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Sem ser patrono, São João tem a festa e o proveito

A 24 de junho, feriado municipal na cidade do Porto, celebra-se o Dia de São João. Mas, ao contrário do que muitos pensam, o santo não é o padroeiro da Invicta. Nem nunca o foi. A padroeira é outra.

Todos os anos, a 23 de junho, os portuenses saem à rua para celebrar o seu santo favorito — São João. Na noite (e madrugada) que antecede o feriado municipal, o Porto enche-se de cor, música e martelinhos, que animam até de madrugada as ruas, ruinhas e ruelas da Invicta. Porém, apesar da popularidade que goza entre os portuenses, São João nunca teve direito ao título de padroeiro. Esse lugar foi há muito atribuído a Nossa Senhora de Vandoma.

Já ouviu falar? A não ser que seja do Porto, é muito provável que não.

O culto mariano sempre teve especial força na Invicta, ao ponto de as antigas muralhas da cidade (a românica e a gótica ou fernandina), há muito desaparecidas, terem chegado a estar repletas de imagens da Virgem. “Sob as mais variadas invocações”, esta “figurava nos nichos ou capelas que havia nas antigas portas e postigos das duas muralhas da cidade”, como refere Germano Silva no livro Porto: Nos Lugares da História. Uma dessas imagens era a de Nossa Senhora de Vandoma, que encimava a porta com o mesmo nome, e cuja história remonta ao século X, numa altura em que a região se encontrava nas mãos dos mouros.

O culto mariano no Porto é "uma tradição que assenta, curiosamente, numa grande parte dos casos, em imagens de Nossa Senhora envoltas em lendas, que remontam à longínqua época da ocupação romana".
Germano Silva, em "Porto: Nos Lugares da História"

No ano de 999, ao fim de quase dois séculos de domínio muçulmano, uma armada composta por nobres gascões (ou gascos) entrou na cidade do Porto determinada a libertá-la dos invasores. Diz a lenda que, a liderar o grupo, iam D. Moninho Viegas, D. Sesnando e o seu irmão, D. Nónego, antigo bispo de Vêndome (ou Vandoma), uma região que fica atualmente no centro de França. Curiosamente, D. Nónego viria a tornar-se, mais tarde, bispo do Porto, cargo que ocuparia até 1015.

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Ao longo dos séculos, a porta foi sofrendo várias alterações. Ao nicho, onde foi colocada a imagem, foram depois acrescentadas duas colunas e um frontão. Mais tarde, foi construída uma varanda com um pequeno altar onde, todos os domingos, era celebrada uma missa.

Uma vez expulsos os mouros, os gascões dedicaram-se a reedificar a cidade, parcialmente destruída. Foram erguidas fortes muralhas e, na porta principal do Porto, foi colocada uma imagem da Virgem, que D. Nónego tinha trazido consigo de Vêndome. A imagem, conhecida por Nossa Senhora de Vandoma, acabaria por dar nome à porta, que passaria a ser conhecida por Porta de Vandoma. À cidade, foi dado o título de Civitas Virginis, ou seja, “Cidade da Virgem”.

A Porta de Vandoma, que ficava onde existe atualmente uma calçada com o mesmo nome, foi destruída em 1855. A imagem original que, de acordo com a lenda, tinha sido esculpida no século X, não sobreviveu à demolição, tendo sido substituída por uma estátua em calcário policromado datada do início do século XIV. Esta foi então transferida para a Sé do Porto — primeiro para os claustros, para a Capela de S. Vicente e, depois de muitas trocas e baldrocas, para o lugar onde se encontra atualmente, no braço esquerdo do transepto.

A imagem de Nossa Senhora de Vandoma encontra-se atualmente na Sé do Porto

A lenda dos gascões. Verdade ou ficção?

A lenda da Armada dos Gascões e de Nossa Senhora de Vandoma é antiga e bem conhecida dos portuenses, mas há quem questione a veracidade da história (e até a origem da imagem). Na primeira década do século XX, o historiador João de Barros escreveu na sua Geographia de Entre-Douro-e-Minho-e-Trás-os-Montes que “dizem alguns que a Cerca Velha [muralha românica] do Porto, onde está a Sé, nunca foi tomada pelos mouros, mas que eles estavam numa fortaleza que está a quatro léguas da Cidade, a que chamam Bandoma”.

De acordo com o investigador José Ferrão Afonso, esta “Bandoma”, uma importante fortaleza datada dos finais da Alta Idade Média, ficava localizada na estrada que vai para Penafiel. Ou seja, perto do Porto. A Porta de Vandoma teria, simplesmente, adotado o nome da povoação mais próxima — Bandoma –, que teria depois passado para a imagem da Virgem.

Numa artigo publicado na revista O Tripeiro, fundada em 1908 e editada desde 1981 pela Associação Comercial do Porto, José Ferrão Afonso põe ainda em causa a identidade da imagem. Segundo o investigador, em 1569, a imagem que se encontrava na Porta de Vandoma era a de Nossa Senhora das Neves, cujo culto data pelo menos do século XV. Por esse motivo, Ferrão Afonso deixou a questão: “Será possível que a tão venerada imagem de Nossa Senhora de Vandoma seja, afinal, de Nossa Senhora das Neves?”.

Dúvidas à parte, em 1954, D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, institui Nossa Senhora da Vandoma como padroeira da cidade, por ocasião do Ano Jubilar de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal. Quase três décadas depois, em 1981, passou a padroeira principal, de acordo com o site da Diocese do Porto.

Nossa Senhora de Vandoma sempre foi padroeira?

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Não. O primeiro padroeiro da cidade do Porto foi São Vicente, santo padroeiro de Lisboa. No patronato, seguiu-lhe São Pantaleão, padroeiro dos médicos, entre os séculos XVI e XIX.

De acordo com Hélder Pacheco, autor de Porto. O Livro do S. João, São Pantaleão tornou-se patrono do Porto depois de a peste ter chegado à cidade. “A população atribuiu o facto de a cidade ter sido salva da peste à presença da relíquia de São Pantaleão“, referiu em entrevista à Lusa.

Segundo a tradição, a relíquia foi levada para o Porto em 1453 por cristãos arménios fugidos de Constantinopla. Esta terá sido transportada de barco e primeiramente depositada na Igreja de São Pedro de Miragaia. Em 1499, foi transladada para a Sé do Porto.

Se assim é, porque é o feriado municipal do Porto não calha na altura das festas de Nossa Senhora de Vandoma, em outubro? A razão é simples e até bastante democrática.

24 de junho, um feriado muito democrático

Em 1911, o Governo Provisório da República Portuguesa, encarregue de governar o país até que fosse aprovada uma nova Constituição, decretou que fossem estabelecidos os feriados municipais de todo o país. Coube então às câmaras municipais decidir os respetivos feriados, que deveriam ser escolhidos de entre os dias que representassem “factos tradicionais e característicos do município ou circunscrição”, como era referido no decreto.

Na Câmara Municipal do Porto, o assunto foi discutido pela primeira vez a 19 de janeiro. Nessa reunião, o vereador Henrique Pereira de Oliveira sugeriu que se fixasse o dia 24 de junho como feriado do Porto, uma vez que era nessa data que se realizavam as chamadas Festas de Verão, uma tradição muito antiga que remonta ao tempo dos antigos pagãos e das comemorações do Solstício de Verão.

A sugestão, porém, não agradou à maioria dos vereadores presentes. Alguns consideravam não estar em condições de tomar uma decisão definitiva, enquanto outros se limitavam a achar a ideia disparatada. Os dias foram passando, e o feriado continuou por decidir. Até que, numa das muitas reuniões de câmara, António Joaquim de Sousa Júnior, inspirado por “um alto princípio democrático”, como ele próprio fez questão de salientar, sugeriu que a câmara não devia tomar a decisão sem consultar a opinião da população.

"Esta votação deu-nos uma certeza: a de que quer a Câmara quisesse quer não quisesse ele [o povo] no dia 24 de junho não está resolvido a trabalhar." 
Jornal de Notícias

O Jornal de Notícias, “folha eminentemente popular” fundada em 1888, disponibilizou-se então para recolher os “votos” dos portuenses. Para encorajar os votantes, a publicação decidiu sortear dez prémios (cinco monetários e cinco objetos de arte), cujos vencedores foram anunciados no mesmo dia que o resultado do “referendo”. Apesar da sugestão avançada por Henrique Pereira de Oliveira em reunião de câmara, não foram sugeridas quaisquer datas, ficando a escolha inteiramente ao cargo dos leitores.

A 5 de fevereiro, o Jornal de Notícias fez manchete com a votação dos portuenses. Em primeiro lugar ficou o dia 24 de junho, Dia de São João, com 6.565 votos (no total, participaram no “referendo” 11.639 leitores), que passou então a ser feriado no Porto. “Esta votação deu-nos uma certeza: a de que quer a Câmara quisesse quer não quisesse ele [o povo] no dia 24 de junho não está resolvido a trabalhar e pediu aquilo em que soberanamente comanda, que é na sua alegria, no seu amor, na sua mocidade”, escreveu o Jornal de Notícias.

Em segundo lugar, ficou o dia 1 de maio, Dia do Trabalhador, seguido do dia 8 de dezembro, Dia da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal (juntamente com Santo António). Entre os mais de 11 mil bilhetinhos enviados para a redação do jornal, houve ainda quem pedisse um feriado em honra da tomada da Bastilha (14 de julho) ou do aniversário de Teófilo Braga (24 de fevereiro), presidente do Governo Provisório da República Portuguesa. Mais democrático do que isto era difícil.

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