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A tua família é melhor que a minha?

Duas mães por inseminação, dois pais por adoção, uma mãe lésbica solteira e uma mãe transgénero. Famílias LGBT vindas de toda a Europa juntaram-se em Lisboa. Uma mensagem comum: somos todos normais.

A vida de Lena não tem nada de especial. É uma miúda de 19 anos, estuda Ciência Política e Administração Pública, tudo normal. Tem duas mães. Nada de extraordinário. É um pormenor aborrecido, até. Nasceu com o contributo de um dador de esperma anónimo e não quer saber nada sobre ele. Para quê?

Lena está em Lisboa acompanhada pela “momi”. A outra mãe, a “mama”, ficou na Alemanha com os dois irmãos mais novos. Lena e Lisa são duas das oradoras no Encontro Europeu de Famílias, que aconteceu em Oeiras entre 15 e 18 de outubro. São uma das quase 30 famílias LGBT de toda a Europa que por lá passaram. Vieram da Finlândia, Suécia, Inglaterra, Alemanha, entre outros países. Menos de dez eram portuguesas. 

Encontro Europeu de familias, 2015, Catarina Marques Rodrigues, INATEL,

Lena Green e Lisa Green, mãe e filha, no INATEL de Oeiras – o espaço que recebeu o encontro. (Michael Matias/Observador)

A normalidade pode parecer estranha. Para Lena, fazer perguntas sobre as duas mães lésbicas é como questionar o porquê de alguém ter cabelo castanho. É assim porque é assim. Uma perspetiva só ligeiramente limada com a passagem da infância para a adolescência e com a consequente maturidade na sociedade. A mãe desconstrói o normal e o anormal porque, além da experiência pessoal, Lisa Green é psicóloga, terapeuta familiar e especialista em parentalidade homossexual. 

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“As crianças que nascem em famílias arco-íris veem a sua situação como normal. O que acontece é que têm de aprender porque é que o mundo tem curiosidade em relação a elas”, explica Lisa. A filha mais velha já aprendeu e já espalhou a palavra por Bruxelas e por Colónia (Alemanha), entre outros encontros e conferências sobre famílias como a dela.

Este foi o quarto encontro anual organizado pela NELFA, a rede europeia de associações de famílias LGBTI. Depois de França, Espanha e Alemanha, a organização da edição de 2015 coube a Portugal e à ILGA. Puseram, então, mãos à obra: reservaram o INATEL de Oeiras, planearam temas de conversas (as Rainbow Talks), workshops e atividades para crianças e adultos. Cartaz fechado, altura de receber as famílias.

Famílias têm um pedido: adoção para todos

Jogos com farinha e rebuçados, o desafio de correr dentro de um saco de batatas, a rapidez do jogo das cadeiras e uma espécie de bowling de iniciação. Brincadeiras à parte, falou-se de coisas sérias e ficou afixado um pedido: mais direitos na área da parentalidade LGBT.

“As famílias arco-íris não aparecem por acaso. Um casal de gays ou um casal de lésbicas que decide ter uma criança pensa muito sobre o assunto até concretizar. Há um processo relativamente comum em que as famílias pensam, ultrapassam, visualizam dificuldades e antecipam o sonho”, aponta Isabel Advirta, presidente da ILGA. Os casais que se querem aventurar a ter filhos partilham os medos com aqueles que já os têm a correr no INATEL de Oeiras.

NELFA

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A NELFA (Network of European LGBT Families Associations) é uma rede europeia de associações de famílias LGBTI. No total são 24 associações de 17 países europeus. 

Na Europa, há 12 países que reconhecem o direito pleno à adoção por casais homossexuais. São eles: Andorra, Bélgica, Dinamarca, França, Irlanda, Islândia, Malta, Holanda, Noruega, Espanha, Suécia e Reino Unido. A coadoção foi aprovada em 15 países: Andorra, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Islândia, Malta, Holanda, Noruega, Eslovénia, Espanha, Suíça e Reino Unido. O país pioneiro foi a Holanda onde, desde abril de 2001, dois homens ou duas mulheres podem adotar. Portugal não está em nenhuma das listas.

A coadoção significa que, se duas pessoas do mesmo sexo estiverem casadas ou se viverem em união de facto, e se um deles tiver responsabilidades parentais sobre um menor, o companheiro ou a companheira pode co-adotar esse menor. A adoção por casais homossexuais permite que o casal homossexual se chegue à frente como casal e adote como casal. 

"Estas crianças existem. Andam nas escolas, andam nas festas de anos. Estas crianças vivem com duas mães mas para o Estado têm apenas uma. "
Isabel Advirta, presidente da ILGA

“Há famílias que não são reconhecidas e isso é grave, porque pode acontecer alguma coisa e elas não usufruem da mesma proteção que as outras famílias têm”, destaca Maria Von Känel. Quando a presidente da NELFA se refere a “acontecer alguma coisa”, refere-se ao caso extremo de a mãe ou o pai legal da criança morrer. “Se acontecer alguma coisa a uma das mães e se a outra não está ligada legalmente às crianças, não é de todo linear que aquelas crianças fiquem com a outra mãe. Isto é uma insegurança e uma fonte de preocupação constante”, exemplifica Isabel Advirta, presidente da ILGA.

Para a responsável da associação portuguesa, “o que o Estado está a fazer é dizer às crianças: ‘esta família a que tu pertences não é válida e, portanto, não te reconhecemos as tuas duas mães’. Isto não é aceitável para ninguém, muito menos quando se trata de direitos de crianças”. A situação é a mesma na Suíça, país onde vive a responsável pela rede europeia. Maria fala dos receios que apreendeu através da experiência na NELFA mas também pela experiência pessoal. Tem dois filhos com a parceira Martina e vieram os quatro a Portugal. “As nossas rotinas diárias são iguais às das outras pessoas, as crianças são educadas como as outras”, remata.

Questionada se estes encontros podem ser vistos como uma forma de estas famílias se estarem a fechar num círculo, Isabel nega categoricamente. “Não, de todo. Nós não estamos fechados na sociedade. Todas estas crianças andam na escola e todos os colegas têm famílias diferentes, uns com pai e mãe, outras só com um pai, outras com pais divorciados, etc.” O foco deste encontro eram as famílias arco-íris e nenhuma família heterossexual (pai, mãe e crianças) passou por ali. Algo expectável, considera a presidente da ILGA, “talvez porque tenham outros espaços. Mas todas as famílias seriam bem-vindas. Sobre as razões para não terem vindo, só as famílias com essa composição poderão responder”.

A maioria das famílias presentes no encontro que decorreu no passado fim de semana era composta por mães lésbicas, facto comprovado por Isabel Advirta. “O que reflete, aliás, a realidade”, assegura. “Quando falamos em parentalidade LGBT, o termo que aparece sempre é ‘adoção’ e ‘gay’. O olhar externo é sempre um casal de homens que adota, mas a maior parte das famílias que aparece no grupo da ILGA Portugal é de casais de mulheres que recorreram à inseminação artificial em outros países.” Em 24 países da Europa há leis que permitem a inseminação artificial ou outras técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA). Em Portugal, só as pessoas casadas ou que estejam juntas com uma pessoa de sexo diferente podem recorrer às técnicas de PMA, com um diagnóstico de infertilidade.

Filhos de gays são gays?

“Os pais falam muitas vezes sobre as crianças, mas as crianças crescem e, aí, podem ser elas a falar sobre o que sentem.” A palavra é de Lena Green, a mais velha de três irmãos — Dilan, de 15 anos, e Mia, de 13, ficaram na Alemanha. Lena era mesmo a filha mais velha de uma família arco-íris presente em Lisboa. Para as crianças de três, cinco e dez anos, foram três dias fora de casa num campo de férias com os pais e com outros meninos. Para Lena, de 19, foi uma oportunidade de falar por todas elas numa das Rainbow Talks.

“Há uma pressão enorme sobre nós”, atira Lena. “As crianças têm de mostrar que são normais, que está tudo bem com elas”, continua. O assunto já foi claramente conversado entre mãe e filha. “Fardo, é essa a palavra”, concordam as duas.

Os estudos da mãe ajudam-na a simplificar o discurso. “As famílias arco-íris pioneiras têm de ‘provar’ que tudo funciona bem e a base é perceber como são as crianças: são heterossexuais? São equilibradas psicologicamente? Têm competências sociais e intelectuais? E se a resposta a todas as perguntas for ‘sim’, a família está aprovada. Mas se há algum fator que não corresponde, isso é usado como uma desculpa para descredibilizar estas famílias”, lamenta a psicóloga. 

"Podemos falar de igualdade quando as famílias arco-íris puderem ser tão imperfeitas como qualquer outra".
Lisa Green, mãe e psicóloga especialista em parentalidade homossexual

Mas não há nada de diferente? Então e os colegas da escola? E a questão do dador de esperma? Nada? Bem, na família Green o segredo parece ter sido sempre a naturalidade. Na vila onde vivem toda a gente sabe como é a família, na escola idem. “Muitas vezes tenho de explicar [aos colegas] como é que tenho duas mães mas, cinco minutos depois, torna-se um assunto aborrecido e mudamos logo para o próximo tópico: ‘vamos falar sobre futebol?'”.

A questão do dador ainda é menos importante. “Nunca foi um tema tabu, pelo contrário. Eu e a minha companheira estamos sempre à procura de características nossas nos nossos filhos e, se não as encontrarmos, brincamos: ‘oh, deve ser do dador'”, conta, entre risos. 

Encontro Europeu de familias, 2015, Catarina Marques Rodrigues, INATEL,

Jarl Mattsson (52 anos) e Luís Amorim (45 anos), com a filha Georgina (10 anos). (Michael Matias/Observador)

Se há uma família arco-íris aqui, até na nacionalidade, é a de Luís Amorim. É português, casado com um sueco, adotaram uma menina africana e vivem os três na Bélgica. Luís e Jarl são funcionários europeus. Por estar em Bruxelas e por fazer parte da ILGA desde o início, Luís foi o escolhido para representar a associação portuguesa na NELFA. É o responsável por transmitir situações portuguesas ao núcleo europeu e vice-versa.

Luís e Jarl estão juntos há 18 anos. Georgina tinha dois meses quando foi adotada pelo casal e hoje tem dez anos. O processo de adoção demorou três anos e decorreu na Bélgica. Na altura, estavam a ser dados os primeiros passos para a aprovação da adoção por casais do mesmo sexo, que foi consumada em 2006.

“Ela não pergunta porque é que tem dois pais. O que ela pergunta é: ‘porque é que há pessoas que acham que a nossa família não tem direito a existir?’"
Luís Amorim, sobre a filha

“Foi um processo difícil porque nós decidimos avançar como casal. Na altura fomos um dos primeiros. O que acontece muitas vezes em sistemas como o português é que nós premiamos a falsidade, a mentira, a hipocrisia. Na Bélgica, o facto de nós termos assumido que éramos um casal que queria adotar jogou a nosso favor porque as assistentes sociais e as psicólogas que estavam a fazer a nossa avaliação viram nisso prova de uma família que estava capacitada para enfrentar o que significava ter uma criança”, considera o progenitor Luís.

Georgina integrou-se rapidamente no grupo. Corre nos sacos de batatas, esmera-se na aula de kizomba e joga à bola com as outras crianças, momento que arranca sorrisos no grupo de idosos que passa a tarde a conversar no INATEL.

Encontro Europeu de familias, 2015, Catarina Marques Rodrigues, INATEL,

Georgina, o futebol e o grupo de idosos que costuma ocupar as tardes no INATEL. (Michael Matias/Observador)

Se falamos de famílias arco-íris, falamos de famílias LGBT, e se falamos de famílias LGBT falamos também de famílias em que os pais ou as mães são pessoas transgénero. É o caso de Julia Ehrt, mulher transgénero que faz vida da causa. É a diretora da Transgender Europe (TGEU), uma organização central criada há 10 anos que luta pelos direitos das pessoas que se identificam com o género oposto ao atribuído à nascença. 

TGEU

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A Transgender Europe é uma organização central não governativa. Atualmente têm 85 organizações membros de 42 países europeus. As organizações atuam a nível local, regional e nacional. 

A TGEU está sediada em Berlim e é financiada em grande parte pela Comissão Europeia. Têm também vários financiadores públicos e privados, tanto na Europa, como nos EUA. Uma ou duas vezes por mês, Julia viaja para conferências e encontros e traça o mapa dos direitos transgénero na Europa. Uma das vozes portuguesas que faz parte da organização é Julia Mendes Pereira, que foi candidata a deputada pelo Bloco de Esquerda. Julia Ehrt trouxe consigo a filha Emilie. 

As questões transgénero estão hoje mais na moda do que nunca. São quase a nova “tendência” no que diz respeito a direitos LGBTI, considera a responsável. “Nos últimos anos temos vindo a assistir a uma maior consciencialização. Estamos a partir de níveis (de Direitos Humanos) muito baixos. Os direitos trans foram completamente ignorados durante anos e anos, mas agora há a consciência de que é preciso fazer alguma coisa, de que há pessoas transgénero, de que estas pessoas sofrem de violência, discriminação e de estigmas sociais e de que isso tem de ser enfrentado, a nível legal e social. Sim, há um aumento da atenção.”

“A vida é boa”

inatel, encontro de famílias,

Liz Corder e a filha Isabela, de 9 anos. (Hugo Amaral/Observador)

Se, para uns, estão a começar a ser dados os primeiros passos, outros não têm do que se queixar. Liz está em Lisboa com Isabela, de nove anos, a filha mais velha. Vive em Inglaterra e tem mais duas filhas gémeas de cinco anos. Já foram cinco lá em casa, mas agora são só quatro: Liz é agora mãe solteira, depois de uma relação que correu mal. “Como as outras famílias, as famílias arco-íris também não são perfeitas”, lamenta. Todas as filhas têm o mesmo dador de esperma. Revela que é um “dador conhecido”, mas não quer adiantar pormenores. 

Se em Oeiras toda a gente pudesse escrever um pedido numa lista de resoluções, Liz provavelmente passaria a vez a outra pessoa. Faz parte da “Rainbow Families” de Brighton (Inglaterra), uma organização com 500 famílias como membros numa cidade “muito gay”. Os casais homossexuais podem andar de mãos dadas na rua sem serem incomodados, podem adotar, podem recorrer à PMA e a um banco de esperma. Liz não tem reivindicações a fazer. “Temos uma vida boa”, confessa. Aqui, cada um está a uma distância diferente desse objetivo. 

Texto e locução: Catarina Marques Rodrigues
Imagem e fotografia: Hugo Amaral e Michael Matias
Edição de vídeo: Michael Matias
Tradução: Xénon Cruz

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