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(Este artigo foi originalmente publicado em setembro de 2016)

“Star Trek” fez 50 anos, que é como quem diz: o futuro chegou à meia-idade. Foi a 8 de Setembro de 1966 que o mundo viu pela primeira vez as pontiagudas orelhas do senhor Spock – e o espaço nunca mais foi o mesmo.

Originalmente uma série de televisão que esteve no ar na NBC durante três anos e 79 episódios, o universo e as personagens criadas por Gene Roddenberry foram, assumidamente, uma das inspirações de George Lucas para “Star Wars”. Depois, em 1977, o sucesso do primeiro filme dos Skywalker abriu caminho para que algo como “Star Trek” também pudesse, em 79, chegar ao cinema. Hoje, a ressurreição de ambos foi entregue nas mãos do mesmo feiticeiro: JJ Abrams.

Há muitos, muitos anos, portanto, numa galáxia nada distante, que “Star Trek” e “Star Wars” disputam mais do que uma mera semelhança onomástica. Um e outro desenharam boa parte das nossas fantasias futuristas. E, embora o mundo não pare por causa de uma estreia de “Star Trek” como faz por “Star Wars”, não faltam por aí trekkies indefectíveis para fazer a saudação do “live long and prosper”, dois dedos para cá e dois para lá, e baterem-se pelos méritos da trupe do capitão Kirk. Quem é, realmente, o melhor? Vamos à guerra das estrelas, a verdadeira, batalha a batalha.

A abertura

Comecemos pelo óbvio: o princípio. Uma e outra série têm aberturas mágicas, daquelas de pôr plateias, imediatamente, a sonhar. São a actualização ao espaço sideral do “Era uma vez…” e transportam esse mesmo poder hipnótico original. A de “Star Wars” reza assim: “A long time ago, in a galaxy far, far way…”, que, além de encerrar essa curiosa informação de que os acontecimentos que vamos ver de seguida tiveram lugar no passado, e num passado longínquo, e não no futuro que instintivamente associamos à ficção científica, lançam depois o título do filme, a música de John Williams e o prefácio com tudo o que precisamos de saber antes de começar a assistir ao novo episódio em gloriosas letras amarelas, subindo tela acima, até desaparecerem entre as estrelas.

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Já a de “Star Trek” enche menos o olho, mas tem mais que se lhe diga no conteúdo: enquanto vemos a Enterprise deslizar suavemente entre estrelas e planetas, a voz do capitão debita-nos a histórica epigrafe: “Espaço: a última fronteira. Estas são as viagens da nave espacial Enterprise. A sua missão contínua: explorar novos mundos; procurar novas formas de vida e novas civilizações. Ir corajosamente aonde antes nenhum outro homem foi.” Nestes breves segundos, Gene Roddenberry serviu de bandeja duas linhas magistrais ao coração da cultura popular: a primeira e a última. No inglês original: “Space: the final frontier”, “To baldly go where no man has gone before”. Não é para todos.

Vencedor: Star Trek

As naves

Vamos lá ver: isto é tudo muito bonito, mas a razão primeira e elementar para uma pessoa se sentar a ver um filme com extraterrestres aos tiros uns aos outros nas profundezas do espaço sideral não é, propriamente, a capacidade que possa ter de retratar os nossos dramas quotidianos. No essencial, o que um tipo quer ver são as naves. Mostrem-nos as naves e a gente, depois, logo conversa. Um e outro franchise têm um porradão delas – “Star Wars” em particular, com as suas intrépidas esquadras de X-Wings e Tie Fighters – mas toda a gente sabe que, quando falamos do capitão Kirk e do senhor Spock, falamos da Enterprise e que, quando falamos de Luke Skywalker e Han Solo, falamos da Millenium Falcon. Qual a melhor?

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A USS Entreprise e um Star Destroyer

Enfim, tendo em conta os nossos vastos conhecimentos em aeronáutica e a indisponibilidade das marcas para um test drive que tirasse as teimas, o coração vai puxar-nos para o lado da Enterprise. É verdade que é incalculável o valor sentimental associado à Millenium Falcon, mas convenhamos que, do ponto de vista do design, não é mais interessante do que uma bolacha chipmix gigante (e não estamos certos de que bolachas chipmix gigantes possam atingir velocidades assim tão espectaculares no espaço).

A Enterprise tem o mérito de ter uma silhueta inconfundível e intemporal, e de impor o respeito por requerer um exército de tripulantes. Enquanto a Millenium Falcon pede apenas piloto e copiloto, a Enterprise parece ter um funcionário para tudo: um liga os piscas, o outro olha pelos espelhos, o seguinte vê o nível do óleo, o mais à esquerda zela pelo ar condicionado, o da direita mantém o rádio sintonizado, enfim – não esquecendo a tropa toda dos engenheiros que habita na parte de baixo da nave, onde é sempre o bom e o bonito para recuperar dos tiros adversários e dar mais potência à traquitana (USS Traquitana, se faz favor).

Vantagem: Star Trek

Os ETs

Segunda razão para vermos filmes de ETs no espaço aos tiros uns aos outros? Os ETs, muito bem. Quando uma pessoa deixa o seu jogo de futebol, a sua telenovela, a sua criança, o seu pokémon, para olhar para uma fita de ETs, o que é que quer ver? O ET mais espectacular. Em “Star Wars”, embora normalmente não pensemos nisso, toda aquela rapaziada não passa dum batalhão de ETs. É que não há ali um moço duma Brandoa, duma São João da Madeira, duma cintura industrial – é tudo de planetas distantes, onde cresceram alimentados sabe-se lá a quê.

Spock e Yoda: bate na palma da mão

Spock e Yoda: bate na palma da mão

Ainda assim, uns são mais ETs do que outros e, nesse capítulo, não dão hipóteses. Basta pensar no pequeno e sábio Yoda, no grande e gelatinoso Jabba, no metrossexualnuncadeusmelivre do Chewbacca. Para não ir mais longe. Tem cada um a sua aparência bem diferenciada, a sua forma de falar, as suas virtudes e limitações. Já em “Star Trek”, ao que parece, ser-se ET significa ter-se uma cabeça mais moída do que a do Luisão (donde, agora que falamos nisso, sempre nos pareceu, com efeito, estar a querer sair um ET). ET de “Star Trek” que se preze, não importa de que planeta venha, tem um cabeçorro disforme e cheio de matulos, desincentivando, de resto, a ancestral prática da miscigenação por essa galáxia afora (depois, queixem-se da sustentabilidade dos sistemas da segurança social).

Vantagem: Star Wars

A música

Segunda batalha: a banda sonora. Essa arte mágica da música que nos faz ver imediatamente imagens, enésima vantagem do cinema sobre a vida, rasto ou prenúncio de formidáveis sequestros emocionais. Mais uma vez, estamos perante dois belíssimos exemplares. Mas o excelente trabalho de Alexander Courage nos anos 60, no genérico da série original, depois continuado por Jerry Goldsmith e James Horner, entre outros, no cinema, não tem culpa de John Williams ter escrito para “Star Wars”, pura e simplesmente, a banda sonora mais inconfundível de sempre. Dos créditos de abertura à “Marcha Imperial”, não vale a pena lutar contra o óbvio. A força é forte em John Williams. E ainda está por vir o Jedi da pauta que faça melhor.

Vencedor: Star Wars

As armas

Nem vale a pena começar a conversa. “Star Wars” tem o sabre de luz; “Star Trek” tem o phaser, que é uma pistola que parece fruto do amor impossível entre um secador de viagem e uma serra tico-tico. Paciência. Amanhã há mais.

Phaser e Sabre de Luz: um deles mata com mais pinta

Phaser e Sabre de Luz: um deles mata com mais pinta

Vantagem, mas bota vantagem nisso: Star Wars

As babes

“Star Trek” e “Star Wars” são dois mundos muito masculinos e fica aqui desde já lavrado em acta o nosso protesto. No passado, tudo o que “Star Trek” nos deu foi meia dúzia daquelas senhoras andróginas, enfiadas dentro do fatinho unissexo da Frota Estelar, e muito bem sentadinhas num canto da ponte de comando da Enterprise com direito a uma deixa por série (geralmente, algo da profundidade dramática de um: “Capitão! Estamos a detectar interferências electromagnéticas no campo de forças!”).

Já “Star Wars”, deu-nos Carrie Fischer em biquíni, acorrentada a Jabba the Hutt, e achou que já chegava – como se isso não fosse apenas a ténue compensação pelo facto de, até então, termos levado sempre com Carrie Fischer vestida até às orelhas e com um penteado que redundava em duas grandes circunferências, uma de cada lado da cabeça, lembrando um doce conventual com creme de ovo ou uma espécie de super headphones com leitor de DVD e tostadeira para bagels incorporados.

Nas reinstalações de cada uma das séries, “Star Wars” continuou, mais ou menos, no mesmo registo; já “Star Trek” teve o bom gosto de dar um uniforme com sainha às meninas da Enterprise. Não sabemos que tal se adapta a vestimenta à ausência de gravidade, mas saudamos a libertadora inovação. Mary Quant chegou, enfim, ao espaço.

Vantagem: Star Trek

O look

Hugh Hefner, o senhor Playboy, levou o robe de chambre para fora da chambre, isto é, do quarto propriamente dito; “Star Trek” levou o pijama. Quem diria que, um dia, o Espaço estaria por conta de uma tropa de adultos vestidos com uma espécie de fato de mergulho sem botija de oxigénio? Disponíveis em apenas três cores, as primárias, estes adereços capazes de transformar em estrumpfe a mais curvilínea engenheira aeroespacial, têm o sex appeal do burquini, mas em pano mais ordinário.

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Vá lá, a sério…

Valha-nos “Star Wars”, onde um tipo pode ir para o espaço em blusão de cabedal, ou, em chegando a jedi, optar pelo hábito de monge franciscano (que poupa uma data de tempo de manhã a pensar em combinações). Acima de tudo, viva a liberdade. Por uma Via Láctea onde não pareçamos todos o coro dos pequenos cantores da Figueira da Foz lá do planeta deles.

Vantagem: Star Wars

As personagens

“Star Wars” parecia sobre Luke Skywalker, mas afinal era sobre Anakin, que também era Darth Vader. Entre uma coisa e outra, Han Solo roubou cenas, Yoda roubou cenas, C-3PO e R2-D2 roubaram cenas, o novo BB-8 levou tudo com ele. Mas Obi-Wan também era fundamental, e o imperador, e agora Rey, e Finn, e Poe, e, claro, Kylo Ren. Mesmo esquecendo (e não é preciso grande esforço) toda a galeria de figuras de segunda linha lançada nos episódios I a III, chegam e sobram as personagens icónicas em “Star Wars”.

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Kirk é um bom nome, mas Skywalker… Enfim, é Skywalker

“Star Trek”, que deveria ser sobre Kirk, é sobre Spock, o homem genial e exemplar com quem aprendemos que Vulcano não era apenas uma marca de esquentadores. Mas não há muito mais. Há Scotty, McCoy, o senhor Sulu, até o vilão Kahn, aqueles a quem a nova vida do franchise teve o bom senso de voltar, mas, no fim do dia, será que as reconheceríamos pela simples silhueta, como as de “Star Wars”? “Star Trek” tem uma grande personagem – o Spock de Leonard Nimoy – e só ele poderia ter alguma hipótese num frente a frente com Darth Vader.

Vantagem: Star Wars

A força

Findo o fogo-de-artifício, a ficção científica tem de ser sobre alguma coisa. E aí “Star Wars” tem uma profunda mitologia onde “Star Trek” é pobre ou omissa. O tema da república e do restabelecimento do equilíbrio dos poderes na galáxia, a predestinação dos cavaleiros jedis, o misticismo da força, a luta entre o bem e o mal travada, não necessariamente no campo de batalha, mas onde ela é realmente jogada ao mais alto nível, que é dentro de cada homem, tudo isto faz de “Star Wars” terreno muito mais fértil do que “Star Trek”.

Atrás da sua aparência sisuda, que quase tomamos por séria ou credível, “Star Trek” tem, na verdade, muito menos para mostrar. Vivemos num universo aparentemente pacificado, governado pela Federação dos Planetas Unidos, e onde só pontualmente eclodem conflitos que a Frota Estelar corre a solucionar. Age-se de acordo com uma moral aparentemente simples e indisputada, consonante com a nossa cultura judaico-cristã.

O esquematismo da história de fundo revela a origem televisiva do produto: “Star Trek” era, e foi e, na verdade, já se sabe que voltará a ser, um “seriado”, escrito em episódios de 50 minutos com plots fechados: casos, aventuras, as “viagens” da Enterprise a que se refere a epígrafe inicial. Como as viagens de Gulliver que foram uma das inspirações de Roddenberry. Falta-lhe o que deveria ficar no fim de cada aventura: as personagens com espessura, os passados, o mundo, o sentido da vida – que é aquilo que todas as grandes sagas tentam explicar.

Vantagem: Star Wars Resultado final: Star Trek: 3 – Star Wars: 6

A experiência global

“Star Wars” é de outra galáxia, mas algo em “Star Trek” o mantém num muito digno segundo lugar nesta longa corrida ao Espaço. Veja-se como se segurou taco a taco até ao ponto seis desta guerra – algo ali continua a justificar a devoção de milhões de fiéis.

Gene e George: estiveram, bem, miúdos, muito bem

Gene e George: estiveram bem, miúdos, muito bem

Passeiem pela net, se puderem, e revejam algumas cenas da série original: é preciso respeitar um franchise que fez um caminho tão longo desde a série z a orçamentos finalmente compatíveis com os do rival. No seu estilo low budget, a ter de viver frequentemente no interior da Enterprise, com os actores parados numa ponte de comando onde assistem a quase todos os acontecimentos num grande ecrã que é como que um super-skype tamanho familiar, soube explorar expedientes interessantes como as viagens no tempo, a claustrofobia do interior das naves, os mundos que não vemos e apenas pressentimos.

Já leva 13 filmes, quatro séries de televisão e até uma versão em desenhos animados. Indicador e médio para cá, anelar e mínimo para lá: “Live long and prosper”, dizemos nós, que ainda hoje sabemos fazer o cumprimento (sabemos mesmo). O mundo é um lugar melhor enquanto houver Spocks, Yodas e crianças a crescerem com eles.

Alexandre Borges Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).

Carlos F. Monteiro é infografista freelancer e ilustrador de ocasião