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A persistência de “um muro de três ou mais metros”
Luís Rodrigues não esconde a frustração por não poder visitar o Palácio Nacional de Mafra, um dos monumentos mais emblemáticos de Portugal. Segundo os dados divulgados pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), o local foi o quinto monumento mais visitado do país em 2015, entre o conjunto de monumentos sob tutela do organismo, com cerca de 301 mil entradas vendidas. Dificilmente, alguma das entradas vendidas foi para alguém com mobilidade reduzida, como Luís.
“É muito frustrante um indivíduo deslocar-se cá e depois de tantos anos de sensibilização, não termos possibilidade de passarmos sequer da entrada”, relata.
Quando chegamos ao Palácio Nacional de Mafra, Luís já estava à nossa espera com o seu amigo, Ricardo Teixeira, também portador de deficiência motora. Os dois já nos haviam dito que não conseguiriam entrar no monumento, mas queríamos entender até onde iria a visita de uma pessoa com mobilidade reduzida.
Fomos, inicialmente, à Basílica, que corresponde à parte central do Palácio Nacional de Mafra e abriga uma das maiores coleções de esculturas barrocas italianas fora da Itália.
Surge, então, o primeiro obstáculo: o acesso ao local é feito unicamente por um lance de escadas. Luís, que tem um cadeira de rodas manual, consegue chegar com alguma dificuldade ao final da rampa de acesso, anterior às escadas de entrada. O piso acidentado, feito de calçada e cheio de atrito, torna a tarefa difícil. Já Ricardo, que tem um cadeira de rodas automática, consegue subir a rampa, mas enfrenta o mesmo problema de não poder subir as escadas anteriores à entrada da Basílica.
Na saída do local, outro desafio. Como o piso é muito acidentado, Luís tem de descer de costas para ir superando os desníveis do piso. Intuitivamente, tem de decidir a direção para a qual vai projetar o peso do seu corpo para evitar uma queda.
Ao descer a rampa, Luís e Ricardo vão até à entrada do Palácio, localizada na parte frontal do edifício, a alguns metros de onde estavam. Esta é a entrada para o Paço Real, que ocupa todo o andar nobre do edifício e os dois torreões. É onde estão localizadas as salas com tapeçarias, mobiliário e quadros da família real, no primeiro e segundo pisos, e a Biblioteca do Convento de Mafra, já considerada uma das mais bonitas do mundo.
O Palácio Nacional de Mafra não cumpre as recomendações do decreto-lei nº163/2006, de 8 de agosto, que determinou um prazo de dez anos para que todos os espaços públicos ou privados, turísticos ou comerciais, salvo algumas exceções, fossem modificados para serem acessíveis a todas as pessoas. O prazo terminou em agosto deste ano.
Dirigem-se à receção para conseguir as entradas para o Palácio (visitantes com mobilidade reduzida não pagam), mas a visita termina aí. Sabem que não há elevadores para aceder ao Paço Real e que a única maneira de subir aos pisos superiores é utilizando as escadas. Para ir à biblioteca, por exemplo, teriam de subir quatro lances de escadas até ao segundo andar. “Oiço falar extremamente bem [do Palácio], que tem uma biblioteca lindíssima. Custa-me acreditar que um palácio que acaba de ser renovado há bem pouco tempo não tenha contemplado o acesso a todos”, confessa Luís.
O Palácio Nacional de Mafra não cumpre as recomendações do decreto-lei nº163/2006, de 8 de agosto, que determinou um prazo de dez anos para que todos os espaços públicos ou privados, turísticos ou comerciais, salvo algumas exceções, fossem modificados para serem acessíveis a todas as pessoas. O prazo terminou em agosto deste ano. A medida visa proporcionar a todos igual oportunidade para o uso de espaços, edifícios ou serviços, entre as quais o turismo.
O decreto-lei não está restrito apenas a deficientes motores. Inclui pessoas “incapazes de andar ou que não conseguem percorrer grandes distâncias, pessoas com dificuldades sensoriais, como as pessoas cegas ou surdas, e anda aquelas que, em virtude do seu percurso de vida, apresentam-se transitoriamente condicionadas, como as grávidas, as crianças e os idosos”, lê-se no documento.
De acordo com o diploma, a falta de cumprimento do decreto-lei implica o pagamento de multas que podem chegar até 44.891,81€ no caso de pessoas coletivas. No entanto, a falta de fiscalização, o baixo número de queixas e o amplo número de exceções abrangidas pela medida impedem que diversas pessoas possam visitar alguns pontos turísticos do país.
“Um degrau com mais de dez centímetros é, para uma pessoa portadora de cadeira de rodas, equivalente a um muro de três ou mais metros para uma pessoa sem problemas de mobilidade”, explica Luís.
“Infelizmente, sinto-me discriminado por não poder circular livremente em todos os locais que gostava de circular. Normalmente, para que eu saia em Lisboa ou numa cidade em Portugal, tenho de fazer um planeamento com a ajuda do Google Maps antes de ir a algum lado para ver se é acessível ou não. Isto sou eu que vivo cá e conheço as coisas. Agora, uma pessoa que vem de fora, como é que chega a Portugal?”, questiona Ricardo.
Prazo de dez anos para obras de acessibilidade já terminou. E agora?
O decreto-lei n.º 163/2006 entrou em vigor a 8 de fevereiro de 2007 com o objetivo de definir um conjunto de normas de acessibilidade aos edifícios e estabelecimentos que recebem público, que estão na via pública e edifícios habitacionais. O antigo diploma que foi revogado era de 1997, quando se introduziram as primeiras normas técnicas para a eliminação de barreiras urbanísticas e arquitetónicas, mas que possuía algumas limitações e lacunas.
Em 2006, chegou-se a uma nova lei, que estabelecia prazos para a adequação à acessibilidade, de acordo com o início da construção do espaço:
- 10 anos para as instalações, edifícios, estabelecimentos, equipamentos e espaços cujo início de construção seja anterior a 22 de agosto de 1997;
- 5 anos para as instalações, edifícios, estabelecimentos, equipamentos e espaços cujo início de construção seja posterior a 22 de agosto de 1997.
Ou seja, em ambos os casos o prazo dado pelo decreto-lei já terminou.
A responsabilidade de fiscalização a estas obras ficava dividida entre três entidades:
- Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, quanto às “entidades da administração pública central e dos institutos públicos”;
- Inspeção-Geral da Administração do Território, no que diz respeito às “entidades da administração pública local”;
- Câmaras municipais, em relação aos deveres impostos aos particulares, aos licenciamentos e autorizações de obras e a comunicação às entidades administrativas competentes das situações de incumprimento das normas técnicas.
Há, no entanto, algumas exceções ao decreto-lei. Obras “desproporcionadamente difíceis”, que impliquem na aplicação de “meios económico-financeiros desproporcionados ou não disponíveis” ou que afetem “sensivelmente” o património cultural ou histórico.
Segundo informou o Instituto Nacional para a Reabilitação (INR), as normas técnicas do decreto-lei causaram “dificuldades de interpretação”, o que levou à publicação do “Guia Acessibilidade e Mobilidade para Todos”, com maiores esclarecimentos sobre o tipo de obras e modificações que deveriam ser realizadas para garantir a acessibilidade a um local.
Um mercado em crescimento, mas ainda não acessível
A Organização Mundial do Turismo (OMT) recomenda que a acessibilidade seja um “um elemento central de qualquer política de turismo responsável e sustentável”. Para a organização, o tema “constitui simultaneamente um imperativo dos direitos humanos e uma oportunidade de negócio excecional”. “Temos que começar a compreender que o turismo acessível não beneficia apenas as pessoas com deficiência ou com necessidades específicas, beneficia-nos a todos”, diz a OMT.
E de quantas pessoas estamos a falar? De acordo com os cálculos da investigação “Economic Impact and Travel Patterns of Accessible Tourism in Europe”, de 2014, citados pela OMT, o mercado do turismo acessível na Europa contempla “cerca de 27% da população e 12% do mercado turístico”. Estes valores levam em consideração a alta percentagem de viajantes com mais de 60 anos e as pessoas com algum tipo de incapacidade.
Em Portugal, não há dados específicos sobre o número exato de turistas com mobilidade condicionada que visitaram o país no último ano. Contactado pelo Observador, o Turismo de Portugal cita o serviço MyWay (serviço que presta apoio a pessoas com algum tipo de mobilidade reduzida), da ANA Aeroportos, como um possível indicador do eventual número de passageiros com mobilidade reduzida que entraram no país. Segundo o organismo, 243.715 pessoas solicitaram o serviço, em 2015.
O Turismo de Portugal cita ainda dados da Organização Mundial de Turismo e da Comissão Europeia, que relatam que, em 2012, na União Europeia, o valor bruto direto do turismo acessível ascendeu a um total de 352 mil milhões de euros. “Tendo em conta o efeito multiplicador – estas pessoas, em regra, não viajam sozinhas e as estadas nos destinos são bastante superiores à média -, o valor bruto total ascendeu a cerca de 786 mil milhões de euros”, explica.
Visita aos Jerónimos de cadeira de rodas: “Não foi terrível, até foi bom”
Com um mercado em crescimento, o país ainda precisa adaptar-se para estar preparado para o turismo acessível. Pelo menos, é o que acreditam Ricardo Teixeira e Luís Rodrigues. Convidamos os dois para fazer uma visita à igreja do Mosteiro dos Jerónimos, um dos pontos turísticos mais emblemáticos de Lisboa. Colocamos uma câmara na cadeira de rodas de Ricardo para entender, desde o seu ponto de vista, os desafios que enfrenta durante um passeio no local.
“Este desafio, face a àquilo que é normal em Lisboa, não foi terrível, até considero bom, porque normalmente é tudo pior do que estes acessos”, avaliou Ricardo. No entanto, acredita que ter rampas não é suficiente para contemplar “devidamente o acesso com cadeiras de rodas”. “A rampa dentro da igreja é aceitável, com pouca inclinação, mas a rampa para entrar [na igreja] é perigosa, porque é muito íngreme e está muito exposta, poderia ser uma rampa mais suave, condicionada ao pé da parede”.
Luís concorda com a avaliação. “Para a visita à igreja, encontramos uma rampa com um nível de inclinação um pouco exagerado, mas bastante aderente”. Ambos destacaram a presença de um funcionário para ajudar no acesso ao local como um ponto positivo.
Outro ponto coincidente foi a dificuldade que os entrevistados tiveram com os diferentes tipos de calçada e passadeiras nas vias de acesso ao Mosteiro. “Na minha opinião, devia haver tolerância zero nas passadeiras, porque só assim resolve o problema de todos nós, da cadeira elétrica, da cadeira manual, da pessoa que se desloca com canadianas e do turismo sénior”, explica. “A calçada foi pensada há muitos anos para ser usada por cavalos, não havia os problemas nem os desafios da sociedade de hoje em dia. As pessoas que andam de cadeiras de rodas têm todo o direito de viver nas cidades e passear nas cidades”, reivindica.
Pedimos a Luís e Ricardo para atravessassem a passadeira do Mosteiro dos Jerónimos para entender as dificuldades dos diferentes tipos de piso desta via:
Apesar das dificuldades, nem todos os pontos turísticos de Lisboa são inacessíveis. Os entrevistados apontaram a Praça do Comércio e zona da Avenida da República como bons exemplos de lugares acessíveis e indicaram a Ribeira das Naus como um mau exemplo de acessibilidade. “Ao lado da Praça do Comércio, [no sentido] de quem vai para o Cais do Sodré, é uma obra muito recente e nada pensada para as cadeiras de rodas, porque meteram uma calçada totalmente impossível para andar“, lamenta Ricardo.
“Na zona do Cais do Sodré, não há bons acessos para cadeiras de rodas, pois a calçada é muito compassada, não está muito unida. É uma zona tão agradável, mas não é um bom exemplo de acessibilidade”, afirma Luís.
Luís explica que a melhor “tática” para fazer uma visita turística em Lisboa é a prevenção. “Telefono, ligo para o local em questão, falo com amigos que já possam ter visitado o lugar, troco impressões sobre a problemática e tento não ser apanhado desprevenido. Faço o trabalho de casa e jogo na prevenção, penso que é a melhor forma”, revela.
O problema da fiscalização: afinal de quem é a responsabilidade?
A fiscalização do decreto-lei, no contexto do turismo acessível, esbarra na projeção de responsabilidades entre os diferentes organismos que gerem o património histórico e cultural do país, e entre os responsáveis por promover políticas de acessibilidade.
A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais foi extinta em 2006, no mesmo ano da promulgação do decreto-lei, e passou a integrar o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). O instituto também herdou as atribuições do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE).
Contactado pelo Observador, o IHRU afirmou que “apenas sucedeu à DGEMN no que diz respeito aos direitos e obrigações inerentes ou decorrentes do exercício das atribuições acometidas ao Instituto, nomeadamente a de salvaguarda e valorização patrimonial, assegurando a memória do edificado e a sua evolução”.
Informou ainda que “no que diz respeito à matéria das acessibilidades, não foram cometidas ao Instituto quaisquer competências e poderes necessários à prossecução da atividade de fiscalização do cumprimentos da lei das acessibilidades em edifícios públicos e ao correspondente processo contraordenacional” e atribuiu ao INR (Instituto Nacional para a Reabilitação) as competências pela matéria.
O Observador entrou então em contacto com o INR, que relatou que é o organismo responsável pelo “acompanhamento da aplicação da Lei da Não Discriminação”, a lei nº46/2006, e não pela fiscalização direta do decreto-lei dos edifícios e espaços acessíveis. A Lei da Não Descriminação estabelece que “devemos prevenir e remediar atos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, culturais ou outros, por quaisquer pessoas, em razão da deficiência”. Neste sentido, dialoga com o decreto-lei da acessibilidade, pois tem o mesmo objetivo de evitar a descriminação de pessoas com mobilidade reduzida ao acesso a locais.
Segundo o INR, também é da sua competência a “a apresentação de um relatório anual ao membro do Governo responsável pela área da reabilitação, o qual incluirá obrigatoriamente uma menção à informação recolhida sobre a prática de atos discriminatórios e sanções eventualmente aplicadas”.
Conversamos ainda com o Ministério do Ambiente, que tem a tutela do IHRU, sobre a fiscalização do decreto-lei, que informou que o “IHRU é o organismo ‘herdeiro’ do DGEMN e com responsabilidades nesta área [das acessibilidades]”. Como o IHRU nos havia respondido que a atribuição desta responsabilidade era do INR, questionamos novamente o Ministério, mas ainda não obtivemos resposta.
Já a gestão do património cultural em Portugal continental cabe à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que, em 2012, recebeu as atribuições do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (IGESPAR). O Observador entrou em contacto com a DGPC, que confirmou a sua responsabilidade face às “atribuições de fiscalização da acessibilidade relativas exclusivamente ao património classificado”, ressalvando que cabe ao IHRU as responsabilidades “relativas aos restantes imóveis”.
Segundo o organismo, o “diagnóstico, projeto e fiscalização das questões ligadas à acessibilidade é feito por técnicos que integram o Departamento de Estudos, Projetos, Obras e Fiscalização (DEPOF), da DGPC”.
Questionado sobre se há planos para alguma mudança na fiscalização da aplicação da lei, uma vez que já foi completado o tempo máximo de dez anos dado para que os locais estivessem totalmente modificados para as acessibilidades, a DGPC disse que não tem “conhecimento que o legislador esteja a prever mudanças na fiscalização da aplicação da lei”.
Questionamos ainda Ana Sofia Antunes, secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, sobre o que tem sido feito para pressionar os órgãos competentes sobre a aplicação do decreto-lei. Ana Sofia Antunes destacou ao Observador que a fiscalização do decreto-lei “tem sido uma tarefa transversalmente assumida por todo o Governo”, sem esquecer que Portugal conta “já com 20 anos de vigência de diferentes leis que definiram e definem normas técnicas de acessibilidade a cumprir”.
Explicou que “face ao cenário encontrado aquando da tomada de posse”, as ações da sua secretaria de Estado centraram-se na constituição de uma equipa técnica que propusesse “a clarificação de conceitos patentes na própria legislação, cuja aplicação prática se revela de difícil concretização” e “a definição mais clara de competências de fiscalização do cumprimento das normas de acessibilidade, por parte dos serviços públicos”. Ou seja: tornar as leis mais claras e definir com precisão quem é afinal o responsável pelo cumprimento da lei.
A ideia é também apostar “na formação de quadros dentro das principais entidades promotoras de obras em espaços e edifícios públicos, por forma a promover a criação de know-how junto dos técnicos que, diariamente, planeiam, projetam, licenciam e fiscalizam obras no espaço público”.
Já a secretaria de Estado do Turismo afirmou ao Observador que “cabe ao Turismo de Portugal, seja em fase de análise de projeto de arquitetura [de empreendimentos turísticos], seja em fase de auditoria de classificação, garantir que a lei é cumprida”. “Se em fase de projeto se verificar que os aspetos de acessibilidades não estão verificados, é emitido um parecer desfavorável, que é vinculativo”, garante.
Já a Câmara Municipal de Lisboa informou que exige o cumprimento da regulação estabelecida pelo decreto-lei na cidade desde o licenciamento das obras. João Afonso, vereador dos Direitos Sociais da CML, garantiu que está a ser feito “um reforço na área de Lisboa para tentar garantir a acessibilidade no que já existe”. “Cabe à Câmara [municipal] verificar se a lei é cumprida, ao exigir um termo de responsabilidade ou ao verificar quando há exceções que justifiquem a impossibilidade [do cumprimento do diploma], como é o caso da reabilitação de um edifício histórico”, justificou.
É nestas exceções que está o problema, segundo Mariana Lopes da Costa, diretora-geral da Associação Salvador, uma organização que luta pelos direitos dos cidadãos com mobilidade condicionada. “Existe uma série de exceções à lei e as empresas podem sempre fugir por aí. O que acontece é que muitos espaços conseguem abrir sem acessibilidade, não há preocupação na abertura e na fiscalização”, denuncia.
“Desde que adotaram o Programa Simplex [programa do governo que visa a simplificação legislativa e administrativa], entrou em vigor a medida de Licenciamento Zero [iniciativa que procura tornar mais fácil a abertura de alguns negócios através da eliminação de licenças e vistorias], então tornou-se possível abrir um espaço sem que se veja o local”, descreve.
De acordo com a representante da Associação Salvador, a Câmara Municipal de Lisboa já chegou a dizer-lhe que “não há técnicos de fiscalização para validar estes espaços”. No entanto, reconhece o trabalho da CML em promover a acessibilidade nas novas obras que estão a decorrer na cidade. “Tem havido uma melhoria, mas as coisas só avançariam com multas, coimas, uma fiscalização eficaz e o seguimento das denúncias”, acredita.
Ricardo aponta este problema da projeção de responsabilidades sobre a aplicação e fiscalização do decreto-lei como um dos principais problemas da questão da acessibilidade. “A lei fica um bocado vazia sobre quais são as autoridades competentes para regularem e fiscalizarem estas situações e para onde nós enviamos estas reclamações para que estas pessoas sejam, de facto, autuadas e tenham uma maior sensibilização sobre a acessibilidade”, explica.
Número de queixas ainda é baixo
Cabe ao Instituto Nacional de Reabilitação (INR) o recebimento de queixas relativas a práticas de discriminação a pessoas com deficiência, em todas as atividades e serviços – incluindo o turismo acessível. O organismo também é responsável por recolher as queixas relativas a esta matéria noutros órgãos e entidades e reencaminhá-las “para a entidade competente para a instrução do procedimento de contraordenação”.
E quais são os outros órgãos e entidades que podem receber queixas sobre a descriminação de pessoas com mobilidade reduzida? “O membro do governo que tenha ao seu cargo a área da deficiência, à Comissão para a Deficiência e às entidades competentes para a instrução dos procedimentos de contraordenação, como as inspeções-gerais, entidades reguladoras ou outras entidades com natureza inspetiva ou sancionatória, cujas atribuições incidam sobre o objeto da infração”, respondeu o INR ao Observador.
Após a “instrução do procedimento contraordenacional”, os órgãos e entidades enviam uma cópia dos processos ao INR, que organiza um registo de “todas as decisões comprovativas de práticas discriminatórias”.
Segundo um relatório do INR, em 2015, foram realizada 502 queixas por alegada discriminação de pessoas com deficiência, entre as quais 38 relacionadas especificamente à questão das acessibilidades. Apesar de o número total ter subido em relação a 2014, quando foram registados 353 casos, foram instaurados apenas quatro processos contraordenacionais a partir das queixas.
Questionado pelo Observador, o INR relatou que este número justifica-se pelo facto de “algumas das entidades com competência instrutória e sancionatória nos termos legais, optarem por analisar as situações objeto de queixa no âmbito de procedimentos de outra natureza, como processos de averiguação ou decisão de reclamações, quer porque os próprios interessados apresentam uma reclamação em livro amarelo e não uma queixa por discriminação”.
João Afonso, vereador dos Direitos Sociais da CML, acredita que o baixo número de queixas sobre a acessibilidade, no contexto municipal, está relacionada com a falta de “compromisso cívico” das pessoas. Cita o caso da plataforma virtual “Na Minha Rua”, espaço interativo no qual os cidadãos podem reportar situações relativas a espaços públicos e que necessitam intervenção da CML e que conta com poucas denúncias sobre a matéria.
“É importante que as pessoas se manifestem. Não recebemos muitas reclamações, há uma plataforma onde se apresenta queixas, mas temos pouquíssimas reclamações neste aspecto [das acessibilidades]. Queixamos muito à conversa, mas há muita falta de compromisso cívico”, relata.
Já para Ricardo Teixeira, a pouca eficiência das queixas desestimula as pessoas a fazerem reclamações. “Já fiz várias queixas sobre estes locais não acessíveis, quer seja monumentos, restaurantes e todo o tipo de locais onde precisamos ir, no entanto, infelizmente, nunca obtive nenhuma resposta sobre qualquer coisa que fosse”, confessa.
E o que está a ser feito?
A Câmara Municipal de Lisboa avançou ao Observador que vai lançar dois guias relacionados ao turismo acessível: um roteiro com informações específicas sobre a acessibilidade na cidade, que inclui conselhos sobre meios de transporte e hotéis; e um documento com recomendações para a promoção de acessibilidade para as empresas que prestam serviços turísticos.
“Há um problema de informação. É preciso informar o que há para que as pessoas não passem situações complicadas em termos de circulação”, afirma João Afonso.
A aposta da CML está no Plano de Acessibilidade Pedonal, aprovado em 2014 para que a Câmara cumpra as suas obrigações legais em matéria de acessibilidade até ao final de 2017. “Temos consciência dos dez anos [prazo máximo para o cumprimento do decreto-lei], por isso é que existe o plano de acessibilidade que põe a tónica na organização do que foi feito e hierarquiza as obras urgentes”, explica João Afonso. “O plano vai ser cumprido até 2017, o que significa para nós intervenções nas áreas prioritárias e contribuir para a capacitação e formação de mentalidades”, garante.
O vereador cita como exemplos de obras acessíveis “todo o processo de reabilitação e desenho da Avenida Fontes Pereira de Melo, Saldanha e Avenida da República“, que tem como um dos principais objetivos responder o turismo, devido à grande quantidade de hotéis na zona. “Estamos a criar uma nova estrutura que seja um novo ponto de localização para os turistas tendo em conta a questão da acessibilidade”, justifica.
Em Belém, o vereador garantiu que vai ser feita a adaptação das passadeiras em torno do Mosteiro dos Jerónimos, mas ainda sem previsão de data. “Há um estudo sobre questões de acessibilidade na zona de Belém, que envolve a Câmara, o Governo, o Centro Cultural de Belém, o Museu dos Coches, o MAAT e todo este território, está em fase de estudo e, em breve, todo ele será intervencionado”. Também garante que está a ser estudada uma retificação para a calçada e o piso da Ribeira das Naus, pois “a solução escolhida não foi a melhor”.
“É possível fazer turismo acessível em Lisboa. Temos de apostar neste ponto. Cada vez mais a cidade é acessível, inclusive às pessoas que estão a envelhecer, não só aos cidadãos que se deslocam em cadeiras de rodas – mas para todos nós. Neste momento, comparando com outros exemplos que temos visto, estamos bastante avançados, mesmo com alguns condicionantes”, assegurou.
A secretaria de Estado do Turismo partilha da mesma opinião. “Ainda que exista um caminho a percorrer, há por todo o país excelentes exemplos de unidades preparadas e adaptadas para pessoas com necessidades especiais ou com mobilidade condicionada”, declarou.
Para conseguir alcançar o objetivo, a secretaria conta com três instrumentos: o programa “All for All”, guias técnicos de apoio à implementação de soluções e o programa de formação “Turismo Inclusivo” para capacitar recursos humanos. “Vamos atuar a vários níveis, mobilizando, capacitando e financiando as empresas e os agentes públicos e trabalhando ao nível da procura turística”, explica o organismo.
“Queremos apoiar projetos que criem equipamentos e suportes informativos adequados às exigências de turistas com necessidades especiais, seja em estabelecimentos de atividades típicas do turismo – empreendimentos turísticos, estabelecimentos de restauração e bebidas, agências de viagens e outros –, seja museus ou monumentos. Mas também apoiar projetos que visem a requalificação de acessos e percursos de circulação que tornem o turismo acessível para todos”, garante o organismo.
Para isto, o programa conta com uma dotação de cinco milhões de euros destinados a entidades públicas e privadas.
Na parte da promoção, o Turismo de Portugal dedicou uma parte do seu site para indicar alguns itinerários acessíveis para todos em centros históricos do continente e das regiões autónomas, onde é possível encontrar sugestões sobre transportes acessíveis e a oferta de alojamento e restauração existente no país. Os itinerário incluem, por exemplo, Lisboa, Porto, Faro e Angra do Heroísmo.
Estão ainda em desenvolvimento os guias técnicos de boas práticas de acessibilidade em museus e monumentos e o manual de gestão de destinos turísticos acessíveis, com previsão de lançamentos para janeiro de 2017.
Para Ana Sofia Antunes, secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, seria de uma “profunda injustiça” não reconhecer o “esforço que tem vindo a ser realizado pelas autarquias e pelo Governo, na superação das barreiras físicas, nos edifícios públicos e nos pontos turísticos de referência”. “Obviamente, e apesar do trabalho já realizado, reconhecemos que ainda falta muito para atingirmos a plenitude dos nossos objetivos”, reconhece.
As dificuldades sentidas por Ricardo e Luís no Mosteiro dos Jerónimos — onde, ao contrário do Palácio Nacional de Mafra — conseguiram entrar, são conhecidas da diretora Isabel Cruz Almeida. Ao Observador, afirmou que está consciente de que a rampa de acesso à igreja não é apropriada para os turistas com mobilidade condicionada, mas é assim devido à especificidade do próprio edifício. “Se fizéssemos a inclinação que a lei pede, não seria compatível com a arquitetura própria do edifício”, justificou. No entanto, garantiu que “há um plano da Direção Geral do Património Cultural para substituir a rampa por outra com melhor inclinação”. Não se sabe é quando será feita.
A diretora destacou ainda que o Mosteiro dos Jerónimos oferece visitas específicas para deficientes visuais e que pessoas com mobilidade reduzida podem agendar, com antecedência, visitas ao local, recomendando, sobretudo, que sejam realizadas à tarde, quando há menos movimento.
Por sua vez, Isabel Yglésias, técnica do Palácio Nacional de Mafra, admitiu que o local não está preparado para receber turistas com mobilidade reduzida. “Neste momento, não. Infelizmente e com muita pena nossa e com plena consciência, não.”
Isabel Yglésias assegurou, contudo, que o Palácio deverá receber algumas melhorias nesta matéria, no contexto da comemoração dos 300 anos do lançamento da primeira pedra do monumento, em 2017. Estão previstas obras de instalação de um elevador de acesso à basílica, além do lançamento de um audioguia com descrição adaptada para invisuais e novas sinaléticas com todas as informações sobre as salas. “Estamos a fazer o melhor para tornar a acessibilidade possível”, afirmou.
Entre obras, promessas e expectativas, Luís Rodrigues acredita que “as coisas no futuro vão ser ainda melhores” para as pessoas com mobilidade reduzida, apesar de todos os obstáculos. “Há alturas em que não podemos ficar parados a olhar, temos de transpor os obstáculos, e isto é o que tento fazer no meu dia-a-dia. Havendo sim muitos obstáculos e havendo ainda muita coisa para fazer, temos de seguir em frente perspetivando que as coisas no futuro vão ser ainda melhores.”