisagens exóticas para os noticiários de companhias cinematográficas e recolher artefactos para posterior venda a museus. Apesar de cada participante ter de entrar com 250 dólares, ele não teve dificuldades em formar uma equipa de cinquenta universitários, fretar um navio e contratar uma tripulação com um capitão, um imediato e um cozinheiro. O seu talento quase sobrenatural para atrair pessoas para as empresas mais disparatadas começava a revelar-se. O resultado da expedição foi tão desastroso como o das caças ao tesouro que Joseph Smith organizara cem anos antes: falta de provisões e de dinheiro, enjoos e desistências forçaram o regresso da escuna à casa de partida, em Baltimore. Hubbard deixou-se ficar em Porto Rico, facto aproveitado pela Cientologia para contar uma história mais feliz. Afinal, a expedição teria servido para recolher espécimenes posteriormente adquiridos pela Universidade de Michigan e pelo Instituto Hidrográfico, que desmentiram essas alegações. Nessa ocasião, afirma a Cientologia, foi atribuída a Hubbard “a condução do primeiro levantamento mineralógico completo de Porto Rico”, outro facto relevantíssimo que curiosamente não é reconhecido por nenhuma instituição oficial dos EUA.

Na mitologia dos cientologistas, esta colecção criativa de factos serve para mostrar um homem multi-facetado, genial, de uma assombrosa inteligência, um cientista a navegar num estado de consciência superior. Nesse aspecto, a mitologia diverge obviamente da de Joseph Smith, um líder escolhido por Deus, um homem de pouca instrução, mas com dons espirituais notáveis (“A Igreja Mórmon exagerou a ignorância do seu profeta, porque quanto menor fosse a sua instrução, mais divino seria o seu livro”, escreveu Fawn M. Brodie). Enquanto Smith criou o seu império a partir de um livro de ressonâncias bíblicas e através da sua aura de profeta, Hubbard, muito de acordo com o ar do tempo em que viveu, inventou uma religião de pretensões científicas. “Não era um profeta, como Maomé, nem divino, como Jesus. Não tinha recebido a visita de um anjo com as tábuas da revelação, como Joseph Smith, o fundador do Mormonismo. Os cientologistas acreditam que Hubbard descobriu as verdades existenciais que são a base da sua doutrina após uma intensa pesquisa – nesse sentido é “ciência””, escreve Lawrence Wright. Anne Archer – actriz que se destacou nos anos 80 em filmes como “Atracção Fatal” ou “O Comboio dos Malditos” e que se tornou um dos rostos da igreja – insiste em diferenciar a Cientologia de outros credos. Para ela, bem como para os restantes fiéis, a Cientologia é ciência e Hubbard não era um “curandeiro”, mas um engenheiro “que codificara os estados emocionais humanos” e que desenvolvera aparelhos capazes de os medir (há uma fotografia famosa, que também está no livro de Wright, que mostra Hubbard a aplicar o seu E-Meter – um aparelho que regista a “actividade electro-dérmica de um ser humano” – a um tomate; os tribunais obrigaram a Cientologia a informar os consumidores de que o E-meter por si só não tem qualquer efeito e que é usado apenas para “fins espirituais”). Não haverá melhor exemplo da tendência “científica” da Cientologia do que a epifania do seu criador. Joseph Smith recebeu a visita do anjo Moroni num cenário adequadamente bucólico, num bosque perto da sua casa. Por sua vez Hubbard acedeu aos mistérios do universo no dia 1 de Janeiro de 1938, sentado na cadeira do dentista e sob o efeito do gás anestético.

Seguindo esta lógica, Dianetics: The Modern Science of Mental Health, o livro publicado em 1950 e que se tornou a bíblia da Cientologia, está mais próximo de um livro de auto-ajuda do que do Velho Testamento. Na altura, Hubbard já era um escritor prolífico cujos contos eram publicados nas chamadas revistas pulp (histórias sensacionalistas, de fraca qualidade literária, mas bastante inventivas e exóticas). Um primeiro esboço de Dianetics foi publicado numa dessas revistas e gerou tanto interesse por parte do público que Hubbard e o seu editor – que acreditava que havia ali algo extraordinário e foi um dos primeiros seguidores do método e cobaia das terapias – resolveram saltar das páginas menores das pulp magazines para o mundo mais respeitável (e rentável) dos livros. Como tinha uma grande facilidade em escrever (ainda hoje é reconhecido pelo Livro do Guiness como o autor mais prolífico da história, com 1,084 obras publicadas), Hubbard rapidamente produziu uma obra muito diferente do que tinha publicado até então. Enquanto escrevia, afirmava aos amigos que aquilo não era religião: “Acaba com a religião… É ciência, meu amigo, ciência”. Só quando lhe perguntavam como é que tinha conseguido escrever o livro em menos de um mês é que cedia um pouco ao misticismo, alegando que o mesmo lhe tinha sido ditado pelo seu espírito-guia, a que chamava a Imperadora. Afinal, tal como Smith, Hubbard sentia necessidade de acrescentar elementos sobrenaturais para reforçar a sua credibilidade. Incrivelmente, era isso que acontecia.

O livro de Hubbard, publicado originalmente em 1950, com os princípios da Cientologia

Após a publicação de Dianetics, em 1950, Hubbard, que se encontrava em Hollywood, onde já trabalhara sem grande sucesso como argumentista nos anos 30, tornou-se um guru, um terapeuta e um líder espiritual. Tudo isto sem os solavancos que se poderiam esperar de uma transformação de escritor série Z em ser iluminado e portador das chaves para uma nova era da humanidade. Vagas, autoritárias e prometendo o acesso a novos patamares mentais, as propostas do livro, que esteve mais de vinte semanas no top do New York Times, eram demasiado apetecíveis para a generalidade da população da Meca do cinema: pessoas emocionalmente instáveis, celebridades e filhos de celebridades com todo o conforto que o dinheiro pode comprar e caídos num lancinante vazio espiritual. Era um terreno fértil em cérebros danificados desde muito cedo pela fama. Não era de estranhar que, de acordo com Wright, a Califórnia fosse um viveiro de místicos de todas as confissões, “teosofistas, rosa-crucianos e vedantistas”. No meio de farsas, crenças alternativas e cultos coloridos, a Cientologia parecia mesmo ciência, um método credível de aperfeiçoamento individual. Fundada em 1954, a igreja foi crescendo e, mais do que isso, atraindo muitas estrelas de Hollywood e usando o sucesso dos seus membros para atrair novos seguidores. Hubbard tinha encontrado os seus fiéis.

Uma parte dessa atracção estava relacionada com a figura de Hubbard. Não sendo belo, a sua presença, tal como a do fundador dos mórmones, era magnética. Claro que, sendo um profeta e pregador, Smith precisava mais do poder dessa presença física do que Hubbard, que se apresentava como um cientista, um filósofo, um homem do conhecimento e não necessariamente um orador. No entanto, tinha esse poder que, por vezes, era desconcertante. Paul Haggis, o realizador, argumentista e ex-membro da igreja, conta isso em “Going Clear”. Também o comportamento de Joseph Smith baralhava por vezes as expectativas. Quando o seu nome já se tornara famoso e homens e mulheres calcorreavam centenas de quilómetros para se juntar à igreja, ficavam surpreendidos por encontrar um homem “normal”, que gracejava, brincava e se gabava das suas proezas na luta livre, ou seja, um homem que apesar de ter recebido informação valiosa de um anjo não perdera a jovialidade do rapaz que organizava caças ao tesouro. Isso valeu-lhe críticas e, em certas ocasiões, manifestações de desagrado dos que lhe eram próximos. Apesar de uma estrutura rígida e, de certa forma, autoritária, foram muitos os momentos em que Smith enfrentou contestação interna, o que não sucedeu com Hubbard. No entanto, ambos os “profetas” tiveram ávidos defensores do seu legado que se esforçaram por limpar todas as máculas das respectivas biografias, dando assim continuidade a movimentos que pareciam tão dependentes do carisma e liderança dos seus fundadores.

[veja aqui o trailer do documentário sobre a Cientologia, “Going Clear”, de Paul Haggis]

“Todas as religiões enfrentam uma crise existencial após a morte do seu carismático fundador. Através do seu trabalho missionário, o apóstolo Paulo manteve vivo o Cristianismo após a crucificação de Jesus. Brigham Young resgatou a Igreja dos Santos dos Últimos Dias depois da morte de Joseph Smith liderando o êxodo Mórmon em direcção ao Utah. Génios religiosos estão sempre a aparecer, mas o teste histórico recai sobre os seus sucessores, cuja glória será sempre ofuscada pela do fundador”, escreveu Lawrence Wright. A Cientologia também enfrentou esse dilema quando Hubbard morreu, no início de 1986. Se, como afirmou Wright, a igreja era a “geografia da mente de Hubbard”, seriam os seus ensinamentos suficientemente fortes para que a organização resistisse ao seu desaparecimento? David Miscavige, um seguidor que colaborava com o líder desde os anos 70, achou que sim, assumiu a liderança da Cientologia e, entre escândalos e polémicas, sem a dimensão do mormonismo, mas com um considerável impacto mediático, trouxe-a até ao século XXI.

Um profeta angolano

Contra algumas expectativas, o Tocoísmo também chegou ao século XXI, embora neste caso ao seu fundador, o angolano Simão Gonçalves Toco, em 1984, não tenha sucedido uma liderança capaz de dar um impulso significativo ao movimento, como refere F. James Grenfell no artigo “Simão Toco: An Angolan Prophet”, publicado no Journal of Religion in Africa, em Maio de 1998. Hoje, a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo tem pouca ou nenhuma expressão fora de Angola e da diáspora angolana. No entanto, isso não retira qualquer interesse à figura do profeta Simão Toco, aos extraordinários factos da sua biografia e ao curioso sincretismo do movimento que criou. Aliás, o desconhecimento que rodeia Simão Toco e o Tocoísmo é sintomático da ignorância e desinteresse gerais sobre o nosso próprio passado colonial.

Simão Gonçalves Toco nasceu a 24 de fevereiro de 1918, nos arredores de Maquela do Zombo, perto da fronteira de Angola com o Congo. Entre 1926 e 1933 frequentou a escola da Missão Baptista de Quibocolo. Criada em 1899 por três membros da Sociedade Missionária Baptista, a Missão fundou a Igreja Baptista de Quibocolo em 1910, com cinco convertidos, um número que na altura em que Simão Toco começou a estudar já era aproximadamente de duas centenas de pessoas. Na década seguinte, o crescimento acentuou-se, tornando evidente a falta de pessoal habilitado a ministrar estudos bíblicos. Por esse motivo, e graças aos seus bons resultados escolares, Simão foi enviado para Luanda, onde concluiu os estudos primários na Missão Evangélica e posteriormente fez o 2º ano no Liceu Salvador Correia. Nesse período de três anos em Luanda frequentou a igreja Metodista (curiosamente, Smith, Hubbard e Toco tiveram, em algum momento dos seus percursos, contacto com os metodistas).

Em 1937 regressou à sua terra, onde deu aulas na Missão e organizou cursos nocturnos para adultos. Um ano mais tarde foi transferido para a missão de Bembe, ainda na província de Uíge, onde permaneceu durante quatro anos. Em 1942, tendo supostamente casamento marcado com a filha do secretário da missão, Toco partiu para Léopoldville, capital do Congo Belga. O seu regresso a Angola só aconteceria sete anos depois em circunstâncias muito peculiares.

Em Léopoldville, ao serviço da Missão Protestante (Baptista), dava estudos bíblicos, colaborava com várias instituições de socorro mútuo que apoiavam sobretudo a comunidade imigrantes angolanos e formou um coro que, segundo Grenfell, actuava regularmente nas igrejas da cidade, onde já se sentia a influência do Kimbanguismo, um movimento fundado em 1921 por Simon Kimbangu, um auto-proclamado “profeta de Deus”.

Simão Toco era um membro activo da igreja, uma figura já respeitada e que começava a exibir os dons de liderança espiritual que mais tarde seriam reconhecidos por todos. Porém, em 1949, dá-se uma mudança no percurso daquele homem. Os motivos por trás da decisão que haveria de mudar a sua vida e, mais tarde, o panorama religioso angolano não são claros, mas logo em 1946, numa conferência das missões protestantes presentes na África central e ocidental, Toco pedira em oração a orientação do Espírito Santo. A resposta não foi imediata. A epifania só aconteceria três anos depois.

Se é verdade que só homens com características excepcionais podem inventar religiões, não é menos verdade que a lenda dessas qualidades excepcionais é alimentada, mantida e melhorada pelos seus seguidores. Talvez seja essa a lição que os percursos destes três homens, e de outros como eles, nos ensinam: nem santos, nem vigaristas, os profetas nascem onde há gente disposta a acreditar neles.

Antes disso, a vontade de “conhecer verdadeiramente a explicação da Bíblia”, levou-o a encomendar publicações da Sociedade Torre de Vigia, das Testemunhas de Jeová, e, num gesto revelador de alguma ousadia ou ingenuidade, começou a usar os livros como base das suas aulas de estudos bíblicos: “Quando comecei a explicar na minha classe, naquela missão as pessoas acharam aquilo muito interessante e começaram a avisar os seus amigos.” Em pouco tempo, a igreja conheceu um crescimento extraordinário. Este facto, a par dos métodos heterodoxos de Toco, gerou alguma preocupação junto dos missionários protestantes que o alertaram para o perigo de transmitir “falsos ensinamentos” e incentivar a leitura de “livros proibidos.”

À primeira vista, tratava-se de um caso típico de início de um movimento de secessão no interior de uma igreja baptista, fenómeno relativamente comum na história das várias denominações protestantes. No meu livro Aleluia! (FFMS, 2015), contei a história de João Viegas, um pastor que após uma vida inteira ao serviço da igreja Maná, fundou a sua própria igreja. Casos semelhantes são quase banais na história do protestantismo. No entanto, o que diferenciava Toco e o movimento então em fase embrionária era a heterogeneidade das suas influências, misturando com alguma inspiração (talvez divina) e criatividade o “emocionalismo” e a relação com o Espírito Santo de movimentos proféticos como Kimbanguismo e o milenarismo das Testemunhas de Jeová, cuja ênfase nos livros apocalípticos da Bíblia marcou profundamente o pensamento de Toco.

Quer Toco tenha percebido ou não, era evidente que esta combinação de elementos e a sua crescente influência na comunidade teriam de conduzir ao seu afastamento da Igreja Baptista. Sob a acusação de adultério (Toco teria casado “espiritualmente” com uma rapariga do coro e teria incentivado os seus seguidores a proceder de modo idêntico), o profeta e os que o acompanhavam nas aulas de estudo bíblico foram expulsos da igreja: “Ora nós como já éramos membros de igreja e conhecíamos a palavra de Deus em vez de abandonar não abandonamos e continuamos as rezas dentro das nossas casas. Alguns iam a minha casa e os outros continuaram nas suas casas.” Foi num desses encontros domésticos que se deu o momento decisivo na história do movimento tocoísta, assim relatado na página oficial da igreja: “após um desentendimento com a Missão Baptista de Léopoldville, [Toco] decide convocar uma vigília de oração na sua residência (rua de Mayenge, nº 159). Naquele momento, segundo contam os presentes, sentiram um vento e começaram a tremer, realizando milagres invocando algumas passagens bíblicas. Este momento é assumido pelo tocoísmo como o momento em que o Espírito Santo desceu em África e a igreja cristã foi “relembrada”, de forma a retomar o caminho da igreja original do tempo dos Apóstolos. É portanto a data fundacional do movimento tocoísta.”

Os efeitos da ruptura com a Missão foram além do aspecto religioso. Os missionários apresentaram queixa às autoridades belgas e, a 22 de Novembro de 1949, Toco e muitos dos seus seguidores foram presos e acusados da prática de “rituais de uma doutrina místico-religiosa de natureza hierárquica, que anunciava a chegava de uma nova ordem sob o reinado de um novo Cristo que poria fim a todas as autoridades e poderes vigentes. Tomariam então o poder e restaurariam a justiça.” A 10 de Janeiro de 1950, foram entregues às autoridades portuguesas que perceberam logo o potencial subversivo de um tal movimento. Nos anos seguintes, tudo fizeram para o enfraquecer. Independentemente do conteúdo da mensagem (e, no contexto do colonialismo, uma igreja independente, liderada por um africano, seria sempre subversiva), Toco tinha o capital mais valioso e problemático: homens e mulheres dispostos a escutar o que tinha para dizer.

Líder Religioso ou Líder Político?

Nasciam assim duas ideias essenciais para o desenvolvimento e compreensão do Tocoísmo: um, interno, que era a ideia da perseguição; o outro, externo, que era uma leitura política do movimento de Toco. A ideia de inimigos externos e de um clima persecutório enquanto factores de coesão de pequenos grupos religiosos não era uma novidade. Está enraizada na história do Cristianismo desde os tempos da igreja primitiva aos movimentos religiosos do século XIX, como o Mormonismo. Na biografia de Joseph Smith, Fawn Brodie escreve que desde cedo “o jovem profeta aprendeu a usar as perseguições como um meio de se identificar com os grandes mártires.” O destino fez-lhe a vontade de uma maneira que não podia prever. A 27 de Junho de 1844, enquanto aguardava julgamento na prisão de Carthage, na sequência de um conflito com dissidentes da igreja Mórmon, Joseph Smith e o seu irmão e seguidor Hyrum foram assassinados. Numa fase inicial da IURD, o bispo Edir Macedo e os outros responsáveis pela igreja também alimentaram a narrativa das “teorias persecutórias”, como se viu nos primeiros e conturbados tempos em Portugal.

Com receio de criar um mártir, as autoridades portuguesas não eliminaram Simão Toco, mas dispersaram os membros do seu grupo, enviando uns, incluindo o próprio Toco, para o colonato do Vale do Loge, onde trabalharam nas plantações de café, outros para São Tomé e outros ainda para diferentes pontos de Angola. Durante a década de 50, com o intuito de neutralizar a influência do profeta, Toco esteve em Luanda, foi transferido para Caconda e depois para Jau, na província da Huíla, no Sul de Angola. Quando a Guerra Colonial começou, em 1961, Toco estava como cabo faroleiro no farol de Ponta Albina. Esta era a forma de o vigiar ao mesmo tempo que o mantinham afastado dos seus seguidores. Só que mesmo naqueles anos de separação, o movimento não parou de crescer. Ou seja, a ausência física do líder não comprometeu o culto e a perseguição até poderá ter sido decisiva na ligação dos fiéis ao Tocoísmo, reforçando o prestígio e a autoridade do fundador.

Notícia no Diário de Luanda de 17 de Outubro de 1961

Uma das explicações para esse fenómeno reside no facto de a mensagem de Toco apelar a pessoas que já tinham alguma conhecimento da Bíblia. Havia uma dimensão pentecostal e profética no movimento, mas o próprio Toco fazia questão de não se pôr num plano acima dos outros discípulos e de refrear alguns dos excessos carismáticos, preferindo enfatizar questões de disciplina interna (quer dos indivíduos, quer da organização): “Enquanto Toko [sic] acentuava uma disciplina individual quase puritana como meio de alcançar futuras mudanças, [o profeta congolês Simon] Lassy enfatizava o poder da água benta para destruir a feitiçaria.” (História de Angola, Douglas Wheeler e René Pelissier, Tinta-da-China). A liderança, o discurso e a influência real de Toco tinham uma carga política, voluntária ou contingente, que não era ignorada por ninguém. A Aliança Evangélica de Angola tentou trazer os tocoístas para a sua órbita, o grupo marxista de Viriato da Cruz procurou obter o apoio de Toco e as Testemunhas de Jeová, sabendo da ligação primordial do profeta com esta denominação, também o sondaram. Porém, Toco rejeitou sempre qualquer aproximação de outros grupos, políticos e religiosos. De um ponto de vista político, essa autonomia também acarretava um significado.

Em 1961, com os ataques dos movimentos de libertação e os rumores que davam conta do envolvimento de Toco com os “terroristas” e outros que circulavam na imprensa estrangeira e que falavam na hipótese de o líder espiritual ter sido assassinado pelos portugueses, a máquina de propaganda do regime montou uma operação que visava mostrar à população africana que o seu representante oficioso estava do lado dos portugueses.

A 17 de Outubro, o Diário de Luanda publicou excertos de uma entrevista que Simão Toco tinha dado à televisão (RTP) e às emissoras de rádio (Emissora Nacional e Rádio Clube Português):

“Nós somos portugueses. Não somos estrangeiros. Continuaremos a ser portugueses e temos de amar Portugal”, rezava a manchete. No interior, fotografias de Simão Toco em Ponta Albina e um relato autobiográfico em que Toco acabava por agradecer às autoridades portuguesas o tratamento recebido na altura em que foi expulso do Congo. O registo da notícia era apoteótico:

“Assim ia terminar a sensacional entrevista. Mas Simão Toco manifestou o desejo de transmitir a sua mensagem em ‘Kicongo’ aos tocoístas e falou, nos mesmos termos da mensagem em português, somente de um modo mais expressivo, quase na atitude de um místico. Depois, ainda, pegou na sua viola e cantou uma canção portuguesa, acompanhando-se a si próprio, e, finalmente, o hino nacional.

Salientamos que Simão Toco e os tocoístas, no decorrer dos acontecimentos desta Província, não mostraram nunca por palavras ou atitudes, que estivessem mancomunados com os terroristas ou lhes dessem qualquer apoio formal.

Agora Simão Toco condena formalmente o terrorismo e proclama aos tocoístas a sua qualidade de português. Assim desaparece mais uma lenda, uma fantástica e miserável cabala dos nossos inimigos. Tudo se desfaz como bolas de sabão.”

Este golpe de comunicação era o reconhecimento da influência social de Toco e de quão infrutíferos tinham sido os esforços para a limitar. As autoridades portuguesas quiseram utilizá-lo como instrumento de propaganda, mas, pouco tempo depois, perceberam que o risco de deixar Toco à solta a espalhar a sua mensagem, mesmo que não estivesse associado a grupos políticos ou aos movimentos de libertação, era suficientemente elevado para justificar novo exílio: “Para muitos dos que participaram nestas seitas religiosas, o presente era mau e só um futuro milenarista e o poder do profeta negro encerravam a promessa de um tempo melhor.” (História de Angola). Essa capacidade de atracção junto dos africanos levou a que, em 1963, Simão Toco fosse enviado para a Ilha de São Miguel, onde passou os onze anos seguintes como faroleiro nos Ginetes.

[Simão Toco nos Açores, com a família]

Em 1974, Toco regressa finalmente a Angola onde é recebido em êxtase pelos seus seguidores. O Tocoísmo continuava vivo. Tão vivo que, em breve, seria igualmente perseguido pelo regime angolano, já depois de uma iniciativa do próprio Toco de mediar negociações entre os líderes dos principais movimentos políticos. Em Junho de 1976, a Organização da Mulher Angolana, de inspiração marxista e associada ao MPLA, exigiu a captura e reeducação nos campos de trabalho de kimbanguistas, tocoístas e Testemunhas de Jeová (juntando as principais influências de Toco e o seu próprio movimento), e acusou Toco de estar ligado à FNLA, de Holden Roberto. Mas só as Testemunhas de Jeová foram oficialmente banidas. Ainda assim, o tabernáculo dos tocoístas foi destruído e Toco teve de passar para a clandestinidade durante 14 meses. Por altura da sua morte, a 1 de Janeiro de 1984, o Tocoísmo ainda não era uma religião oficialmente reconhecida pelo governo angolano, o que só veio a acontecer em 1988. Foi nesse período que, no entender, de Grenfell e de outros estudiosos, faltou ao Tocoísmo um líder unificador que aproveitasse o excepcional legado espiritual de Simão Gonçalves Toco e desse ao seu movimento a dimensão universal que o Kimbanguismo entretanto atingiu.

O Carisma dos Crentes

Num breve artigo académico (O Líder é o Profeta, o Profeta é o Líder. Continuidades e descontinuidades da liderança carismática no contexto angolano), o antropólogo Ruy Llera Blanes socorre-se da noção de carisma para fugir da armadilha que cria uma continuidade entre a dimensão religiosa e política de um profeta como Simão Toco. Usa quatro categorias de carisma que, no fundo, reflectem as várias dimensões em que o fundador do Tocoísmo se movia quer aos olhos dos seus seguidores, quer aos olhos dos seus adversários (religiosos e políticos): carisma psicológico (o seu magnetismo pessoal), carisma espiritual (o carácter profético da sua mensagem), carisma político (o reconhecimento do seu peso na sociedade angolana) e o carisma organizacional (capacidade de estruturar um movimento institucional). Em diferentes graus, Joseph Smith, L. Ron Hubbard e o próprio Simão Toco manifestavam estas diferentes qualidades carismáticas. Talvez sejam características comuns a todos os homens que, ao longo da história, julgando-se escolhidos por Deus ou acreditando piamente serem portadores de conhecimentos até então inacessíveis, resolveram criar os seus próprios movimentos religiosos. Outros com o mesmo desejo de fama, a mesma vontade de poder, a mesma megalomania, idênticos delírios e visões, tornaram-se líderes políticos. Nos relatos das suas epifanias, mais do que súbitas e originais revelações, vemos espelhadas as suas formações intelectuais e espirituais e as culturas religiosas e até políticas das suas épocas. A prova maior disso foi a relativa facilidade que tiveram em encontrar homens e mulheres dispostos a acreditar nas suas mensagens, a sacrificar-se em nome delas e a continuar a divulgação muito depois do desaparecimento físico dos profetas. Se é verdade que só homens com características excepcionais podem inventar religiões, não é menos verdade que a lenda dessas qualidades excepcionais é alimentada, mantida e melhorada pelos seus seguidores. Talvez seja essa a lição que os percursos destes três homens, e de outros como eles, nos ensinam: nem santos, nem vigaristas, os profetas nascem onde há gente disposta a acreditar neles.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor, e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015. Escreveu o ensaio “Aleluia!”, para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, sobre fé e religião.

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