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Se, por volta de 1720-1730, se se fizesse uma sondagem entre a elite intelectual e a comunidade musical germânica sobre quem eram os maiores compositores vivos, é provável que o nome mais frequentemente mencionado fosse Georg Philipp Telemann. Em 1728, Johann Christoph Gottsched apontava Telemann, Handel e Bach como os três mestres nascidos em solo alemão. Os compositores Johann Mattheson, Johann Joachim Quantz e Johann Adolf Scheibe e o musicólogo Friedrich Wilhelm Marpurg elogiaram Telemann e citaram composições suas, em diversos géneros, como paradigmas a seguir. É verdade que Telemann publicou numerosas colecções de peças, o que lhe conferiu uma notoriedade com a qual Bach dificilmente poderia rivalizar.

Telemann em gravura de Georg Lichtensberger, c. 1745

Todavia pouco tempo depois da sua morte, em 1767, a vasta obra de Telemann caiu no esquecimento. Depois, quando a música barroca começou a ser recuperada, Telemann foi vítima da “má imprensa”, nascida quiçá de uma vontade de reparar a injustiça que foi a subvalorização de Bach pelos seus contemporâneos, e assistida pela ignorância, pelo preconceito e pelo impulso pueril para “tomar partido” e ver o mundo como um confronto clubístico, em que para enaltecer uns é preciso rebaixar outros.

Há que admitir que a imensidão da obra pode ser intimidante, mas com os trabalhos sistemáticos de catalogação e edição empreendidos nas décadas de 1980 e 1990 e com a inclusão das suas obras em programas de concerto e registos discográficos, sobretudo em etiquetas especializadas em música antiga, foi-se percebendo que os elogios dispensados pelos seus contemporâneos eram, afinal, justos.

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Juventude

Georg Philipp Telemann nasceu a 14 de Março de 1681 em Magdeburg. O pai, Heinrich, que só viveria mais quatro anos, era diácono, a mãe, Maria, era filha de um pastor e o irmão mais velho seguiu carreira religiosa. Era provavelmente a esta que Georg Philipp estaria também destinado, não fosse o seu talento musical. Aos 10 anos começou a receber lições do organista Benedictus Christiani e aos 12 anos já compunha a primeira ópera, Sigismundus (perdida).

Vista de Magdeburg no início do século XVIII

A família bem tentou desincentivá-lo, mas o gosto pela música do rapaz era irreprimível e aplicou-se a copiar e estudar partituras de Agostino Steffani, Johan Rosenmüller, Arcangelo Corelli e Antonio Caldara – a maior parte da sua educação musical foi obtida como auto-didacta. Prosseguiu os estudos académicos em Zellerfeld e, a partir dos 16 anos, em Hildesheim, no reputado colégio Andreanum, onde voltou a dar provas de um talento precoce, compondo obras para a igreja de Sankt Godehard e para as peças escolares, e expandido o leque de instrumentos que tocava, e que já incluía o cravo, o violino e a flauta de bisel, com o oboé, a flauta transversa, o chalumeau (um antepassado do clarinete), a viola da gamba, o contrabaixo e o trombone.

Praça do mercado de Hildesheim

Apesar da sua evidente queda para a música, a oposição familiar a uma carreira musical permanecia inabalável – viam a profissão de música como sendo de baixo coturno e prognosticavam-lhe um futuro como “saltimbanco, um jogral, um domador de marmotas”, recordaria Telemann mais tarde. Concluído o ensino secundário vergou-se ao desejo da família e, em 1701, matriculou-se em direito na universidade de Leipzig.

Em Leipzig

No caminho para Leipzig, passou por Halle, onde travou conhecimento com o jovem e precoce Handel (então com 16 anos), o que confirma que a música continuava a dominar os seus interesses. Com efeito, em Leipzig, os estudos de direito foram rapidamente postos de parte e Telemann mergulhou na vida musical da cidade: compunha regularmente cantatas para as igrejas de S. Nicolau e S. Tomé, que tinha por director musical (Kantor) Johann Kuhnau; fundou, em 1702, o Collegium Musicum, uma associação devotada à organização de concertos públicos (que viria depois a ser dirigida por Bach); em 1703 foi nomeado director da ópera da cidade, na qual cantou e para a qual compôs várias óperas (a mais célebre é Germanicus, de 1704); e em 1704 assumiu o posto de organista na Neukirche.

[Ária “Rimembranza crudel” da ópera Germanicus, por Ann Hallenberg (mezzo-soprano) e Il Pomo d’Oro, com direcção de Riccardo Minasi (Deutsche Harmonia Mundi)]

Tudo parecia correr a contento, mas Kuhnau não apreciou a intromissão de Telemann nos seus domínios – sobretudo quando este aliciava os músicos e cantores da Thomasschule para as suas iniciativas – e começou a hostilizar o seu jovem colega. Portanto, quando este recebeu uma proposta convidativa para assumir o posto de mestre de capela na corte do conde Erdmann II von Promnitz, deixou Leipzig.

Praça do mercado de Leipzig, em gravura de 1749, por Ernst Joachim Scheffler

Em Sorau

Em 1705, Telemann assumiu funções em Sorau (hoje Zary, na Polónia), mas a estadia foi breve, pois a ameaça de uma invasão sueca (estava em curso a Grande Guerra do Norte) levou Erdmann a dissolver a orquestra da corte.

O palácio de Promnitz em Sorau (hoje Zary, na Polónia)

Foi, porém, um período decisivo na formação de Telemann, pois o conde era aficionado da música francesa (com a qual Telemann já contactara em viagens a Hannover, onde então era Kapellmeister o francês Jean-Baptiste Farinelli) e as deslocações que fez a Pless (hoje Pszczyna) e Cracóvia revelaram-lhe o que mais tarde denominaria como o “genuína beleza bárbara” da música popular polaca (as gaitas de foles polacas continuariam a ecoar, sob forma estilizada, na sua música, muitos anos depois).

[O Concerto polonois TWV 43:G7 é das obras em que são mais patentes as influências das vigorosas e originais danças tradicionais polacas; por The English Concert, com direcção de Trevor Pinnock (Archiv)]

Em Eisenach

Por esta altura, apesar da sua juventude, Telemann já forjara invejável reputação, pelo que não tardou a encontrar emprego, agora como Konzertmeister do duque Johann Wilhelm III, de Saxe-Eisenach, cargo que assumiu em 1708, após uma viagem a Paris em 1707, que lhe permitiu aprofundar os conhecimentos da música francesa que tanto o fascinava.

Johann Wilhelm III de Saxe-Eisenach (1666-1729), em gravura de Martin Bernigeroth, segundo retrato de Hyacynthe Rigaud

Pela mesma altura, Johann Sebastian Bach entrara ao serviço do duque Wilhelm Ernst, na vizinha corte de Saxe-Weimar, pelo que os dois músicos travaram amizade – esta iria perdurar e em 1714 Telemann tornar-se-ia padrinho do segundo filho de Bach, Carl Philipp Emanuel (no fim da vida, Telemann mexeria cordelinhos para que Carl Philipp Emanuel lhe sucedesse como director musical de Hamburgo).

Nos pouco mais de quatro anos que passou em Eisenach, Telemann compôs numerosos concertos e sonatas e quatro ciclos anuais de cantatas sacras – o que representa quase uma cantata por semana – e ainda arranjou tempo e inspiração para continuar a compor óperas para Leipzig. Pelo meio, em 1709, regressou a Sorau, para se casar com Amalie Louise Juliane Eberlin, aia da condessa de Promnitz e filha do compositor Daniel Eberlin.

Em Frankfurt-am-Main

Ou por buscar uma posição mais bem remunerada e prestigiante ou para tentar deixar para trás a morte da esposa, ocorrida em 1711 e que o abalou profundamente, concorreu ao lugar de director musical da cidade de Frankfurt e de Kapellmeister da Barfüßkirche – na candidatura especificou que era proficiente em vários instrumentos: em primeiro lugar no violino, seguindo-se o cravo, a flauta, o chalumeau, o violoncelo e o calchedon (uma variante de alaúde baixo então em voga no mundo austro-germânico).

No novo posto voltou a dar provas de um labor incansável: compôs mais cinco ciclos anuais de cantatas sacras, providenciou música para as cerimónias do município, assumiu a direcção da Frauenstein, uma sociedade de concertos (similar ao Collegium Musicum de Leipzig) que organizava sessões musicais semanais, compôs música de câmara, aberturas e concertos que editou por conta própria (fundou em 1715 a sua própria editora), continuou a fornecer óperas para Leipzig, aceitou o posto de Kapellmeister in absentia em Eisenach, que o obrigava a enviar regularmente fornadas de música nova para os serviços religiosos (o que continuou a fazer até 1729) e foi nomeado compositor da corte do duque Ernst de Gotha (imagine-se quantos empregos seria Telemann capaz de manter em simultâneo na era da internet…).

Em 1714 casou-se com Maria Catharina Textor, filha de um secretário do conselho municipal de Frankfurt, de quem teria oito filhos e uma filha. E em 1718 – com 49 anos de vida ainda pela frente – já se considerava suficientemente vivido (e importante) para redigir uma autobiografia (escreveria mais duas, uma em 1729 e outra em 1740, e seria alvo de uma biografia em 1744, parte da qual, presume-se terá sido escrita por si).

Numa viagem a Dresden, em 1719, teve a oportunidade de reencontrar-se com Handel, que se tornara, entretanto, num dos compositores mais prestigiados da Europa, bem como com os notáveis músicos ao serviço da corte do eleitor da Saxónia, Augusto II o Forte – entre eles o grande violinista Johann Georg Pisendel, a quem dedicaria vários concertos.

[III andamento (Andante) do Concerto para violino TWV 51:B1, um dos que compôs para Pisendel, virtuoso da orquestra da corte de Dresden; por Elizabeth Wallfisch (violino e direcção) e L’Orfeo Barockorchester (CPO)]

Em Hamburgo

Neste ponto da sua carreira, Telemann tinha, aparentemente, todas as razões para estar satisfeito, mas o falecimento, a 10 de Abril de 1721, de Joachim Gerstenbüttel deixou vago o lugar de director musical de Hamburgo, um dos mais apetecíveis da Alemanha. Telemann candidatou-se e venceu o concurso, ficando encarregado da música nas cinco igrejas de Hamburgo e da direcção do Johanneum, a mais importante escola da cidade.

Mapa de Hamburgo em 1730

Como se isto não fossem já ocupações absorventes, começou também a compor para a Ópera de Hamburgo, o que desagradou ao conselho municipal, que não viu com bons olhos que o director de uma instituição académica tão prestigiada como o Johanneum e o responsável pela música sacra na cidade estivesse também envolvido no pouco respeitável mundo do teatro. Telemann, que não fazia tenção de deixar de escrever para o palco, jogou então uma cartada de intimidação: candidatou-se ao lugar de Kantor de Leipzig, deixado vago pelo falecimento, a 2 de Junho de 1722, de Johann Kuhnau (o tal com quem tivera atritos uns anos antes). Analisados os curricula e prestadas as provas, o conselho municipal de Leipzig ordenou assim os candidatos: 1.º Telemann, 2.º Christoph Graupner, 3.º Johann Sebastian Bach. Alarmado perante a possibilidade de perder um compositor tão solicitado e prolífico como Telemann, o conselho municipal de Hamburgo viu-se forçado a aumentar-lhe o vencimento e a permitir que ele continuasse a providenciar música para a Ópera de Hamburgo (o posto de Leipzig acabou por ficar para Bach, como se dá conta em “A cruz de Bach para contar a história do Calvário“).

Interior da Oper am Gänsemarkt, o teatro de ópera de Hamburgo

Telemann ficaria até ao fim da vida em Hamburgo, onde desenvolveu uma actividade ainda mais frenética que nos cargos anteriores: foi nomeado director da Ópera de Hamburgo (cargo que manteria até ao seu encerramento em 1738), compôs peças para banquetes e outras cerimónias promovidas regularmente pelo Almirantado de Hamburgo, intensificou a agenda de concertos das igrejas sob a sua responsabilidade, organizou concertos pagos e fundou, em 1728, em parceria com o compositor Johann Valentin Görner (1702-1762) uma revista musical, a Der getreue Musikmeister (O fiel mestre de música), que se propunha fornecer aos amadores (um termo que então denotava uma proficiência média muito superior à do nosso tempo) uma lição de música quinzenal, sempre com peças novas (nem todas de Telemann, é preciso que se diga).

[Sonata para violoncelo e baixo contínuo TWV41:D6, de Der getreue Musikmeister, por Emmanuel Jacques (violoncelo) e Violaine Cochard (cravo), do ensemble Amarillis (Ambroisie)]

Em 1723 foi nomeado mestre de capela de Bayreuth (com a obrigação de enviar música nova regularmente) e, em 1725, para o cargo de “correspondente” da corte de Eisenach (com obrigações análogas).

Os rendimentos anuais provenientes das múltiplas atribuições de Telemann distribuíam-se assim: os cargos oficiais em Hamburgo representavam 1960 marcos, a direcção da ópera, 900 marcos, o cargo de Kapellmeister em Eisenach, 600 marcos, o de “correspondente” da corte de Eisenach, 300 marcos, e o cargo de Kapellmeister de Bayreuth, outros 300 marcos, perfazendo um total de 4000 marcos. Ou seja, mesmo não contando com os proveitos dos concertos pagos, das edições de partituras e da revista e das encomendas ocasionais, Telemann ganhava aproximadamente o mesmo que os burgomestres da cidade de Hamburgo e mais 400 marcos do que os mestres de capela da sumptuosa corte de Dresden.

Poderia pensar-se que Telemann levaria uma vida desafogada, mas é preciso inserir na equação a sua esposa, que além de lhe ser infiel, era viciada em jogos de azar e contraiu dívidas de jogo que representavam um ano de rendimento anual do compositor. Alguns autores sugerem que o afã composicional e editorial de Telemann entre 1725 e 1740 resultou da necessidade de pagar as dívidas da mulher.

Em 1737-38, Telemann viveu oito meses em Paris, onde assistiu às óperas de Rameau, o que influenciou decisivamente a sua produção operática, e empreendeu a publicação de obras suas (há quem sugira que a motivação original da ida a Paris era tentar controlar a proliferação de edições piratas das suas obras, um problema corrente numa época em que o conceito de “direitos de autor” era entendido com grande ligeireza).

Versão colorida de uma gravura por Valentin Daniel Preisler, a partir de um retrato (desaparecido) de Telemann realizado em 1750 por Louis Michael Schneider

Ao entrar na sua sexta década de vida, liberto da obrigação de pagar dívidas da esposa, com quem deixara de viver, e atormentado por problemas de saúde, a sua cadência de produção de novas composições foi baixando e passou a consagrar tempo à redacção de tratados teóricos e à jardinagem (Handel, com quem manteve correspondência regular, enviava-lhe de Londres bolbos de tulipas raras).

A morte do filho Andreas, em 1755, deixou o septuagenário Telemann com o encargo de educar o neto, Georg Michael (1748-1831). Quando Telemann faleceu, a 25 de Junho de 1767, foi Andreas que lhe sucedeu nos cargos municipais de Hamburgo, em regime interino, até eles serem assumidos, em 1768, por Carl Philipp Emanuel Bach, afilhado de Telemann.

Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), filho de Johann Sebastian e afilhado de Telemann, a quem sucedeu em Hamburgo; retrato por Franz Conrad Löhr

A obra

O catálogo das obras de Telemann – Telemann-Werke-Verzeichnis (TWV) – inclui cerca de 3.600 obras, a que terão de somar-se as que se terão perdido até aos nossos dias, entre as quais estão muitas composições anteriores a 1708 (o Dictionnaire de la musique da Larousse, dirigido por Marc Vignal, menciona um total de 6.000).

Compôs a um ritmo frenético e teve uma vida invulgarmente longa, para os padrões da época – nasceu, em 1681, nove anos depois da morte de Heinrich Schütz, nome cimeiro dos alvores do barroco alemão, e faleceu três anos antes do nascimento de Beethoven. Chegaram aos nossos dias 1.043 cantatas sacras, 22 Paixões (só para as igrejas de Hamburgo compôs 40), 17 missas, dezenas de oratórias, 9 óperas completas e 26 incompletas (das mais de 50 que compôs), 600 aberturas orquestrais, uma centena de concertos (metade dos quais para um solista, os restantes para dois ou mais solistas), uma centena de sonatas para solista e baixo contínuo, uma centena de sonatas em trio, uma dúzia de fantasias para violino solo, outra dúzia para flauta solo e 10 das 36 oratórias sacras e serenatas profanas compostas para os banquetes anuais da milícia de Hamburgo – conhecidas como Kapitänsmusik.

Vista de Hamburgo e do Elba, por Elias Gallis, c. 1680

Somem-se a esta copiosa produção musical as já mencionadas três autobiografias, numerosos poemas, um romance satírico e as muitas cartas trocadas com outros compositores, como o afilhado C.P.E. Bach, Quantz, os irmãos Graun (ver “Graun: O compositor de ópera do rei da Prússia”) e Johann Friedrich Agricola (um discípulo de Bach) e fica-se com a imagem de uma vida de labor incansável, onde, inevitavelmente, haverá vacilações de inspiração.

The Telemann Collection

Os 13 CDs desta caixa só poderiam arranhar a superfície deste corpus desmedido. A reedição tenta cobrir diferentes aspectos da produção de Telemann e, ao mesmo tempo, dar relevo a alguns dos maestros e agrupamentos que mais contribuíram para o ressurgimento de Telemann, recorrendo aos antigos catálogos da Teldec, Virgin Veritas e EMI.

A apresentação é sumária e o livrete contém apenas um texto de quatro páginas sobre o compositor e a lista das faixas, intérpretes e locais e datas de gravação. Não há textos cantados nem informação sobre as obras.

CDs 1-2: Aberturas de Darmstadt

Interpretação: Concentus Musicus Wien, direcção de Nikolaus Harnoncourt

A designação “Aberturas de Darmstadt” é de escasso valor informativo e resulta meramente de a Biblioteca de Darmstadt ser hoje o principal repositório de aberturas compostas por Telemann. E há uma boa explicação para isso: em 1712, quando Telemann se tornou Kapellmeister em Frankfurt, o príncipe Ernst Ludwig, Landgraf de Hesse, um aficionado da música francesa, nomeou Christoph Graupner como Kapellmeister em Darmstadt. Como as duas cidades estavam separadas por apenas 30 Km de distância, era frequente os dois Kapellmeister trocarem partituras e músicos e é natural que as aberturas de sabor francês de Telemann fossem muito apreciadas por Ernst Ludwig. Embora se saiba que Telemann compôs pontualmente música especificamente para Darmstadt (mesmo quando já estava em Hamburgo), a maioria das “Aberturas de Darmstadt” não tem vínculo a esta corte.

As gravações são (com uma excepção) de 1966, mas envelheceram muito bem e o som (ninguém lhe daria 51 anos) e a interpretação deixam ouvir os detalhes da partitura. As Aberturas incluem danças de “sabor nacional”, com a “Gasconnade” (alusiva à Gasconha) da TWV 55:g4 a mostrar carácter desafiador e altivo e a “Espagniol” da TWV 55:C6 a revelar-se surpreendentemente mansa e melancólica (provavelmente, Telemann confundiu os espanhóis com os portugueses).

Harnoncourt foi pioneiro na divulgação da música de Telemann e este foi um marco histórico nesse processo de resgate.

[Abertura TWV 55:C6, pelo Concentus Musicus Wien, com direcção de Nikolaus Harnoncourt]

CDs 3-5: Concertos

Interpretação: Concentus Musicus Wien, direcção de Nikolaus Harnoncourt; Berliner Barock Solisten, direcção de Rainer Kussmaul

Os concertos de Telemann costumam ter quatro andamentos e ser concisos e compactos, sem a elaboração dos de Bach, e exploram variadas combinações de solistas. No CD de Harnoncourt há, entre outros, um concerto para flauta de bisel e fagote, um concerto para quatro violinos, um concerto para duas trompas e um concerto para três oboés.

[II andamento (Vivace) do Concerto para flauta de bisel e fagote TWV 52:F1, por Frans Brüggen (flauta de bisel), Otto Fleischmann (fagote) e Concentus Musicus Wien, com direcção de Nikolaus Harnoncourt]

A maioria dos concertos nos CDs 4 e 5, exibindo combinações solistas que mais nenhum compositor de primeiro plano experimentou – duas violas; flauta, oboe d’amore e viola d’amore; dois violinos e duas trompas – estão a cargo dos Berliner Barock Solisten, que usam uma mistura de instrumentos históricos e modernos, com alguns solistas convidados a vir do universo da “interpretação historicamente informada” (HIP, na sigla inglesa), como é o caso do violinista Bernhard Forck, e outros não, como é o caso dos flautistas Emmanuel Pahud e Jacques Zoon ou do oboísta Albrecht Mayer. Atendendo à abundância de gravações HIP nos catálogos Teldec e Virgin Veritas, estranha-se a opção por dois registos de 1995 pela “moderna” Saint Paul Chamber Orchestra, sem credenciais na música antiga, e, para mais, com um concerto destinado a oboé transcrito para trompete.

[III andamento (Andante) do Concerto para oboé TWV 51:d2, por Albrecht Mayer (oboé) e Berliner Barock Solisten, direcção de Rainer Kussmaul]

CDs 6-7: Tafelmusik

Interpretação: Concentus Musicus Wien, direcção de Nikolaus Harnoncourt

“Tafelmusik” (“Musique de table”) é um termo genérico para designar música para ser tocada em banquetes, o que presume que deverá ser suficientemente aprazível para não perturbar a digestão dos convivas, mas que não tem a frivolidade que o termo poderia sugerir nos nossos dias.

Telemann deu o nome de Tafelmusik a uma colecção de peças, publicada em 1733 e repartida em “trois productions”, cada uma delas composta por uma abertura, um concerto, um quarteto, uma sonata em trio e uma sonata para solista e baixo contínuo e uma “conclusão” orquestral. É a mais célebre das suas obras instrumentais e funciona como mostruário da versatilidade e invenção do compositor em diferentes contextos instrumentais. Os dois CDs contêm metade das peças da colecção, numa interpretação competente (gravada em 1964), mas quem queira possuir a obra completa em interpretação e som imbatíveis deverá buscar a versão da Musica Antiqua Köln (Archiv) ou a da Orquestra Barroca de Freiburg (Harmonia Mundi).

[“Conclusion” da I Production, pela Musica Antiqua Köln, com direcção de Reinhard Goebel (Archiv)]

CDs 8-9: Quartetos de Paris

Interpretação: Wilbert Hazelzet (flauta) e Trio Sonnerie

“Quartetos de Paris” é uma designação que se presta a confusões, pois pode designar duas colecções diferentes de seis peças para flauta, violino, viola da gamba (ou violoncelo) e baixo contínuo: uma são os Quadri, publicados em Hamburgo em 1730, a outra são os Nouveaux Quatuors en Six Suites, publicados em Paris em 1737, quando da estadia do compositor na cidade. O livreto não o especifica, mas os “Quartetos de Paris” dos CDs 8 e 9 são os Nouveaux Quatuors e é difícil conceber uma leitura que supere a do Trio Sonnerie (Monica Huggett em violino, Sarah Cunningham em viola da gamba e Mitzi Meyerson ou Gary Cooper em cravo) e do seu convidado. Nalguns andamentos, Gary Cooper recorre a um registo de alaúde, de sonoridade seca e delicada, que seria bom ouvir mais amiúde.

É música irrepreensivelmente graciosa e fresca, que pode ser encarada como um equivalente sonoro das aprazíveis cenas campestres de Jean-Antoine Watteau (1684-1721) e Jean-Honoré Fragonard (1732-1806).

[Excerto do n.º6 dos Nouveaux Quatuors en Six Suites, por Wilbert Hazelzet (flauta) e Trio Sonnerie]

CD 10: Quartetos e Sonatas em trio

Interpretação: Kees Boecke e Walter van Hauwe (flautas de bisel), Han de Vries (oboé), Alice Harnoncourt (violino) Anita Mitterer (viola), Wouter Müller (violoncelo) e Bob van Asperen (cravo)

CDs 11-12: Oratória Der Tag des Gerichts, Cantata Ino

Interpretação: Monteverdi-Chor Hamburg (oratória), Roberta Alexander (soprano, na cantata), Concentus Musicus Wien, direcção de Nikolaus Harnoncourt

A Oratória Der Tag des Gerichts (O Dia do Juízo) foi composta em 1762; Telemann tinha 81 anos mas as suas capacidades inventivas estavam intactas e logrou aqui uma das suas grandes obras sacras (talvez tenha recebido motivação adicional da perspectiva de saber estar perto de prestar contas ao Altíssimo). A oratória, sobre libreto de Wilhelm Alers, divide-se em “Quatro Reflexões”, atribui aos solistas vocais personagens abstractas – Crença, Descrença, Religião, Devoção – e inclui (como o tema pede) trechos de grande brilho e imponência, realçadas pelo uso de trompetes, trompas e timbales. O baixo Max van Egmond exibe impressionante autoridade na ária “Fürchtet nur, fürchtet des Donnerers Schelten” e os rapazes soprano a quem são confiados alguns trechos solistas safam-se da incumbência. A gravação é de 1966, mas não acusa a idade.

[Arioso “Ein ew’ger Palm umschlingt mein Haar”, por Kurt Equiluz (tenor) e Concentus Musicus Wien, direcção de Nikolaus Harnoncourt]

CD 13: Intermezzo giocoso Pimpinone

Interpretação: Uta Spreckelsen (Vespetta), Siegmund Nimsgern (Pimpinone) e Ensemble Florilegium Musicum, direcção de Hans Ludwig Hirsch.

Pimpinone está longe de ser a melhor forma de introduzir o ouvinte moderno à ópera de Telemann. Foi um grande sucesso no seu tempo, mas o tipo de humor em que assenta envelheceu mal e, sem acção cénica, nem texto cantado ou sinopse de libreto que guie o ouvinte (como acontece neste caso), arrisca-se a soar como uma senil rábula revisteira.

Esta ópera, cujo libreto é creditado a Johann Philipp Praetorius e que tem por título completo “O casamento desigual entre Vespetta e Pimpinone ou A camareira mandona”, estreou em 1725 na Ópera de Hamburgo, servindo de interlúdio desopilante entre os actos da opera seria Tamerlano, de Handel (que foi dada a ouvir numa versão adaptada por Telemann).

[Dueto “Wilde Hummel! Böser Engel”, por Erica Schuller, Ryan de Ryke e The Haymarket Opera Company, com direcção de Craig Trompeter, ao vivo em Chicago, Outubro de 2013]

A jovem e matreira criada Vespetta consegue convencer o seu velho e rabugento patrão, Pimpinone, a casar-se com ela, mas assim que ascende ao novo estatuto, toma conta da casa e inferniza a vida do marido. É frequente que se apontem as muitas afinidades com o intermezzo La serva padrona (o título é quase idêntico e nos nomes das personagens dá-se a troca de uma Vespetta por um Vespone), estreado em 1733 em Nápoles e que conheceu sucesso retumbante pela Europa fora, mas é possível que La serva padrona e Pimpinone tenham ido buscar inspiração numa fonte comum. Há registo da estreia em Nápoles, em 1708, de um intermezzo intitulado Vespetta e Pimpinone, com música de Tomaso Albinoni e libreto de Pietro Pariati, que obteve grande sucesso e foi reposto e adaptado em várias ocasiões por diversos compositores e libretistas. Telemann, homem cosmopolita e bem informado, certamente que teve contacto com um destes Pimpinones, até porque a música do seu intermezzo é claramente devedora das convenções da ópera cómica italiana.

Telemann compôs milhares de obras mais substanciais do que Pimpinone e esta caixa pode ser um ponto de partida para as descobrir.