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Alguns compositores das correntes “nacionalistas” da viragem dos séculos XIX-XX gozam de grande apreço nos respectivos países – Grieg na Noruega, Smetana, Dvořák e Janáček na República Checa, Albeníz, Falla e Granados em Espanha – mas nenhum desfruta do estatuto de herói nacional que Sibelius tem na Finlândia e não há finlandês com maior projecção internacional (pelo menos até à aparição dos “finlandeses voadores” no campeonato mundial de ralis). Mas se é verdade que ele recorreu frequentemente ao Kalevala, a magna recolha da poesia épica nacional, como fonte de textos e inspiração, e compôs o poema sinfónico Finlândia, que se converteu num segundo hino nacional, nem tudo em Sibelius está firmemente ancorado no seu país natal.

Sibelius, em 1913

Ao contrário de Grieg, Dvořák ou Falla, não há na sua música melodias colhidas no folclore finlandês ou nele inspiradas, e a maior parte das suas canções recorre a textos em sueco. Até o nome que escolheu para si nada tem de finlandês: foi baptizado como Johan Christian Julius Sibelius, mas os pais chamavam-lhe Janne, o apelido de um tio falecido; na sua juventude, Johan/Janne descobriu uns cartões de visita do tio, em que este afrancesara o nome para Jean, e passou a usá-los como se fossem seus.

Primeiros anos

Quando Sibelius nasceu, em 1865, na cidade de Hämmeenlinna, a Finlândia era um grão-ducado que fazia parte do império russo, ainda que gozando de alguma autonomia. Sibelius começou por estudar violino, mas a pressão familiar empurrou-o para um curso de Direito em Helsínquia.

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Música em família: Jean Sibelius (violino), com os irmãos Linda (piano) e Christian (violoncelo)

A atracção da música foi mais forte e Sibelius acabou por ingressar no Instituto Musical de Helsínquia, onde estudou entre 1885 e 1888 e onde os seus dotes no violino foram considerados muito promissores por alguns professores. No ano seguinte foi estudar para Berlim, mudando-se, em 1890, para Viena, onde esperava poder ter aulas com Brahms e Bruckner, o que nunca se concretizou. Chegou a concorrer a um lugar de violinista na Filarmónica de Viena, mas foi rejeitado. O sonho de se tornar num violinista virtuoso acabaria por dissipar-se e o foco de Sibelius dirigir-se-ia para a composição. Há quem sugira que terá canalizado a sua frustração, anos depois, em 1903, para a composição de um concerto para violino de extravagante exigência técnica – a versão que hoje é tocada resulta de uma revisão realizada em 1905, que eliminou as partes mais acrobáticas. É a única obra concertante de Sibelius (há duas Serenatas e seis Humoresques para violino e orquestra, mas são musicalmente irrelevantes) e não há grande violinista que não o inclua no seu repertório, apesar de a obra ter os seus detractores – o musicólogo Antoine Goleá via nele “o absoluto vazio musical” e “trechos de execução difícil, mas tragicamente convencionais”. Mesmo não subscrevendo o duro julgamento de Goléa, há que reconhecer que o virtuosismo esfuziante de alguns trechos soa gratuito.

Foi ainda em Viena que o interesse de Sibelius pela música tradicional e lendas finlandesas começou a impor-se. A sua primeira obra inspirada no Kalevala, Kullervo, começaria a ser composta ainda em Viena.

Sibelius em Viena, 1891

Música enraizada em lendas

A sinfonia para soprano, barítono, coro e orquestra Kullervo estreou em Helsínquia em 1892 sob a direcção do compositor. No Kalevala, Kullervo é uma personagem de vida tumultuosa e dotada de poderes mágicos, que raras vezes usa para propósitos benignos, dado o seu carácter rebelde, impulsivo e vingativo. Em rapaz, é vendido como escravo e encarregue de pastorear um rebanho de vacas – porém, farto de ser atormentado pela mulher do seu dono, transforma as vacas que aquela estava a ordenhar em ursos, que prontamente a estraçalham.

A maldição de Kullervo, por Akseli Gallen-Kallela, 1899

Ainda em 1892, Sibelius compôs En saga (Uma lenda), poema sinfónico que, embora não tenha um programa associado, se inspirou na mitologia nórdica – desta feita a fonte não foi o Kalevala, mas o Edda da Islândia.

A Suíte Lemminkäinen (1895), que volta a colher inspiração no Kalevala, reparte-se em quatro quadros, entre os quais está o célebre O cisne de Tuonela, que tem sido comparado ao Prélude à l’après-midi d’un faune, de Debussy, composto um ano antes. Mas enquanto o Prélude é solar e sensual, O cisne de Tuonela, após um início ameno, vai revelando a sua faceta lunar e inquietante e o quadro Lemminkäinen em Tuonela (um dos cumes de toda a obra de Sibelius) é ainda mais sombrio e tenso.

[“O cisne de Tuonela”, da Suíte Lemminkäinen:]

O assunto justifica o negrume da música: Lemminkäinen é um misto de xamane, herói guerreiro, bardo e Don Juan que, numa das suas aventuras, desce a Tuonela, o reino subterrâneo de Tuoni, o deus dos mortos, e tenta matar (ou capturar) o cisne de Tuoni. Falha o golpe e é morto pelo filho de Tuoni e o seu corpo esquartejado é atirado ao rio do mundo subterrâneo (um equivalente escandinavo do Lete greco-romano). A mãe de Lemminkäinen, uma poderosa feiticeira, consegue reunir os bocados do filho e, através de um encantamento, devolve-o à vida.

A mãe de Lemminkäinen, por Akseli Gallen-Kallela, 1897

O poema sinfónico A Filha de Pohjola (1906) envolve a personagem central do Kalevala, Väinämöinen, que, aliás, foi o primeiro nome em que Sibelius pensou para dar título à peça. Väinämöinen é um misto de ancião sábio, bardo e mágico, que se dirige às terras sombrias do norte em busca de mulher. Após peripécias várias, pede em casamento a “filha de Pohjola” (Pohjola não é uma pessoa mas um lugar mítico no norte da Finlândia), que lhe impõe como condição a execução de várias tarefas impossíveis, entre as quais está a construção de um navio a partir dos restos da sua roca de fiar. Graças às suas artes mágicas, Väinämöinen está prestes a terminar o navio, mas a intervenção de espíritos malignos faz o machado do herói escorregar e feri-lo no joelho, o que o leva a desistir do desafio e prosseguir viagem.

A história de Väinämöinen, antes do encontro com a filha de Pohjola: tríptico O mito de Aino, por Akseli Gallen-Kallela, 1891

Luonnotar (1913), um poema sinfónico para soprano e orquestra, relata a história de Luonnotar (ou Ilmatar), a “virgem do ar”, uma divindade aérea que um dia mergulha no oceano e cujo joelho emerso é eleito por um pato para chocar os seus ovos – estes acabam por estilhaçar-se nas ondas, dando origem ao sol, à lua e às estrelas.

A mitologia finlandesa está também presente na derradeira grande peça orquestral do compositor, o poema sinfónico Tapiola (1926). É um inquietante fresco que evoca o “domínio de Tapio”, o espírito das florestas do Kalevala, e que alterna entre um torpor solene e misterioso e convulsões telúricas, num original registo de impressionismo ascético, que se diria obra de um Debussy exilado nas florestas setentrionais. Sibelius delineou assim a atmosfera da obra: “Erguem-se, por todo o lado, as lúgubres florestas setentrionais, primevas e misteriosas, ruminando sonhos selvagens; no seu seio habita o poderoso deus das florestas e, na sombra, os espíritos do bosque tecem encantamentos”. Ironicamente, Tapiola foi composto durante uma estadia do compositor em Itália.

[Tapiola, pela Sinfónica de Gotemburgo e Neeme Järvi:]

A fidelidade de Sibelius às lendas finlandesas conheceu uma excepção no poema sinfónico Aallatoret (As Oceânides, de 1913-4), inspirado na mitologia greco-romana: as Oceânides são ninfas do Mediterrâneo e Sibelius fá-las vogar em música apropriadamente líquida – a ondulação vai ganhando ímpeto, pouco a pouco e acaba por fundir-se numa vaga que faria as delícias de Garrett McNamara.

Aqueles a quem a música de Sibelius desperte a curiosidade pelo universo do Kalevala dispõe, desde 2013, de uma tradução integral e realizada a partir do finlandês, por Ana Isabel Soares & Merja de Mattos-Parreira (D. Quixote).

A causa finlandesa

Além da sua paixão pela Finlândia mítica e ancestral, Sibelius foi também um fervoroso defensor da independência da Finlândia real do seu tempo – e nenhuma obra sua espelha isso melhor do que o poema sinfónico Finlandia (1900), que viria, pela associação à causa nacional, a converter-se numa das suas obras mais populares, ainda que Sibelius a visse como “uma peça bem insignificante quando comparada com as outras”.

Finlandia veio ao mundo integrada na música para o melodrama Islossningen i Ulea älv (O degelo no Rio Ulea), de 1899, mas Sibelius reaproveitaria trechos desta obra para o concerto de encerramento de um evento de recolha de fundos organizado pelos jornais finlandeses – fundos que, oficialmente, se destinariam a uma caixa de previdência dos jornalistas, mas na realidade visavam manter viva a liberdade de imprensa face ao apertar da censura das autoridades russas. Foi desta música para uma cerimónia da imprensa (é difícil imaginar título mais anódino e burocrático), que ilustrava musicalmente diversos episódios da história finlandesa, que Sibelius extraiu o quadro A Finlândia desperta e o transformou no que hoje conhecemos como o poema sinfónico Finlandia. Porém, até à independência do país, obtida em 1917, após a Revolução de Outubro, Finlandia foi apresentado sob títulos mais neutros, como A pátria ou Impromptu, para iludir a censura czarista. Um trecho da obra ganharia vida autónoma com o título de Finlandia-hymni, que recebeu uma letra em 1940 e se converteu numa espécie de hino nacional oficioso. Finlandia não se conta entre as obras-primas de Sibelius, mas no campeonato dos hinos nacionais, venceria sem esforço.

Sibelius já em 1893 dera um contributo para a causa finlandesa com a composição de música de cena para uma peça que celebrava a história da Karelia, um território que tem sido disputado ao longo dos séculos entre a Finlândia e a Rússia e que os finlandeses vêem como berço da nação. Foi daí que Sibelius extraiu a popular Suíte Karelia.

Pioneiros na Karelia, quadro de Pekka Halonen, 1900

Outras músicas

Embora Sibelius seja lembrado pelas sinfonias e poemas sinfónicos, deixou uma apreciável produção de música de cena, que é, como acontece com quase todos os compositores, de qualidade desigual, ainda que mantenha sempre algum refinamento e não incorra em vulgaridades. Os melhores momentos estão em Pelléas et Mélisande (1905), que suplanta a (bem mais célebre) música de cena que Fauré compôs para a mesma peça de Maeterlinck: o n.º5, “Junto ao mar”, é uma paisagem marítima digna do melhor que Debussy ou Britten fizeram no género e o n.º12, “A morte de Mélisande”, tem um soberbo dramatismo.

[“Morte de Mélisande”, de Pelléas et Mélisande:]

A música de cena para A tempestade, de Shakespeare (1925), vale sobretudo pelo número correspondente à tempestade propriamente dita, que põe em movimento turbilhões avassaladores.

Sibelius deixou quase uma centena de canções, nas quais usou maioritariamente textos em sueco, opção que pode parecer contraditória num artista de fortes convicções nacionalistas. Não pode esquecer-se, porém, que seis séculos de domínio sueco tinham imposto a língua sueca em muitos lares finlandeses, incluindo aquele onde Sibelius cresceu – o pequeno Jean só começou a aprender finlandês aos oito anos. Também a maioria dos poetas que Sibelius admirava eram suecos – como Gustav Fröding e Ernst Josephson – ou eram finlandeses que escreviam em sueco – como Johan Ludvig Runeberg, o “poeta nacional finlandês”, do qual musicou 24 poemas.

Entre os 117 números de opus de Sibelius não se conta nenhuma ópera, o que não quer dizer que o compositor não tenha sido atraído pelo género. Chegou a trabalhar em Veneen luominen (A construção do navio), sob a influência de Richard Wagner, mas o que seria uma monumental ópera inspirada na mitologia nórdica, na linha de O anel do Nibelungo, acabou por ser abandonada quando Sibelius se desiludiu com as técnicas composicionais de Wagner. Nem tudo se perdeu, já que alguma da música foi reaproveitada em Lemminkäinen. O projecto de compor uma ópera sobre The raven, de Edgar Allan Poe, também não iria longe.

30 anos de silêncio

O empenho de Sibelius na causa nacional e o reconhecimento do seu valor artístico levaram a que, em 1897, o Senado finlandês, com o fito de lhe dar tempo para compor, lhe atribuísse uma bolsa, que, 10 anos depois, foi convertida numa pensão vitalícia. Nem esta nem o dinheiro que fez com as muitas peças de circunstância e de salão que compôs e publicou, impediu Sibelius, de passar boa parte da vida enredado em dívidas, problema a que não seriam estranhos o seu escasso talento como gestor financeiro e as suas crises de alcoolismo. Em 1926, a pensão sofreu um aumento substancial, coincidindo com um afluxo regular de rendimentos relativos a direitos de autor, o que lhe permitiu, aos 61 anos, livrar-se finalmente das dívidas. Ironicamente, 1926 foi também o ano das últimas composições de Sibelius – a Sinfonia n.º7 e Tapiola. Daí em diante, remeter-se-ia ao silêncio, compondo mais algumas breves peças de circunstância e revendo partituras antigas. Durante alguns anos, estrebuchou para compor uma oitava sinfonia, cuja estreia seria sucessivamente adiada, para exaspero dos maestros que a aguardavam.

Sibelius junto à sua casa em Ainola, década de 1930

Pelo que se presume da correspondência que manteve com o seu copista, Sibelius terá chegado a completá-la ou esteve perto disso, mas a partir de 1933 deixou de fazer menção à sinfonia, cuja partitura terá queimado, com outras obras, na década de 1940.

Sibelius foi confinando-se cada vez mais a Ainola, a sua casa junto ao Lago Tuusula, numa região então relativamente remota da Finlândia, pelo que, na ausência de novas obras, a sua popularidade no estrangeiro, que atingira o auge nos anos 20 e 30, foi esbatendo-se. Ainda assim, quando celebrou o 90.º aniversário recebeu 12.000 telegramas e uma caixa de charutos de Churchill. Faleceu em 1957, com 91 anos, em Ainola, rodeado das florestas que tanto amava.

Ainola, a casa onde Sibelius viveu entre 1904 e 1957

Um compositor mal-amado?

É difícil encontrar entre os grandes compositores um que tenha despertado julgamentos mais demolidores entre a crítica e os seus pares do que Sibelius.

A má-vontade contra Sibelius encarniçou-se, inevitavelmente, contra a sua peça mais popular, a Valse triste, que é injustamente acusada de sentimentalismo fácil. Não há, porém, nada de piegas nesta peça impregnada de melancolia, que ondula num torpor narcoléptico, evocando com justeza a situação que pretende ilustrar. Há que lembrar (quer os apreciadores quer os detractores da obra o esquecem ou ignoram) que a peça faz parte da música de cena para Kuolema (A morte), de 1903, e corresponde ao quadro em que uma viúva moribunda, vê aproximar-se um vulto no qual julga reconhecer o marido e rodopia com ele numa valsa em câmara lenta, ignorando que o seu par é, afinal, a Morte.

[“Valse triste”, pela Filarmónica de Berlim e Herbert von Karajan:]

No clássico The lives of the great composers, Harold C. Schonberg pergunta: “Como pode o compositor da Valse triste […] ser levado a sério?”. Umas linhas abaixo, Schonberg admite que, nos seus melhores momentos, Sibelius se exprimia numa voz própria e conclui com um elogio envenenado: “merece ocupar um lugar honroso entre os compositores menores”.

Uma das obras mais mal recebidas foi a Sinfonia n.º4 (1911), que marca uma inflexão em direcção a uma sonoridade mais despojada. As reacções da imprensa local à sua estreia em Boston, em 1913, são elucidativas: “um emaranhado das mais miseráveis dissonâncias” (Globe); “um lamentável fiasco” (American); “resmoneios dissonantes e lúgubres, que, em geral, não conduzem a lado algum” (Record); “o compositor ingressou na escola ultra-moderna das progressões bizarras e dos ritmos irrequietos […] Muito do público saiu para o átrio em busca de ar, o primeiro de que tinham podido desfrutar desde que o concerto começara” (Daily Advertiser).

A origem nórdica de Sibelius motivou piadas depreciativas – Donald Tovey classificou o Rondo do Concerto para violino como “uma polonnaise para ursos polares” – e o seu excessivo apreço pela vodka também – Benjamin Britten comentou, a propósito de um trecho da Sinfonia n.º6, que “ele devia estar bêbedo quando compôs aquilo”.

Gustav Mahler, numa carta à mulher, Alma, foi cáustico: “Ouvi umas peças de Sibelius […] Uma das peças era kitsch do mais vulgar, temperado com uns certos toques orquestrais ‘nórdicos’, à guisa de ‘molho nacional’. São todos iguais, em todo o lado, estes génios da música nacionalista”.

A opinião de Mahler sobre Sibelius viria a suavizar-se e os dois compositores chegaram a encontrar-se, mas a divergência estética entre ambos era insanável: Sibelius declarou que prezava na sinfonia “a severidade formal e a lógica profunda que criava uma conexão interna entre todos os temas”, ao que Mahler replicou: “Não! A sinfonia deve ser como o mundo, deve abarcar tudo”.

Sibelius, década de 1950

As sinfonias por Maazel

As sete sinfonias, compostas entre 1899 e 1924, são, com justiça, a mais divulgada e estimada faceta da obra de Sibelius. Após algum olvido em meados do século XX, o prestígio de Sibelius voltou a crescer e só a Decca possui no seu acervo cinco gravações integrais de referência das sinfonias, por Anthony Davis, Colin Davis, Herbert Blomstedt, Vladimir Ashkenazy e Lorin Maazel. Foi a gravação integral de Maazel à frente da Filarmónica de Viena (Decca), complementada por Karelia e Tapiola e realizada entre 1963 e 1968, que a Decca remasterizou (a 24 bits/96 KHz) e reeditou numa caixa de 4 CDs.

A caixa com as sete sinfonias de Sibelius (Decca)

A caixa inclui um disco Blu-ray Audio contendo todo o material dos 4 CDs em alta definição, para quem possua equipamento de hi-fi, sala e ouvidos para tais refinamentos. Poderá haver quem estranhe tanto empenho em realçar a qualidade de som de umas gravações a rondar o meio século de idade, mas a engenharia de som da Decca atingira à data um extraordinário apuro, como foi já comentado em O crepúsculo do capitalismo, em três óperas e um prólogo, a propósito das gravações de O anel do Nibelungo por Solti, feitas pela mesma orquestra e no mesmo local, a Sofiensaal de Viena. E se na gravação mais antiga (1963), com a Sinfonia n.º1, ainda se pode apontar falta de subtileza aos trechos mais plácidos e aspereza aos metais, nas seguintes o som é excepcional em termos de pujança e presença.

Lorin Maazel, que estava então em início de carreira (gravaria uma segunda integral Sibelius para a Sony e manteria uma agenda de concertos repleta até 2013, um ano antes da sua morte), aborda as sinfonias de forma seca, decidida e enérgica, com tempos relativamente rápidos.

[Lorin Maazel por altura das gravações das sinfonias de Sibelius]

A audição das sete sinfonias em sequência cronológica permite apreciar a evolução da estética de Sibelius: a n.º1 (1900) soa como uma versão musculada e seca de Tchaikovsky, a n.º3 (1907) já cortou definitivamente os vínculos com o Romantismo, a n.º4 (1911) ergue um universo sonoro sem par, misterioso, rarefeito, desolado, de uma grandiosidade desumana – François-René Tranchefort, no Guide de la musique symphonique, atribui-lhe, com justeza, um “dramatismo ascético”. A n.º7 (1924) estrutura-se num único andamento e desemboca num final de austera majestade, que Maazel restitui na perfeição.

Um tesouro secreto

Apesar de representarem uma parte apreciável da produção de Sibelius, as suas canções para voz e piano são muito pouco divulgadas e raros são os cantores não escandinavos que as gravam ou incluem no programas de recitais. É certo que a língua constitui uma séria barreira para cantores e para ouvintes de paragens mais meridionais, mas, uma vez transposto o obstáculo linguístico, as canções de Sibelius revelam-se, em muitos casos, dignos pares das mélodies que Debussy e Ravel estavam a compor pela mesma altura.

A caixa com as canções de Sibelius

Foi um gesto ousado, da parte da Decca, ter promovido, em 1981, a gravação das 93 canções de Sibelius, maioritariamente pelo barítono finlandês Tom Krause e pelo pianista Irwin Gage, com alguma ajuda da soprano sueca Elisabeth Söderström e do pianista Vladimir Ashkenazy (um entusiasta da causa Sibelius).

O barítono Tom Krause

Mas a ousadia foi recompensada quando as Canções completas, editadas em 1984, foram distinguidas com um Gramophone Award no ano seguinte. Mais de três décadas depois, continua a ser uma gravação de referência (na interpretação e no som), que a Decca reeditou numa caixa de 4 CDs, cujo livrete inclui os textos cantados, na língua original e na tradução inglesa, uma benesse que vai tornando-se rara nestes dias de reedições que se anunciam como “económicas” e se revelam “avaras”.

Embora o nível geral seja consistentemente elevado, os op.36, 37 e 38 destacam-se pela concentração de canções geniais. As três primeiras do op.38 são obras-primas, com a n.º1, “Noite de Outono”, a evocar os quadros desolados e trágicos de Caspar David Friedrich, a n.º 2 “Numa varanda sobre o mar”, a combinar despojamento, fatalismo e dramatismo exacerbado, a n.º3, “Na noite” a desenhar uma inquietante paisagem nocturna.

É a Krause que calham as canções mais admiráveis, mas Söderström tem oportunidade para mostrar as suas qualidades em “Uma libélula” op.17 n.º 5. Vale também a pena escutar como Sibelius suspende o tempo em “A cidade silenciosa” op.50 n.º5 ou pinta um cenário de melancolia e lentidão majestosa para o op.61 n.º1 cujo primeiro verso é “Tão lentamente como o céu do entardecer se esvazia de púrpura”.

O essencial de Sibelius numa só caixa

Para quem não tenha tempo e paciência para construir aos poucos a sua discoteca Sibelius, os 14 CDs da Sibelius Edition da Deutsche Grammophon, reúnem, por um preço convidativo, o essencial do compositor, em gravações que vão de 1957 a 2005.

A caixa com as gravações feitas entre 1957 e 2005

As sinfonias são repartidas entre Leonard Bernstein com a Filarmónica de Viena (n.º1 e 2), Okko Kamu com a Sinfónica da Rádio de Helsínquia (n.º3) e Herbert von Karajan com a Filarmónica de Berlim (n.º4-7). Bernstein é invulgarmente lento, mas nunca soa arrastado e confere pathos e imponência wagneriana ao II andamento da Sinfonia n.º2.

A caixa inclui praticamente todos os poemas sinfónicos de Sibelius e parte substancial da sua prolífica (e nem sempre indispensável) produção de música de cena, com interpretação confiada maioritariamente a Neeme Järvi e à Sinfónica de Gotemburgo, complementado por Vladimir Ashkenazy, Neville Marriner, Horst Stein e Jussi Jalas. Os pontos mais altos estão nos poemas sinfónicos Luonnotar, que faz exigências desmedidas à soprano, mas que a finlandesa Soile Isokoski, supera com brio, e Tapiola, ambos com direcção de Järvi.

O Concerto para violino está confiado a Anne-Sophie Mutter, com a Staatskapelle Dresden, dirigida por André Previn, numa leitura de perfeito domínio técnico e que realça o carácter glacial e inóspito da partitura.

A Sibelius Edition consagra um CD às canções para voz e piano, com interpretações divididas entre os baixos finlandeses Kim Borg e Tom Krause. Borg tem uma voz imponente mas pesada e pouco maleável e as gravações, datadas de 1957, têm uma sonoridade encaixotada, sem ar. Krause, captado em 1959 e 1967, é uma autoridade indiscutível neste repertório, mas o som não é muito melhor do que o de Borg, pelo que os interessados nas canções farão melhor em procurar o registo integral de 1981 por Krause e Söderström.

Sibelius em gravações históricas

A caixa Great performances da Decca reúne em 11 CDs, por um preço reduzido, gravações históricas (a maioria em mono e quase todas com mais de meio século) que se encontravam descatalogadas. É uma reedição mais dirigida a especialistas em Sibelius ou a fãs dos intérpretes aqui representados do que ao ouvinte médio, o que não impede que possa proporcionar iluminação e prazer a este último.

A caixa com algumas das melhores interpretações das obras de Sibelius

O item mais apelativo é a integral das sinfonias por Anthony Collins, com a Sinfónica de Londres, gravada entre 1952 e 1955. Collins tem uma abordagem electrizante e nunca perde o foco: a sua Sinfonia n.º1 tem poucos rivais em vigor e dramatismo e mesmo na n.º7, de natureza estática, Collins consegue instaurar uma sensação de tensão e propulsão. Não há momentos frouxos ou dispersos nestas sete sinfonias despachadas com tempos rápidos (mas sem precipitação) e a única reserva provém de a gravação ser mono e não possuir o brilho, presença e espacialidade usuais nas gravações da Decca a partir do final dos anos 50. Ainda assim – e isto é válido para quase todos os registos da caixa – a qualidade é surpreendente para a idade das fitas e há que tirar o chapéu aos engenheiros de som Kenneth Wilkinson e Gordon Parry, ajudados, é certo, pelas excelentes acústicas do Kingsway Hall e do Walthamstow Assembly Hall, em Londres. Embora tenha sido gravado em 1950, nos estúdios da Decca, o som da leitura (irrepreensível) do Griller Quartet para o Quarteto de cordas op.56 Voces intimae (a única peça relevante de música de câmara de Sibelius), não é menos admirável.

Um dos principais atractivos da caixa Great performances está no resgate à poeira das gravações de canções pelas sopranos Kirsten Flagstad (em 1958, com a Sinfónica de Londres dirigida por Øivin Fjelstad) e Birgit Nilsson (em 1965, com a Wiener Opernorchester dirigida por Bertil Bokstedt).

A soprano norueguesa Kirsten Flagstad

Poucos dos arranjos das canções, que originalmente se destinavam a voz e piano, são de Sibelius, mas os orquestradores, embora sem renome, obtiveram excelentes resultados (que, aqui e ali, fazem lembrar as canções orquestrais de Richard Strauss). Como seria de esperar, os programas dos recitais de Flagstad e Nilsson dão ênfase aos op.36, 37 e 38.

[“Var det en dröm?” (“Foi um sonho?”) op.37 n.º4, por Jussi Björling]

A caixa deixa de fora alguns dos poemas sinfónicos e da música de cena que figuram na Sibelius Edition da Deutsche Grammophon, mas em compensação oferece duas versões do concerto para violino (com Jan Damen e Ruggiero Ricci como solistas) e sinfonias “repetidas” por diversos maestros. A mais preciosa das sinfonias “repetidas” é a n.º2 gravada em 1958 pela Sinfónica de Londres, sob a direcção de Pierre Monteux, que consegue dar coesão aos trechos aparentemente fragmentários e combina precisão, vitalidade e um formidável “sentido de propósito”.

Após ouvi-la, torna-se difícil dar crédito ao compositor e crítico Virgil Thomson, que  classificou a Sinfonia n.º2 como “ordinária, auto-indulgente e mais provinciana do que é possível descrever”.

Quando, a partir da Sinfonia n.º4, o estilo de Sibelius quebrou os vínculos ao Romantismo e foi tornando-se mais austero e despojado, passou a ser acusado de secura e avareza – o que levou o compositor a retorquir que, enquanto os outros compositores preparavam cocktails, ele estava empenhado em oferecer ao público água pura.

Com estas caixas, qualquer um pode, por uma módica quantia, dessedentar-se sempre que queira com esta água cristalina, de travo ligeiramente metálico, proveniente de lagos cintilantes entre florestas sombrias.